Praga 'importada'
da Costa do Marfim ameaça produção de cacau, na Bahia
“Aquele ouro que nasce nas terras de Ilhéus,
da árvore do cacau”, como escreveu Jorge Amado, pede socorro novamente. Já não
é mais a era dourada cacaueira na Bahia narrada nos romances do escritor.
Contudo, o fruto que gera o chocolate ainda cumpre um importante papel no
estado, onde há 40 mil produtores de cacau, espalhados por 126 municípios.
Estes cacauicultores, a grande maioria da agricultura familiar, sofrem com a
possibilidade de enfrentar uma nova praga desde a chegada da vassoura de bruxa,
no final dos anos 1980: o Phytophthora megakarya.
Por
ironia, este patógeno pode chegar a qualquer momento no Porto de Ilhéus, com
aval do governo federal. A espécie citada, considerada como praga
quarentenária, não é encontrada nas plantações nacionais, apenas na África. Ela
é bem invasiva e pode destruir plantações de cacau inteiras, causando uma
podridão generalizada nos cacaueiros.
Pois
bem. A Costa do Marfim, maior produtora de sementes de cacau do mundo, tem esta
doença. A importação da amêndoa marfinense chegou a ser proibida no Brasil
entre 2012 e 2018, pelo grau de perigo desta praga chegar ao território
nacional, por causa da falta de controle das sementes. Até insetos teriam
chegado de lá. Depois, uma instrução normativa, em 2020, voltou a liberar a
importação, desde que a Costa do Marfim cumprisse alguns requisitos
fitossanitários, entre eles a exposição das sementes ao gás brometo de metila,
que mata o Phytophthora megakarya e outras doenças. O país africano não utiliza
o produto exigido.
Ainda
em 2020, a Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (Aipc),
alegando dificuldades de suprir a demanda das fábricas com as amêndoas
nacionais, encaminhou um ofício à ministra da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento na época (Mapa), Tereza Cristina. Considerada a “musa do veneno”,
devido à liberação de agrotóxicos no Brasil, ela neste caso ‘surpreendeu’, pois
atendeu o pedido das indústrias e retirou, em nova instrução normativa (número
125), datada de 23 de março de 2021, a exigência do gás.
Desde
então, segundo números do Aipc, o Brasil recebeu 59.768 toneladas de amêndoas
marfinenses em 2021 e outras 11.034 em 2022. Todas sem as exigências definidas
antes da intervenção de Tereza Cristina. No sábado de Carnaval, dia 18 de
fevereiro de 2023, um novo carregamento chegou com 10 mil toneladas no Porto de
Ilhéus. A importação de um produto que o próprio país tem prejudica o produtor
local, pois a chegada das sementes da
Costa do Marfim, maior produtor mundial e onde a mão de obra e o produto são
baratos, tende a desvalorizar os preços nacionais. Mas isso é um assunto para
mais adiante. O foco agora é: afinal, quais os riscos de uma sementinha desta
contaminar cacaueiros por todo o país?
Outra
forma de matar o Phytophthora megakarya é fermentar as sementes de cacau a uma
temperatura que pode chegar a 50°C. O Mapa alegou que uma técnica foi até a
Costa do Marfim e elaborou um relatório em que coloca o risco da doença chegar
ao Brasil como grau 1, o menor de uma tabela que vai até 7.
Ela
visitou um produtor local e uma cooperativa, constatando que a exigência da
fermentação estava de acordo com a
instrução normativa, entre outras exigências. O problema está em um
detalhe: a visita técnica ocorreu em apenas um cacauicultor e sua cooperativa.
Segundo
a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a Costa
do Marfim tem 800 mil produtores de cacau, a maioria da agricultura familiar. E
fica o risco de considerar que a visita em um local seja suficiente para
afirmar que todas as sementes do país africano serão fermentadas de modo a
matar o Phytophthora megakarya que vem ao Brasil.
• Equívocos
“Considerando
que os números atuais apontam que a Costa do Marfim tem cerca de 1 milhão de
agricultores de cacau, a visita [do Mapa] de apenas um pequeno agricultor e uma
unidade cooperativa, sem aparatos técnicos e tempo de observação, é
insuficiente para afirmar que há adoção de todas as práticas recomendadas e
exigidas pelo governo brasileiro para importação de amêndoas de cacau”, afirma
Jadergudson Pereira, engenheiro agrônomo, doutor em fungos pelo Royal Botanic
Gardens, de Londres, e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).
O Phytophthora é uma doença fúngica.
“A
visita técnica do Mapa é cheia de equívocos e não aponta o real perigo da vinda
de doenças quarentenárias que não existem no país e apresentam sérios riscos
para nosso cacau. Como podemos desenvolver nosso cacau, criando tecnologias e
modernizando as plantações, se estamos abrindo a guarda para a introdução de
novas pragas? Esta nota que abriu caminho para a vinda de pragas precisa ser
revista, com urgência”, completa o professor.
Jadergudson
chama atenção para alguns problemas cruciais. O motivo para liberação da
importação é que a nota técnica do Mapa aponta que na Costa do Marfim
“ferve-se” todas as suas sementes, que viram amêndoas nesse processo de fermentação,
matando todas as pragas. No Porto de Ilhéus, os fiscais ainda fazem uma
amostragem e só liberam quando o produto
é notificado como apto. Depois, o carregamento vai para a fábrica de
processamento, que fica a cinco quilômetros do porto.
“Se
estivéssemos falando do Porto de Santos, nem estaria discutindo isso. Mas as
sementes chegam em Ilhéus. Da chegada ao navio até a fábrica, o caminhão passa
por diversas plantações de cacau da região. Há elevado risco de que amêndoas
importadas da África sem a devida fiscalização e tratamento quarentenário
cheguem a áreas com cacaueiros vivos em qualquer descuido. Basta uma semente
cair nas plantações. A fiscalização no porto também não é suficiente. Era
preciso fazer em cada semente, pois existem alguns assintomáticos, que carregam
a doença que não é possível ver a olho nu”, completa.
Curiosamente,
uma visita do Mapa ao país africano em 2018 contradisse a última visita que
facilitu a importação. Lembra que o grau de perigo na visita mais atual era de
1, numa escala de 7? A recomendação da análise anterior apontava 6,11, um risco
alto. “Se a praga for introduzida no Brasil, as perdas econômicas e sociais
para a cadeia produtiva do cacau serão altas”, apontou o relatório.
Segundo
a presidente executiva da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de
Cacau, Anna Paula Losi, a associação cumpre todas as normas vigentes e tem um
rigoroso controle de qualidade com as amêndoas de fora. “A gente só pode cortar
cacau de três origens, Gana, Indonésia e Costa do Marfim. A autorização só é
dada após rigorosa análise de praga. Nos últimos anos nenhuma praga, nenhum
inseto, nenhuma suspeita foi identificada pelo Laboratório Agronômico
credenciado pelo Mapa. É preciso entender que existe uma norma ativa do
Ministério da Agricultura. A indústria cumpre todas as regras nacionais e
internacionais de responsabilidade social”, disse.
A
Aipc alega que a produção brasileira não supre a demanda das indústrias, por
isso a necessidade da importação. “O parque moageiro brasileiro processa
aproximadamente 220 mil toneladas de cacau, atendendo o mercado nacional e
ainda exportando”, avisa.
Eles
alegam que o cacau brasileiro não chega a esta quantia, mas as últimas
pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dizem o
contrário. Segundo a entidade, em 2021 o mercado nacional produziu 302 mil
toneladas de amêndoas de cacau, sendo 137.622 toneladas somente na Bahia. Em
2020, o Brasil chegou a 269 mil. Todos estes números são maiores do que a
indústria necessita. A reportagem procurou a Ceplac (Comissão Executiva do
Plano da Lavoura Cacaueira) para comentar o assunto, mas não obteve retorno do
órgão subordinado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
“Nós
somos autossuficientes, sim. Precisamos de investimentos para armazenamento,
entre outras estruturas. O Ministério da Agricultura diz que precisamos ser
mais competitivos que a Costa do Marfim. Eu pergunto como vamos competir com
eles? Produzindo por meio de trabalho escravo e exploração infantil? Jamais
vamos concorrer com o preço deles, pois é uma mão de obra barata. Corremos
riscos de praga e financeiros também”, diz a presidente da Associação Nacional
dos Produtores de Cacau (ANPC), Vanuza Lima Barroso.
“Nós
estamos jogados na lata do lixo. Produtor de cacau é lixo no nosso país. Como
vamos modernizar nossa lavoura se o agricultor familiar está vendendo almoço
para pagar a janta?”, completa Vanuza.
A
Costa do Marfim é o maior produtor de cacau no mundo, mas também sofre com o
processo de cultivo. Mais de 80% das pessoas que trabalham nas lavouras de
cacau estão abaixo da extrema pobreza. Uma pesquisa da Fundação Walk Free e da
ONG Vérité, de 2018, apontou que 2 mil crianças foram traficadas no país para
trabalharem nas plantações cacaueiras. Estima-se, segundo outro estudo da
Universidade de Chicago, que mais de 800 mil crianças estão trabalhando com
cacau e fora da escola.
Fonte:
Correio
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