Chris Hedges: Os
Estados Unidos da Paralisia
A
paralisia política está extinguindo o que resta da nossa democracia anêmica.
Esta
é a paralisia de fazer nada enquanto os oligarcas dominantes, que aumentaram a
sua riqueza em quase um terço desde que a pandemia começou e de cerca de 90% na
década passada, orquestram boicotes virtuais de impostos; enquanto milhões de
estadunidenses vão à falência para pagar contas médicas, hipotecas, dívidas de
cartão de crédito, dívidas estudantis, empréstimos de carros e altas contas de
serviços públicos exigidas por um sistema que privatizou quase todos os
aspectos das nossas vidas.
É
a paralisia de fazer nada sobre aumentar o salário mínimo, apesar das
devastações da inflação, de 600.000 estadunidenses sem moradias e 33,8 milhões
de pessoas vivendo em lares com insegurança alimentícia — incluindo 9,3 milhões
de crianças.
É
a paralisia de ignorar a crise climática, a maior ameaça existencial que
enfrentamos, para expandir a extração de combustíveis fósseis.
É
a paralisia de despejar centenas de bilhões de dólares na economia de guerra
permanente, ao invés de reparar as estradas, ferrovias, pontes, escolas, redes
elétricas e suprimento de água que estão em colapso na nação.
É
a paralisia de se recusar a instituir cuidados universais de saúde e regular as
indústrias de seguro e farmacêuticas com fins lucrativos, para consertar o pior
sistema de cuidados de saúde de qualquer nação altamente industrializada — na
qual a expectativa de vida está diminuindo e cada vez mais estadunidenses
morrem de causas evitáveis que em nações comparáveis. Mais de 80% das mortes
maternas nos EUA são evitáveis, segundo os Centros de Controle e Prevenção de
Doenças.
É
a paralisia de não estar disposto a conter a violência policial, de desmontar o
maior sistema de prisões do mundo, de acabar com a vigilância governamental do
público feita por atacado e de reformar um sistema de justiça disfuncional no
qual quase todos, a não ser que eles possam pagar advogados caríssimos, são
coagidos a aceitarem onerosos acordos judiciais.
É
a paralisia de ficar parado passivamente enquanto o público, armado com
arsenais de armas de combate, massacram uns aos outros por cruzarem pelo seu
quintal, por entrarem na sua entrada de garagem, por tocarem na sua campainha,
por irritá-los no trabalho ou na escola, ou estão tão alienados e amargurados
por terem sido deixados para trás, que fuzilam grupos de
pessoas inocentes em atos de autoimolação assassina.
As
democracias não são assassinadas por bufões reacionários como Donald Trump —
que era rotineiramente processado por deixar de pagar trabalhadores e
empreiteiros e cuja persona televisiva fictícia era vendida a um eleitorado
crédulo — ou por políticos superficiais como Joe Biden — cuja carreira política
tem sido devotada a servir doadores corporativos. Estes políticos provêm um
falso conforto de individualizar as nossas crises, como se remover esta figura
pública ou censurar aquele grupo nos salvará.
As
democracias são assassinadas quando um pequeno conluio — no nosso caso, sendo
corporativo — assume o controle da economia, da cultura e do sistema político e
os distorce para servir exclusivamente aos seus próprios interesses. As
instituições que deveriam prover compensações ao público se tornam paródias
delas próprias, se atrofiam e morrem. Há alguma outra maneira para se explicar
corpos legislativos que só se unem para aprovar programas de austeridade,
cortes nos impostos para a classe bilionária, orçamentos inchados para a
polícia e os militares e para reduzir gastos sociais? Como se pode explicar
tribunais que despojam trabalhadores e cidadãos dos seus direitos mais básicos?
Como explicar um sistema de educação pública no qual se ensina aos pobres, na
melhor das hipóteses, uma alfabetização numérica básica e os ricos mandam os
seus filhos a escolas e universidades privadas — com dotações nos bilhões de
dólares?
As
democracias são assassinadas com promessas falsas e banalidades ocas. Como
candidato, Biden nos contou que aumentaria o salário mínimo para US$ 15 e daria
cheques de estímulo de US$ 2.000. Ele nos disse que o seu Plano Americano de
Empregos (American Jobs Plan) criaria “milhões de bons empregos”. Ele nos
contou que fortaleceria o poder de barganha coletiva dos trabalhadores e
asseguraria a educação pré-jardim de infância universal. Ele prometeu dar uma
opção de cuidados de saúde financiada publicamente. Ele prometeu não permitir
perfurações de petróleo em terras federais e promover uma “revolução verde e a
justiça ambiental”. Nada disso ocorreu.
Porém,
a esta altura, a maioria das pessoas entendeu o jogo. Por que não votar em
Trump e as suas promessas grandiosas e movidas por fantasias? Será que estas
são menos reais do que aquelas vendidas por Biden e os Democratas? Por que
prestar homenagens a um sistema político que se trata de traição? Por que não
se separar do mundo racional que só trouxe miséria? Por que manter fidelidade a
velhas verdades que se tornaram banalidades hipócritas? Por que não explodir a
coisa toda?
Como
enfatiza a pesquisa dos professores Martin Gilens e Benjamin I. Page, o nosso
sistema político tornou o consentimento dos governados em uma piada cruel. “O
ponto central que emerge da nossa pesquisa é que as elites econômicas e grupos
organizados que representam os interesses das empresas têm impactos
independentes substanciais na política do governo estadunidense, enquanto os
interesses das massas e dos cidadãos médios têm pouca ou nenhuma influência
independente”, eles escrevem.
No
seu livro “Sobre o Suicídio”, o sociólogo
francês Émile Durkheim chamou o nosso estado de desesperança e desespero, de
anomia, de “ausência de regras”. Ausência de regras significa que as regras que
governam a sociedade e criam um sentido de solidariedade orgânica não funcionam
mais. Isto significa que as regras que nos ensinaram — trabalho duro e
honestidade nos garantirão um lugar na sociedade; vivemos numa meritocracia;
somos livres; as nossas opiniões e os nossos votos importam; o nosso governo
protege os nossos interesses — são uma mentira. Obviamente, se você é pobre, ou
uma pessoa de cor, estas regras sempre foram um mito; mas outrora, a maioria do
público estadunidense conseguiu encontrar um lugar seguro na sociedade, que é o
baluarte de qualquer democracia — como numerosos teóricos políticos notam,
remontando a Aristóteles.
Dezenas
de milhões de estadunidenses, lançados à deriva pela desindustrialização,
compreendem que as suas vidas não melhorarão, nem tampouco as vidas dos seus
filhos. Como Durkheim escreve, a sociedade não é mais “suficientemente
presente” para eles. Aqueles que são deixados à deriva, ele escreve, podem
participar da sociedade apenas através da tristeza.
O
único caminho remanescente para você se afirmar, quando todos os outros
caminhos estão fechados, é destruir. A destruição, alimentada por uma grotesca
hiper-masculinidade, dá um ímpeto e um prazer, juntamente com sentimentos de
onipotência — que são sexualizados e sádicos. Isso tem uma atração mórbida.
Esta lascívia de destruir, que Sigmund Freud chamou de instinto de morte, visa
todas as formas de vida, incluindo a nossa própria.
Estas
patologias de morte, doenças e desespero, são manifestas nas pragas que estão
varrendo todo o país — vício de opioides, obesidade mórbida, jogatinas,
suicídio, sadismo sexual, grupos de ódio e fuzilamentos de massa. O meu livro “America: The
Farewell Tour”
é uma exploração dos demônios que controlam a psique estadunidense.
Uma
rede de conexões sociais e políticas — amizades e laços de família, cívicos e
rituais religiosos, trabalho significativo que transmitem um sentido de lugar,
dignidade e esperança no futuro — nos permite engajar-nos num projeto maior do
que o ‘eu’. Estas conexões provêm proteção psicológica da iminente mortalidade
e ao trauma da rejeição, do isolamento e da solidão. Somos animais sociais.
Precisamos uns dos outros. Retire estas conexões e as sociedades descendem para
o fratricídio.
O
capitalismo é antitético à criação e sustentação de conexões sociais. Os seus
atributos centrais — relacionamentos que são transacionais e temporários,
priorizando a autopromoção através da manipulação e exploração de outros e a
insaciável lascívia pelo lucro — elimina o espaço democrático. A obliteração de
todas as restrições ao capitalismo — de sindicatos organizados à supervisão e
regulamentação governamental — nos deixou à mercê das forças predatórias que,
por natureza, exploram seres humanos e o mundo natural até a exaustão ou o
colapso.
Trump,
desprovido de empatia e incapaz de sentir remorso, é a personificação da nossa
sociedade doentia. Ele é o que aqueles que foram deixados à deriva são
ensinados pela cultura corporativa que eles deveriam aspirar a ser. Ele expressa,
frequentemente com vulgaridade, a incipiente raiva daqueles que foram deixados
para trás e é uma propaganda andante do culto do ‘eu’. Trump não é um produto
do roubo dos e-mails de Podesta, dos vazamentos do Comitê Nacional Democrata,
ou de James Comey. Ele não é um produto de Vladimir Putin ou dos robôs russos.
Assim como os aspirantes a dublês Ron DeSantis, Tom Cotton e Margorie Tylor
Greene, ele é um produto da anomia e da decadência social.
Os
indivíduos estão “intimamente envolvidos demais na vida da sociedade para que
esta fique doente sem que eles sejam afetados”, escreve Durkheim. “O seu
sofrimento inevitavelmente torna-se o deles”.
Estes
charlatães e demagogos que rejeitam as restrições costumeiras do decoro
político e cívico, ridicularizam as elites “polidas” que nos venderam. Eles não
oferecem soluções viáveis para as crises que ocupam o país. Eles dinamitam a
velha ordem social, que já está podre, e clamam por vingança contra inimigos
reais e fantasmas, como se estes atos ressuscitarão magicamente uma era de ouro
mítica.
“Desde
que a burguesia alegou ser a guardiã das tradições ocidentais e confundiu todas
as questões morais ao alardear publicamente as virtudes que ela não só não
possuía na vida privada e nos negócios, mas efetivamente desacatava, pareceria
revolucionário admitir a crueldade, o desprezo pelos valores humanos e a
amoralidade em geral, porque isto pelo menos destruía a duplicidade sobre a
qual a sociedade existente parecia se basear”, escreveu Hannah Arendt no seu
livro “As Origens do
Totalitarismo”
sobre aqueles que adotaram a retórica cheia de ódio do fascismo na República de
Weimar. “Que tentação era ostentar atitudes extremas no crepúsculo dos padrões
duplos de moralidade, de vestir publicamente a máscara da crueldade, se todos
eram patentemente inconsiderados e faziam de conta de serem gentis, alardear a
perversidade num mundo que não era perverso, mas mesquinho!”
A
nossa sociedade está profundamente doente. Devemos curar estas enfermidades
sociais. Devemos mitigar esta anomia. Devemos restaurar as conexões sociais
rompidas e integrar os despossuídos de volta à sociedade. Se estas conexões
sociais permanecerem rompidas, isto garantirá um neofascismo assustador. Há
forças muito escuras rondando em volta de nós. Mais cedo do que esperamos, elas
podem nos ter sob o seu controle.
Fonte: The Chris
Hedges Report. Traduzido
por Rubens Turkienicz para o Brasil 247
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