Chico Xavier: o médium filho de analfabetos que vendeu 50 milhões de livros
Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier
(1910-2002), costumava dizer que iria "desencarnar" em um dia de
festa para o Brasil, para que sua morte não fosse lembrada com tristeza.
Para
os céticos, uma coincidência; para os que acreditam, mais uma prova das
capacidades do médium — Xavier morreu exatamente há 20 anos, no mesmo domingo
em que o Brasil venceu a Alemanha na final da Copa do Mundo e conquistou o
sonhado pentacampeonato.
Ele
tinha 92 anos e era uma personalidade amplamente conhecida no país. O filho de
um vendedor de bilhetes de loteria e de uma lavadeira, ambos analfabetos, havia
se tornado o maior médium brasileiro, tendo escrito mais de 10 mil cartas
psicografadas e se consolidado como dono de uma obra de mais de 450 livros —
cuja autoria sempre foi atribuída a espíritos. No total, vendeu cerca de 50
milhões de exemplares.
Nascido
em Pedro Leopoldo, pequeno município na região metropolitana de Belo Horizonte,
Xavier alcançou a notoriedade com a publicação de seu primeiro livro — embora
fenômenos mediúnicos já fizessem parte de sua vida desde a tenra idade.
Em
1932, quando ele ganhava a vida como vendedor e tecelão e costumava publicar
poesias em jornais — sempre atribuindo os textos a autores mortos —, ele lançou
a antologia Parnaso de Além-Túmulo, uma coletânea de 60 poemas,
assinados por nove poetas brasileiros, quatro portugueses e um anônimo.
A
edição ficou por conta da Federação Espírita Brasileira. E o livro alcançou
repercussão no meio literário. "Ele tinha pouco mais de 20 anos e era um
matuto, um menino do interior de Minas Gerais, filho de pais analfabetos, que
colocava no papel poemas assinados por nomes como Castro Alves, Augusto dos
Anjos… E afirmava: 'foram eles que escreveram, não fui eu'", conta o
jornalista e escritor Marcel Souto Maior, autor de, entre outros, As
Lições de Chico Xavier e As Vidas de Chico Xavier.
"Era
uma época em que ele, que já havia trabalhado numa fábrica de tecidos,
trabalhava 12 horas seguidas por dia como vendedor no armazém de um tio. Tinha
pouco tempo para leitura e para exercícios de escrita", comenta Souto
Maior. "O livro foi publicado e provocou uma grande comoção, atraindo a
curiosidade dos principais escritores da Academia Brasileira de Letras."
Segundo
o biógrafo, "95% dos escritores ficaram impressionados com a qualidade e a
versatilidade da escrita", sendo que alguns a comparavam com textos
escritos em vida pelos autores ali citados e encontravam muitas semelhanças no
estilo, na métrica e na temática.
"Foi
um impacto muito forte. E isso levou jornalistas a Pedro Leopoldo, alguns
interessados em desvendar aquele enigma, outros querendo 'desmascarar aquela
fraude'", prossegue Souto Maior. "Houve um impacto positivo e também
um impacto negativo na repercussão."
Tal
dicotomia perseguiu Xavier por toda a vida. "De um lado, admiradores; de
outro, profunda desconfiança", comenta o jornalista. "Mas neste
início dele, vejo algo forte e interessante. Ele foi se tornando uma figura
conhecida. E polêmica."
E
se ele sempre manteve a simplicidade no seu dia a dia — três anos depois,
assumiu um posto de escrevente-datilógrafo em uma fazenda modelo ligada ao
Ministério da Agricultura —, a escrita passou ser parte indissociável de seu
dia a dia como médium.
De
certa forma, foi essa obra literária mediúnica que atraiu Souto Maior ao
universo de Xavier. Ele se recorda que, nos anos 1990, era então subeditor de
Cultura do Jornal do Brasil quando ficou curioso para ver uma peça de cunho
espírita que estava arrebatando as bilheterias no Rio de Janeiro. Era Nosso
Lar, baseada no best-seller homônimo psicografado por Xavier.
"Recordo-me
até hoje do que escrevi depois, no jornal, sobre a experiência, aquele universo
em que o centro era Chico Xavier. Coloquei no papel que ele havia então escrito
mais de 400 livros, vendido mais de 30 milhões de exemplares e doado toda a
renda dos direitos autorais a instituições beneficentes", relata o
jornalista.
Xavier
costumava dizer que os livros não pertenciam a ele. Que ele não havia escrito
nada, mas que eram obras dos espíritos. "Aquilo para mim era muito
intrigante. Por isso decidi ir até Uberaba, apesar de muito cético, muito
descrente", diz.
Era
em um centro espírita na cidade do Triângulo Mineiro que o médium então exercia
suas atividades.
·
O símbolo do espiritismo brasileiro
Esse
fascínio e todo o carisma de Xavier fizeram dele o maior nome do espiritismo
kardecista brasileiro. E também foi o que trouxe muitos adeptos para a doutrina
fundada na França no século 19, pelo autor e educador Allan Kardec.
"Chico
Xavier não foi só o grande médium, mas todo o espiritismo brasileiro ganhou uma
feição diversa depois de sua aparição. Ele não é apenas um médium carismático,
é antes de tudo um modelo de espírita exemplar, que é também um modelo de santo
cristão exemplar a ser seguido e imitado em sua caridade, humildade e renúncia,
não por acaso temas do catolicismo", contextualiza o filósofo e
antropólogo Bernardo Lewgoy, professor na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) e autor do livro O Grande Mediador: Chico Xavier e a
Cultura Brasileira.
"Ele
nacionalizou o espiritismo kardecista francês, criando uma escatologia nacional
própria nos anos 30 e 40. Por outro lado, aproximou o antigo kardecismo
elitista das pessoas mais simples, valorizou as mulheres como personagens
ativas nos centros espíritas e na prática familiar do espiritismo",
complementa.
O
antropólogo avalia que Xavier consagrou-se "como uma espécie de 'santo
informal' do espiritismo". "Os livros e as mensagens de Emmanuel e
André Luiz [os dois principais nomes a quem ele atribuiu a autoria de seus
textos psicografados] são presença e leitura obrigatória em centros espíritas
brasileiros", comenta.
Um
dos temas centrais do livro O Grande Mediador é como Xavier
conseguiu popularizar o espiritismo em um país de raízes fortemente católicas
como o Brasil. "O espiritismo chegou ao Brasil no século 19, quando o
catolicismo era religião oficial do Império", pontua Lewgoy.
"Mas
o catolicismo nunca foi homogêneo: sempre houve devoções populares e misturas
sincréticas com outras religiosidades de origem indígena e africana. A crença
em espíritos que sobrevivem após a morte do corpo e que retornam periodicamente
parece ser uma moeda comum dessa espiritualidade difusa abrigada no grande
manto católico-popular", avalia o pesquisador.
Lewgoy
entende o espiritismo como "uma religião urbana", que encontrou
espaço de crescimento em meios profissionais típicos desse fenômeno pós-êxodo
rural — por exemplo, entre médicos, militares e professores. Segundo ele, o
apelo da experiência mediúnica e de contatos com parentes falecidos e práticas
de caridade e cura, "numa época de difusão do positivismo e do
evolucionismo é fator de muita importância para esse segmento".
Na
visão do antropólogo, estabeleceu-se então "um longo e invisível diálogo
sincrético, misturado a uma forte competição" entre espiritismo e
catolicismo. Este foi o caminho encontrado por Xavier, um homem hábil em
costurar "uma agenda nacional cristã-espírita, com influência do
catolicismo popular".
"Seu
discurso era fundamentalmente cristão. E ele sempre fazia questão de dizer que
a Igreja Católica era o berço de todos nós", ressalta o jornalista Souto
Maior.
·
Biografia do médium
A
mãe de Xavier era católica e morreu quando o garoto tinha apenas 5 anos.
Segundo alguns biógrafos, um ano antes ele já relatava ouvir vozes do além.
Quando se tornou órfão, passou a "ter diálogos" diários com o que
seria o espírito da mãe.
Diante
da estranheza dos familiares — ele acabou sendo criado por uma madrinha
retratada como mulher violenta, que o castigava e açoitava —, seu conselheiro
na infância foi um padre da cidade natal.
"Ele
foi fundamental para que Chico Xavier não fosse internado pelo pai como um
louco quando começou a ouvir vozes e ter visões", conta Souto Maior.
"O padre dizia para ele ter cuidado com que falava, não contar tudo o que
vivia… Por isso ele sempre teve um profundo respeito e gratidão pelo
catolicismo."
Foi
só aos 17 anos que Xavier teve contato com a doutrina espírita kardecista — e
assim colocar o que vivenciava dentro dos métodos de uma doutrina.
Mas
se os livros ajudaram a sistematizar o legado de Xavier, foram suas aparições
na TV que renderam fama nacional. É considerada um marco sua participação, ao
vivo, no programa Pinga-Fogo da TV Tupi, em julho de 1971.
Ele
acabou repetindo a participação no fim do mesmo ano e o sucesso foi tamanho
que, segundo a metodologia da época, 86% dos televisores estavam sintonizados
no programa.
Na
década de 1980, o dinheiro arrecadado por meio de suas obras já havia sido
suficiente para fundar ou auxiliar 2 mil entidades de caridade em todo o país.
Para a doutrina espírita, a caridade é um princípio fundamental. Na época houve
uma campanha para que ele fosse indicado ao Prêmio Nobel da Paz. "A
mobilização rendeu 2 milhões de assinaturas", afirma o biógrafo Souto
Maior.
Segundo
o último censo, de 2010, são 3,8 milhões de praticantes do espiritismo
kardecista no Brasil. Como bem define o antropólogo Lewgoy, trata-se de
"uma minoria religiosa de muito prestígio" e isso se traduz no
sem-número de filmes, telenovelas e outros materiais midiáticos que retratam o
assunto.
"O
cristianismo evangélico tem uma clientela muito distinta dos espíritas, que são
de classes médias urbanas, de maior educação formal e renda", compara o
professor.
Por
outro lado, é importante pontuar que o kardecismo, no Brasil, acabou assumindo
para si o título de "espiritismo", como se não houvesse também no
país outras religiões espíritas, de matriz africana e indígena.
"Creio
que sempre houve esse diálogo [do kardecismo com outras religiões] embora
marcado por condescendência e atitude de superioridade moral dos espíritas em
relação às religiões de matriz africana", comenta Lewgoy. "A disputa
em torno da 'propriedade' e legitimidade do uso do termo 'espírita' e a crítica
às manifestações de entidades de umbanda e candomblé em centros kardecistas são
indícios de tensões de longa duração nessa relação."
Fonte:
BBC News Brasil
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