sexta-feira, 28 de abril de 2023

As vinícolas gaúchas não aprenderam nada

* Por razões de segurança, os nomes de alguns entrevistados foram alterados ou omitidos nesta reportagem

Um mês após o resgate de 210 trabalhadores em condições análogas à escravidão em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, enquanto turistas agendavam tours pelas vinícolas locais e tiravam fotos fantasiados de imigrantes italianos, dezenas de trabalhadores seguiam entocados em alojamentos clandestinos da cidade.

Dormindo em porões escuros e úmidos e se alimentando graças à doação de marmitas, eles esperavam ser realocados em novas frentes de serviço ou aguardavam pagamentos atrasados para voltarem às suas cidades natais. Enquanto isso não acontece, passam o tempo conversando à sombra das árvores da praça Vico Barbieri, no centro da cidade.

São homens que compõem a frente de trabalho temporário da região, que atua conforme a safra ou a demanda industrial do momento – pode ser na apanha de frango ou na uva; na maçã ou na laranja. Alguns eram ex-funcionários de Pedro Santana, o dono da Fênix, empresa contratada pelas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton que está no centro do escândalo de exploração de trabalhadores, descoberto no final de fevereiro e ainda em investigação pela Polícia Federal (PF), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Assim como os baianos resgatados na ocasião, a maioria vem de outros estados do Brasil, de forma organizada e coordenada por empresas ou indivíduos a quem eles chamam de “empreiteiros” – uma realidade que modificou as feições do trabalho na região nos últimos anos, sobretudo depois de 2017, quando o então presidente Michel Temer (MDB) aprovou, em um curto intervalo de tempo, a reforma trabalhista e a lei que liberou a terceirização das atividades fim.

Enquanto aguardam um novo serviço, trabalhadores terceirizados ou informais passam os dias nas praças de Bento Gonçalves

“Quem nos trouxe foi um empreiteiro de colheita”, explica o jovem Aquiles*, que havia chegado na manhã de 20 de março vindo de Chapecó, Santa Catarina, acompanhado da esposa. Confiantes em dias melhores e “na graça de Deus”, o casal não sabia em qual safra iria trabalhar, se na da laranja, da uva ou da maçã. Também não sabia em qual cidade nem quando começaria o serviço. Não tinham internet nem crédito no telefone. Aquiles* também tinha perdido os documentos, e por isso foi barrado na casa de passagem da prefeitura. A primeira noite na tão sonhada Bento Gonçalves foi passada ali mesmo, na praça.

A vinda de trabalhadores de regiões distantes do Brasil através de empresas terceirizadas e atravessadores é novidade em um setor em que as relações de trabalho costumavam ser baseadas nos laços familiares e de amizade. “Antes não se verificava na safra da uva esse atravessador da mão de obra, que ganha em cima do trabalho dos outros”, explica Vanius Corte, gerente do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caxias do Sul. “Como as propriedades são menores, era comum a própria família trabalhar na colheita e um vizinho vir ajudar”.

A lei da terceirização da atividade fim caiu como uma luva no momento em que a demanda produtiva crescia ao mesmo tempo em que as famílias de agricultores reduziam o número de filhos por casal. Com a nova legislação, não só Pedro Santana direcionou sua empresa para a colheita de uva e as vinícolas – antes, ele atuava em outros segmentos – mas a região viu surgir outras firmas interessadas no novo modelo de negócio.

 “Hoje está cheio de empresas terceirizadas, tem crescido nos últimos anos de forma assustadora”, confirma Sérgio Poletto, segundo secretário da Fetar-RS, a Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul. “Mas tem empresas que cuidam dos funcionários, seguem as recomendações. E tem essas que fazem o que fizeram com estes trabalhadores”, completa.

A facilidade na contratação desse tipo de serviço levou uma dessas companhias, a Via Rural, a se apresentar como o “Uber da colheita”: “Graças a essa lei nós podemos tocar na uva, que para o produtor rural é atividade fim”, explica o advogado Jarbas Fagundes, diretor executivo da empresa. “Antes a gente só podia fazer o café, ficar na portaria, dirigir o caminhão”, completa. Fagundes ressalva que, embora terceirize mão-de-obra, sua firma não explora trabalhadores. A Repórter Brasil encontrou apenas um processo trabalhista contra a Via Rural, de um ex-funcionário que teve um pedido de danos morais negado pela justiça.

Mas essa não é a regra. Segundo Maurício Krepsky, auditor-fiscal do trabalho e chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do MTE, o impacto da terceirização nos casos de trabalho escravo contemporâneo registrados no Brasil foi progressivo e acabou se revelando “avassalador”. “Mesmo sem ainda haver estudos sobre isso, por experiência sabemos que grande parte dos resgates envolvem terceirizados, incluindo os dois grandes no Rio Grande do Sul neste ano, em Bento Gonçalves e Uruguaiana”, explica. “Aliás, nos maiores casos de resgate de trabalhadores em condições de escravidão moderna em 2023 havia terceirização, lícita ou ilícita, que somam mais de 500 vítimas de trabalho escravo”, complementa.

·         Produção em alta demandou mão-de-obra

Nem todos os trabalhadores terceirizados que chegam a Bento Gonçalves e região tem contrato formalizado com alguma empresa, como a Fênix ou a Via Rural. Há vários que chegam conduzidos por “gatos”, atravessadores ilegais que já existiam, mas que proliferaram com a reforma trabalhista, aprovada um mês após a lei de terceirização e que flexibilizou as relações de trabalho.

“A reforma trabalhista deu uma sensação para muitos empregadores de que agora pode tudo. Por outro lado, as pessoas estão topando qualquer coisa para poder trabalhar. Estas duas coisas fizeram aumentar muito a informalidade, mas muito mesmo”, observa Corte, do MTE de Caxias do Sul. “O grande monstro que ronda o campo é a informalidade”, confirma Nelson Wild, presidente da Fetar-RS.

A questão é que muita coisa havia mudado desde o final dos anos 1990 no setor vitivinícola. Depois que o governo do Rio Grande do Sul instituiu o Fundivitis – fundo que injetou dinheiro na atividade e levou à criação do Instituto Brasileiro do Vinho –, o vinho brasileiro ganhou qualidade e ficou mais conhecido. Os espumantes da serra gaúcha caíram no gosto dos consumidores e a demanda por alimentos naturais também impulsionou as vendas de suco de uva integral.

 “Nossas colheitas saltaram de 500 milhões para quase 800 milhões de quilos nos últimos dez anos”, afirma Helio Marchioro, diretor-executivo da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul, a Fecovinho. Mas o setor subestimou o gargalo da mão de obra: “Ninguém levou muito em conta isso. Estava todo mundo preocupado com a produção da parreira, o preço da uva, a vinificação, o mercado… Mas como eu faço para produzir tudo isso?”.

De início, quando havia necessidade de mais braços, a regra era que o agricultor abrigasse os trabalhadores vindos de fora na própria casa, oferecendo também a alimentação – tudo muito informal.

“No momento de ir embora, eles ainda levam de presente caixas de uva, garrafas de vinho e salames”, observa Cedenir Postal, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar de Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Pinto Bandeira e Santa Tereza. Uma realidade que ainda subsiste, mas é cada vez mais rara diante dos riscos jurídicos de um contrato sem nenhuma garantia legal.

A adoção de tecnologia na aplicação de agrotóxicos e outros insumos também permitiu a concentração de áreas de parreira cada vez maiores nas mãos de famílias reduzidas, e cujos filhos não querem permanecer no campo. “Está ficando gente velha nas propriedades, casais de 50, 60 anos, às vezes com apenas um filho, e plantando mais uva”, resume Luis Carlos Rupp, professor de viticultura do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves.

Para piorar, as mudanças climáticas tornaram o período de colheita mais imprevisível – depois que a uva chega no ponto, precisa ser colhida em cerca de dez dias, sob o risco de sair dos padrões exigidos pelas indústrias.

Foi assim que Santana percebeu na safra de uva uma oportunidade de ampliar os lucros. Passou a oferecer aos pequenos agricultores um pacote completo, que incluía transporte, alimentação e alojamento dos trabalhadores. “Ele dizia que a gente não precisaria se preocupar com nada”, confirma José*, um produtor rural que contratou o serviço de Santana na safra passada. “Eles traziam o trabalhador de manhã, serviam a comida no almoço e depois buscavam pra levar embora”, relata.

“Talvez essa empresa tenha entrado com tanta força no mercado porque apresentou algo que parecia uma vantagem competitiva, fornecendo a mão de obra e ainda se encarregando da estadia, alimentação e transporte”, avalia Paulo Roberto Wünsch, professor de sociologia do Instituto Federal do Rio Grande do Sul em Bento Gonçalves. “Imagina uma mulher com 60 anos de idade tendo que fazer café da manhã, almoço e jantar para um monte de trabalhadores por dez dias. Isso era um suador para estas famílias”, concorda Rupp.

Mas as investigações da Polícia Federal e do Ministério do Trabalho e Emprego revelam que as estratégias de Pedro Santana para lucrar mais incluíam jornadas exaustivas, condições degradantes e servidão por dívida – três características de trabalho análogo à escravidão previstas no Código Penal brasileiro. A reportagem ouviu depoimentos que corroboram os achados das autoridades, que ainda estão trabalhando no caso.

·         Jornadas de trabalho de 20 horas

São 4 horas da manhã, e você acorda por bem ou por mal – neste caso, com choques elétricos. Embarca em uma van, onde ganha meio copo de café preto e um pacote de bolachas Maria. Antes das 5:30, já está embaixo do parreiral colhendo uva. O almoço é engolido ali mesmo, sob o sol. Depois, ainda é preciso carregar as caixas de uva para cima do caminhão. 

Você está de pé há nove horas, mas o expediente ainda não chegou nem na metade.

Da propriedade rural, a van te leva para uma das três vinícolas clientes da Fênix: Garibaldi, Aurora ou Salton. Ali, começa uma nova jornada que só vai terminar perto da meia-noite, e que inclui o descarregamento das caixas vindas das propriedades rurais e a limpeza da prensa de uva. Vinte horas de trabalho depois, você volta pro alojamento para dormir por quatro horas, antes de começar tudo de novo.

e Salton, assinaram termo de ajustamento de conduta para prevenir novos casos

Assim como o “pacote completo” oferecido ao produtor rural, incluindo transporte, alojamento e alimentação do trabalhador, Pedro Santana instituiu a seus homens jornadas de 20 horas, segundo relatos ouvidos pela reportagem – o que levava alguns homens a dormir de pé sob as parreiras ou em cima de caminhões. Com isso, dizem os entrevistados, lucrava duas vezes em cima de um mesmo trabalhador: através de um contrato com a vinícola e outro com o produtor rural.

No final do mês, era comum estes trabalhadores não receberem nenhum centavo. Pelo contrário: muitas vezes, eles que acabavam devendo para os patrões, graças a um esquema que envolvia multas por faltar ao trabalho ou por envolvimento em brigas e atrasos no pagamento dos salários – o que deixava os trabalhadores dependentes de vales e empréstimos a juros exorbitantes fornecidos por Fábio Daros, parceiro de Santana no negócio e dono do alojamento onde aconteciam agressões com armas de choque, spray de pimenta e balas de borracha

“Esses vales eram fornecidos a juros extorsivos, que em alguns casos chegava a 100%”, afirma o delegado da Polícia Federal em Caxias do Sul, Adriano Medeiros do Amaral. “Eles pegavam empréstimo com o dono da pousada [Fábio Daros], e depois o valor era descontado em folha pela Fênix [Pedro Santana], o que mostra que eles atuavam em conjunto”, completa.

Em nota, a defesa de Fábio Daros informou que a pousada não tinha qualquer envolvimento nas questões trabalhistas e relativas à intermediação de mão de obra. “A pousada possuía situação de funcionamento regular perante os órgãos municipais e jamais chegou ao seu conhecimento os fatos narrados pelos trabalhadores”, informou a advogada de Daros.

A defesa de Pedro Santana preferiu não responder aos questionamentos da reportagem: “Não iremos nos manifestar perante o vosso canal, face a afiliação com o site Headline, que possui viés político e, consequentemente, não visa a informação do leitor, mas sim criar uma narrativa que atenda aos seus ideais”, justificou o advogado Augusto Giacomini Werner. A Repórter Brasil esclarece que todos os fatos narrados neste texto foram apurados por jornalistas profissionais guiados pelo interesse público e passaram por verificação. O espaço permanece aberto para a manifestação de Pedro Santana e de seus advogados.

Como mostrou o Headline, além das vinícolas, Santana fornecia mão de obra para a safra de uva e para a produção de frango da Brazilian Food, a BRF, e era comum os mesmos homens atuarem nas duas atividades – uva e frango – a depender da demanda dos empregadores. Segundo a PF, há indícios de que todos eles estavam submetidos ao mesmo esquema de vales e descontos na folha.

Trabalhadores ouvidos pela reportagem relataram que as condições da jornada no frango eram ainda piores do que na uva. Nesse caso, o  pesadelo era o “batidão”, em que os funcionários ficavam três dias trabalhando ininterruptamente, indo de granja em granja para apanhar frangos e levá-los para a BRF.

Na avaliação do Ministério do Trabalho e Emprego, entretanto, as condições de trabalho eram diferentes nos dois casos. “Estas pessoas que vêm pra apanha de frango não têm uma atividade sazonal, mas trabalham continuamente, então a relação é diferente. Eles tinham pagamento de salários e muitos não ficavam no alojamento, e sim em moradias que eles mesmos alugavam”, afirma Corte.

 “Isso não quer dizer que as condições de trabalho fossem ideais, e há inquérito em tramitação para apuração da situação específica dos trabalhadores da apanha do frango”, acrescenta Ana Lúcia Stumpf González, coordenadora da unidade do Ministério Público do Trabalho, o MPT, em Caxias do Sul, que concedeu entrevista por e-mail. O órgão é responsável por buscar a responsabilização de toda a cadeia produtiva após a operação de resgate.

Por não terem sido considerados vítimas de trabalho escravo, vários funcionários de Santana não tiveram direito à indenização de quase R$ 10 mil pagos pelas vinícolas após assinatura de Termo de Ajustamento de Conduta com o MPT e acabaram permanecendo em Bento Gonçalves. Alguns querem voltar para a Bahia, mas não têm dinheiro para a passagem. “Eu não me adaptei no Sul. Vim trabalhar na uva, acabei no frango, e ia embora depois da safra. Bateu esse revertério aí, ficaram com nosso dinheiro e eu fiquei sem condição de ir embora”, diz Dirceu*, um trabalhador que perdeu o ônibus oferecido no dia do resgate. Ele também alega que Pedro Santana ainda não pagou o que lhe deve. 

Outros querem continuar tentando a vida no Rio Grande do Sul – com sorte, desta vez em um trabalho digno. “Depois que eu saí da Fênix, eu passei dias só dormindo e me alimentando. Agora que estou começando a me recuperar”, conta Hamilton*.

·         Convenção coletiva pode ser acordo histórico

Pouca coisa parece ter mudado depois do resgate dos trabalhadores – cujo número foi atualizado para 210 pelo Ministério Público do Trabalho, com a inclusão de três pessoas que não estavam no local no momento em que ocorreu a ação, mas faziam parte do grupo.

Mesmo oficialmente interditado, o alojamento de Fábio Daros, no bairro Borgo, segue em funcionamento – não se sabe se os trabalhadores estão prestando serviços para as empresas de Santana ou apenas permanecem ali por não terem para onde ir. O imóvel até chegou a ser desocupado no dia 20 de março, mas só por algumas horas, antes da visita do ministro do Trabalho, Luiz Marinho: ele tirou uma foto na frente do galpão, falou rapidamente com jornalistas, e foi embora. Dali a pouco, um grupo de cerca de 50 trabalhadores voltou ao local. “Foi uma cena de cinema que montaram para o ministro”, relatou um morador do bairro que prefere não se identificar.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Agricultura Familiar aproveitou o escândalo e a visita do ministro para pedir mais “flexibilização” nas contratações e “uma visão mais sensível” para a realidade do setor. “A gente não quer fazer algo fora da lei, mas tem que ser algo viável para os pequenos agricultores. Os custos são altos, as propriedades são pequenas e muitos produtores esperam mais de um ano para receber o pagamento da safra”, justifica Postal, que entregou um ofício ao ministro.

Para o lado das indústrias, há inclusive vitórias. O governo federal, que havia suspendido a participação de Aurora, Garibaldi e Salton em eventos e negociações internacionais capitaneados pela Agência Brasileira de Exportações e Investimentos (Apex), voltou atrás na decisão de excluir as vinícolas das rodadas de negócio. Vinhos e sucos de uva das três marcas também seguem nas prateleiras nas principais redes de supermercados, incluindo aqueles que assumiram compromissos públicos contra o trabalho escravo.

Na capital do estado, empresários brindaram com vinhos e espumantes da Salton, Garibaldi e Aurora, em ato de desagravo às três empresas. Para os donos do dinheiro, o assunto é página virada, como decretou o editorial do maior grupo de comunicação do estado.

Aos trabalhadores terceirizados da agricultura resta a esperança de que, ao menos, o escândalo sirva para garantir direitos. “A região da serra é bem problemática. Há uma resistência por parte dos próprios sindicatos com relação ao assalariado rural”, explica Sérgio Poletto, segundo secretário da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais no Rio Grande Sul.

Mas a categoria está decidida a pressionar e suas reivindicações ganharam força: depois da repercussão do caso de trabalho escravo, a Fetar conseguiu retomar negociações que estavam travadas há anos para a assinatura de convenções coletivas de trabalho que podem mudar a vida dos assalariados em nove cidades da região, incluindo Bento Gonçalves e Caxias do Sul, onde nunca houve acordo coletivo.

 

Fonte: Repórter Brasil

 

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