Precisamos achar autoria de genocídio yanomami, diz ministro Silvio Almeida
O
ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos e Cidadania) diz já haver elementos
suficientes para apontar que houve crime de genocídio contra o povo yanomami.
Para ele, falta apenas achar a autoria.
"Não
se chega a uma tragédia desse tamanho sem responsabilidade", afirma em
entrevista à Folha. "Nunca existiu uma ação que tivesse um caráter
deliberado de virar as costas para o problema, pelo menos não desse jeito, com
um processo de desmonte das instituições", diz.
Segundo
ele, há fortes indícios de omissão do então presidente Jair Bolsonaro (PL) e da
então ministra (hoje senadora) Damares Alves (Republicanos-DF).
Almeida
também defende a criação de uma nova economia para os yanomamis para evitar que
eles caiam novamente no ciclo do garimpo. Sugere ainda a criação de uma
carreira para os servidores dos direitos humanos e defende punições rigorosas
aos golpistas do 8 de janeiro.
"Todo
golpista é potencialmente um violador de direitos humanos e, por óbvio, não
respeita a cidadania", diz. "Defender direitos humanos, portanto, é
defender que essas pessoas sejam punidas dentro do rigor da lei".
LEIA
A ENTREVISTA:
• O que o sr. viu em sua segunda viagem a
Roraima neste ano?
SILVIO
ALMEIDA - Sobrevoando a região, uma coisa é certa: não há como contemporizar
com o garimpo na região. Há uma contradição entre o bem-estar, a vida e a
cultura do povo yanomami e o garimpo. É incompatível uma coisa com a outra.
Mas,
ao mesmo tempo em que se verifica o estágio de devastação que a atividade fez
naquela região, fica muito evidente a altíssima complexidade do problema.
Existe uma relação intrínseca entre a atividade e o próprio modo como se
constitui a economia da região e, por consequência, a própria vida cultural.
Então, há uma naturalização dessa atividade como meio de reprodução da vida,
quase como se fosse uma atividade natural -o que, de fato, não é.
• Para além da retirada dos garimpeiros, é
preciso um trabalho de reconstrução da matriz econômica, para não cair nas
garras do garimpo ilegal [novamente].
SA
- Os garimpeiros que trabalham nas lavras ilegais são vítimas da situação?
Primeiro,
para deixar uma coisa bem evidente: os garimpeiros que estão ali na região
estão cometendo um ato ilícito. Ponto. O fato de alguém cometer um ato ilícito
e até mesmo ser explorado, que é o caso, não quer dizer que essa pessoa também
não possa explorar. Mesmo a pessoa que comete um ato ilícito tem que ter os
seus direitos respeitados.
Não
gosto dessa dicotomia vítima e culpada, prefiro exploradores e explorados. Mas,
se a gente for utilizar o termo vítima, isso cabe aos yanomamis, que estão passando
fome, tendo sua vida destruída, não têm mais como reproduzir a sua existência
naquela que historicamente é a região em que eles se reproduzem enquanto povo.
Mas
isso não quer dizer que a gente não tenha que olhar essa situação com o cuidado
que ela merece.
Essas
pessoas [garimpeiros] que lá estão, que são exploradas ao mesmo tempo que
cometem atos ilícitos, estão ali porque existe uma relação evidente entre
atividade econômica, lucro e ato ilícito.
É
preciso algum tipo de ação do Estado que faça com que não seja vantajoso para
esse indivíduo permanecer, é preciso que cometer o ato ilícito não traga nenhum
tipo de vantagem para essas pessoas. Ou seja, essas pessoas estão dentro de uma
lógica de exploração que não foi por elas criada, mas elas se servem disso e
retiram dali a sua possibilidade de subsistência.
Então
é preciso que não haja essa possibilidade, ao mesmo tempo que se criem
alternativas para que, de alguma forma, outras pessoas e mesmo essas mesmas
pessoas não tenham que se servir dessa atividade ilícita, que degrada o meio
ambiente e que destrói a vida dos indígenas.
• Com um programa de assistência para os
garimpeiros?
SA
- Essa questão de auxílio especial tem que ser articulada com o Ministério do
Desenvolvimento Social.
A
gente tem que discutir como fazer com que a região possa se sustentar, que as
pessoas vivam dignamente sem depender da atividade do garimpo. Isso só acontece
se houver uma intervenção do Estado, estabelecendo as condições materiais para
outro modo de existir, outro modo de organização econômica.
Se
para isso for necessário ampliar os programas de transferência de renda, aí
acho que é o que tem que ser feito. A gente não pode permitir que a ausência do
Estado crie as condições para que o crime seja a única forma de de subsistência
das pessoas.
• A gestão Bolsonaro e da Damares Alves é
responsável pela crise yanomami?
SA
- Precisamos apurar, mas não se chega a uma tragédia desse tamanho sem
responsabilidade. Essa pasta é responsável por relatar e por apontar as
violações de direitos humanos e encaminhar as providências necessárias para
isso, então o que nós vimos foi uma omissão que, a depender daquilo que for
levantado nas investigações pelos órgãos competentes, a gente pode classificar
como omissão criminosa. Há fortes indícios de omissão.
• Só na última gestão ou desde antes?
SA
- Ao que me consta, nunca existiu uma ação que tivesse um caráter deliberado de
virar as costas para o problema, pelo menos não desse jeito, com um processo de
desmonte das instituições. O que vivemos nos últimos quatro anos é inédito
desde a redemocratização.
O
Brasil está vivendo um sistemático descumprimento das decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que reconheceu que a situação era grave,
urgente e de possível dano irreparável, e determinou, ano passado, que o país
tomasse providências para salvar essas vidas. O Brasil não fez nada. Isso é
mais um caso de responsabilização.
• Houve genocídio do povo yanomami?
SA
- Um crime tem que ter materialidade e também autoria. A gente já tem a materialidade,
agora a gente precisa achar a autoria. Ou seja, temos todos os elementos que
apontam para o genocídio: a tentativa de destruição do modo de vida que permite
que aquela comunidade continue existindo conforme as suas tradições e sua
cultura; impedir que as pessoas retirem justamente desse modo de vida a forma
da sua subsistência material; impedir que as pessoas possam expressar sua
cultura; negar, quando é sua responsabilidade, auxílio diante de algo que pode
dizimar um determinado povo.
• Há limites quanto ao respeito às
diferenças entre culturas?
SA
- Por exemplo, culturas, não necessariamente indígenas, que tenham tradições
que atentem contra a vida? Essa é uma questão sobre a relação entre o universal
e o particular, o ponto mais sensível e mais difícil para tratar dos direitos
humanos.
• A gente está discutindo, por exemplo,
democracia. Existe um modelo universal de democracia, de igualdade? O que seria
pensar a igualdade no mundo que as identidades se fragmentam? Será que a gente
não precisa começar a pensar em uma política que torne possível construir uma
ideia de humanidade em que caibam todos nós, apesar das nossas singularidades?
SA
- E essa é uma questão difícil, porque a gente vai precisar construir uma vida
política, um modo de viver, de resolver conflitos, que englobem as diferenças
culturais e que permitam também que nós entremos em conflito, discutamos essas
diferenças, sem que elas nos impeçam de construir o universal. Aí está a
pergunta. Isso está no centro da discussão sobre o que é democracia. Não tem
uma resposta.
• Como o sr. tem visto até aqui o processo
punição aos manifestantes golpistas de 8 de janeiro?
SA
- As autoridades tiveram muito cuidado com aspectos relacionados aos direitos
humanos.
Todo
golpista é potencialmente um violador de direitos humanos e, por óbvio, não
respeita a cidadania. Defender direitos humanos, portanto, é defender que essas
pessoas sejam punidas dentro do rigor da lei. Fascistas, golpistas precisam ser
fortemente combatidos.
• Qual a diferença do que aconteceu para
uma tentativa popular de tomada do poder?
SA
- É a diferença entre golpe e revolução. Nesse caso, o que se quer é mudar as
coisas para se manter tudo como antes. Fora toda uma máquina de manipulação
cognitiva que se dá fundamentalmente pelas redes sociais, que não têm nenhum
compromisso com a democracia.
• Há semelhança entre o movimento
bolsonarista de hoje e os golpistas de 1964?
SA
- São fenômenos diferentes por causa do contexto histórico. Não lidar com os
traumas acaba, de certa maneira, permitindo que a história que antes era
tragédia se repita como farsa. O bolsonarismo é a farsa que surge da tragédia
que foi a ditadura militar de 1964.
Agora,
tem uma coisa que é importante dizer: o bolsonarismo vai além dessa figura que
o batiza. Ele está relacionado ao que vou tratar no meu próximo livro:
tendências estruturais e que renascem em períodos de crise.
É
a dependência econômica, a desigualdade e o desprezo pelos pobres, que fica
evidente no caso yanomami; o autoritarismo, a aversão à democracia, a
inconformidade com os processos de participação popular; e o terceiro pilar é o
racismo, o desprezo por indígenas e negros, disfarçado de um discurso de
meritocracia, com flertes com o supremacismo branco, o que é uma grande
novidade.
Ou
seja, é um fenômeno que vai continuar presente se a gente não for capaz de
lidar com aquilo que o alimenta: a pobreza, a miséria, instituições fracas na
hora de combater a desigualdade e uma leniência, do Estado brasileiro, com a
violência e a tortura.
• O Estado, do jeito como ele está
organizado hoje, é incapaz de lidar com essas questões?
SA
- A grande missão diante de tudo que está acontecendo é estabelecer a política
nacional de direitos humanos como uma política de Estado, não algo insulado
dentro do ministério.
Defendo
que deve haver uma carreira de Estado em direitos humanos, como a gente vê na
Saúde e a gente viu na Funai, no Ibama, no Inpe, que têm servidores de carreira
altamente compromissados com o serviço público.
Os
direitos humanos também têm que ter um servidor técnico, um analista, que pode
ter uma formação inicial em direito, serviço social, psicologia, enfim, mas que
seja servidor do Estado brasileiro e especialista em promoção e implementação
da política de direitos humanos e da cidadania.
• Muitos historiadores apontam que o
Brasil não responsabilizou os atores da ditadura militar. O país precisa mudar
sua estrutura de memória e Justiça?
SA
- Há várias formas de se pensar isso, mas há iniciativas que precisam ser
aprimoradas. A gente precisa contar essa história tal qual ela aconteceu, como
no Holocausto, e honrar nossos mortos. Não se faz sociedade decente que não
ritualize a morte das pessoas.
A
gente precisa ficar enlutado por aqueles que morreram na ditadura e depois
também, por exemplo, pelas pessoas que morreram por conta da negligência do
Estado na pandemia da Covid-19. A gente precisa cultivar a memória e
estabelecer a verdade, para saber o que aconteceu e quem foram os responsáveis.
Apib pede que Lula retire projeto de lei
de Bolsonaro que prevê exploração de terras indígenas
A
Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) vai enviar ao governo de Luiz
Inácio Lula da Silva (PT) nesta segunda-feira (13) uma nota técnica pedindo o a
retirada e arquivamento do projeto de lei (PL) 191, que prevê a regulamentação
de atividades econômicas em terras indígenas.
A
proposta, que foi enviada pelo Executivo em fevereiro de 2022, durante o
governo de Jair Bolsonaro (PL), tramita na Câmara dos Deputados. A Apib
argumenta que o PL é uma das principais ameaças aos "direitos reconhecidos
aos povos indígenas na Constituição".
Chamado
de "x-tudo", o projeto trata da regulamentação de mineração, turismo,
pecuária, exploração de recursos hídricos e de petróleo e gás em terras
indígenas.
"O
Estado brasileiro deve respeitar e dar subsídios para que os povos indígenas
possam exercer suas culturas de maneira plena, isso implica em garantir a
integridade territorial ", diz a nota.
O
documento também cita os efeitos do garimpo ilegal das terras.
O
governo Lula (PT) declarou emergência em saúde pública no dia 20, após o
presidente receber imagens de indígenas com quadro de desnutrição grave. Ele
fez uma visita a Roraima no dia seguinte, o que deu visibilidade à explosão de
casos de desnutrição, doenças associadas à fome (como diarreia e infecções
respiratórias) e malária.
Como
mostrou a Folha de S.Paulo, a Força Aérea Brasileira (FAB) prorrogou até maio a
abertura parcial o espaço aéreo da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, para a
saída voluntária de garimpeiros. Agora eles têm a possibilidade de deixar a
região até o dia 6 de maio.
A
medida faz parte da Operação Escudo Yanomami, deflagrada no último dia 31,
quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) publicou decreto ampliando o
poder de atuação dos ministérios da Defesa, da Saúde, do Desenvolvimento Social
e Assistência Social, Família e Combate à Fome e dos Povos Indígenas, além de
prever a criação da Zida.
Fonte:
FolhaPress
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