sexta-feira, 31 de março de 2023

Novo Ensino Médio e as estranhas relações entre governo, fundações e associações empresariais

“O estranho, o que está fora do lugar, é o MEC de Lula defendê-la”. A frase é do professor Daniel Cara e se refere à reforma educacional que originou o Novo Ensino Médio – NEM. Realmente, parece haver algo muito estranho, pois a concepção dessas mudanças foi feita e implementada nos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, com os quais o atual governo não compactua. E mais do que uma divergência de orientações políticas, o NEM tem se revelado um fracasso no cotidiano escolar. Tanto é que, no último 15 de março, uma legião de professores, pesquisadores, pais e alunos saiu pelas ruas pedindo sua revogação. “Ninguém que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade escolar, defende a reforma do Ensino Médio. Portanto, professores, formadores de professores, pesquisadores, estudantes e suas entidades e movimentos querem a revogação”, completa Cara.

Então, o que há entre o MEC de gestões passadas com a gestão atual? “Não tem como negar, o MEC defende – ainda que sem coragem – o NEM”, reconhece o Cara, em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O professor, que também integrou a equipe de transição do governo Lula, revela que, enquanto quem está com o pé na escola não aceita o NEM, “do outro lado, há fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de educação e, infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula” insistindo no modelo. “A atual gestão do MEC é devedora do programa e de relações estabelecidas com fundações e associações empresariais”, diz Cara.

O mais terrível é que o setor privado parece estar dando as cartas num jogo que era para ser do poder público. “Prefiro pensar que não é verdade, mas há relatos de servidores de carreira que denunciam que a ocupação de alguns cargos de confiança passou e passa pelo crivo ou pela indicação de dirigentes burocratas de fundações e associações empresariais sediadas em São Paulo”, lamenta o professor. Ele ainda explica que “há uma questão de autoria em jogo”. “A reforma do Ensino Médio é a primeira e única política integral e exclusivamente elaborada por associações e fundações empresariais e seus burocratas. Os objetivos da reforma são muitos, mas os centrais são: concretizar uma nova função social à escola, transformando-a em um espaço de formação do indivíduo neoliberal, aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo (...) e reduzir custos com profissionais da educação”, detalha.

No entanto, o professor Daniel Cara lembra que isso ainda não é tudo. Além de todas essas questões de fundo que não têm aparecido nos debates públicos sobre o NEM, ele destaca que os itinerários formativos são um caos, além de aumentarem a desigualdade entre as escolas que não são capazes de oferecer todos os itinerários a seus alunos. Para ele, se nada for feito, num futuro bem próximo pagaremos um preço alto por esse desmonte da escola e das políticas públicas em educação. “O esvaziamento da escola por políticas como a reforma do Ensino Médio facilita a ocorrência de casos como o ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, que resultou em uma morte e cinco feridos. O estudante era de Ensino Fundamental, mas sem dúvida que a lógica de esvaziamento de políticas públicas colabora com esses ataques mobilizados pelo extremismo de direita”, acrescenta o professor.

LEIA A ENTREVISTA:

•        O que fazer com o Novo Ensino Médio – NEM?

Daniel Cara – Não existe alternativa. É preciso revogar e estabelecer um novo modelo, factível às redes públicas. Algo que o NEM não é.

•        Como construir esse processo de revogação do NEM? Quem são os atores nesse processo?

Daniel Cara – Ninguém que entende verdadeiramente de educação, que conhece a realidade escolar, defende a reforma do Ensino Médio, que estabeleceu o NEM. Portanto, professores, formadores de professores, pesquisadores, estudantes e suas entidades e movimentos querem a revogação do NEM.

Do outro lado, há fundações e associações empresariais, secretarias estaduais de educação e, infelizmente, o Ministério da Educação do governo Lula. Nesse momento, não tem como negar, o MEC defende – ainda que sem coragem – o NEM.

Diante desse quadro, o processo de revogação deve ser feito por um projeto de lei de elaboração coletiva que altere, em primeiro lugar, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Isso é fundamental para desconstruir o NEM, principalmente os itinerários formativos, absurdo maior dessa reforma.

•        Quais as mudanças previstas para o Exame Nacional do Ensino Médio – Enem? Por que elas não devem ser implementadas?

Daniel Cara – Segundo o desejo do ministro [da Educação, Camilo Santana], dos secretários estaduais de educação e das associações e fundações empresariais que atuam na educação, o Enem deve ser pautado pelos itinerários formativos. Se isso ocorrer, vamos cristalizar a reforma do Ensino Médio porque toda a indústria do vestibular vai se voltar para ela. E esse movimento, de busca pela revogação do NEM, será praticamente irreversível.

Por isso, o MEC não revoga o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio feito pelo governo Jair Bolsonaro, porque quer manter o prazo de mudar o Enem e, por consequência, cristalizar o NEM em 2024. Esse é o objetivo até aqui de Camilo Santana. E é triste ver o governo Bolsonaro pautando o governo Lula.

•        Que questões de fundo há nas frentes que ainda defendem o NEM?

Daniel Cara – Nesse momento, há uma questão de autoria em jogo. A reforma do Ensino Médio é a primeira e única política integral e exclusivamente elaborada por associações e fundações empresariais e seus burocratas. Os objetivos da reforma são muitos, mas os centrais são: em primeiro lugar, concretizar uma nova função social à escola, transformando-a em um espaço de formação do indivíduo neoliberal, aquele que acredita que é empreendedor de si mesmo. Em segundo lugar, reduzir custos com profissionais da educação.

Nesse último caso, a lógica é simples: se qualquer professor pode dar qualquer área nos itinerários, os secretários estaduais não precisam mais fazer concursos de professores especialistas. Diminui a demanda.

Além disso, a reforma gera desigualdades, por exemplo, ao não ofertar todos os itinerários em todas as escolas. Isso prejudicará a democratização da Educação Superior. O Brasil não tem as mínimas condições de implementar a reforma. E se os itinerários formativos fossem facultativos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e não fossem a base do Enem, eu duvido que sobreviveriam mais de um ano. Por isso, hoje, são obrigatórios.

•        Ao longo do desenho dessa reforma do Ensino Médio, a matéria passou pelo Conselho Nacional de Educação e outros fóruns do tipo. Qual foi a manifestação desses fóruns e como têm se posicionado atualmente?

Daniel Cara – Ainda são órgãos pautados pelos governos Michel Temer e Jair Bolsonaro. Ou seja, defendem a reforma. Veja, o estranho, o que está fora do lugar, é o MEC de Lula defendê-la.

•        Como podemos compreender todo o processo de construção do NEM e evitar que isso volte a acontecer na construção e implementação de uma outra proposta?

Daniel Cara – Defendendo a democracia. O NEM jamais seria proposto, apresentado por Medida Provisória e aprovado fora do contexto do golpe de 2016, liderado por Michel Temer, e nunca seria implementado se não fosse o governo Jair Bolsonaro, que inclusive fez uso da pandemia para acelerar a implementação do NEM.

•        O que as mobilizações e pressões da comunidade escolar têm revelado sobre a imposição de reformas nos modelos de ensino, como o NEM?

Daniel Cara – O que tem sido revelado é o caos e o desalento. Toda a comunidade escolar rejeita o NEM. Quem consegue fazer algo, faz escapando ou tendo que burlar a reforma. Mas não pode permanecer assim, é insustentável, por isso é preciso revogá-lá.

•        Por que demorou três meses para o governo se manifestar sobre o tema, ainda assim propondo uma consulta pública nacional? O que a atual gestão do MEC pensa do NEM?

Daniel Cara – A atual gestão do MEC é devedora do programa e de relações estabelecidas com fundações e associações empresariais. Prefiro pensar que não é verdade, mas há relatos de servidores de carreira que denunciam que a ocupação de alguns cargos de confiança passou e passa pelo crivo ou pela indicação de dirigentes burocratas de fundações e associações empresariais sediadas em São Paulo. Se isso de fato ocorreu, é lamentável, pois significa que estamos vivendo uma continuidade do governo Temer em pleno governo Lula.

Diante desse quadro, já é possível cravar que o MEC abriu consulta pública graças à pressão que fizemos. Caso contrário, seguiria tocando a reforma. Agora, a consulta pública é homologatória. Não foi feita para mudarmos o modelo.

•        O senhor defende que seja enviado ao “Congresso Nacional um projeto de lei para substituir o equívoco dos itinerários formativos por áreas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”. Gostaria que detalhasse quais são esses equívocos. Por que esses itinerários têm sido apontados como um dos piores aspectos do NEM?

Daniel Cara – Em primeiro lugar, os itinerários formativos dão problema em todos os países que optaram por esse modelo. Adiantar a escolha da profissão aos 15 ou 16 anos é equivocado. Em segundo lugar, o Brasil não está preparado para implementar o modelo. A questão é simples: as escolas não têm condições de ofertar todos os itinerários e, se não faz isso, prejudica os alunos.

•        O senhor também tem apontado que é fundamental implementar as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs do Ensino Médio de 2012, que nunca foram efetivadas. Que diretrizes são essas? E por que não saem do papel?

Daniel Cara – As DCNs foram elaboradas no governo Dilma e nunca foram tiradas do papel porque exigem esforço de prioridade ao ensino médio. O NEM foi imposto porque se quis, também, evitar as DCNs de 2012.

Acesse aqui as Diretrizes Curriculares Nacionais – DCNs do Ensino Médio de 2012.

•        De modo geral, melhorar a educação no Brasil deve passar essencialmente pelo quê?

Daniel Cara – Financiamento adequado da educação, valorização dos profissionais e gestão democrática. A agenda jamais cumprida no Brasil.

•        O governo federal está a completar 100 dias. Qual sua análise dos movimentos na área da educação nesse período?

Daniel Cara – Em 100 dias, ainda não sabemos ao que o MEC veio. Meu colega de transição governamental, Alexandre Schneider, concorda comigo. Ele publicou um artigo n’O Globo cujo título é “À espera do Ministério da Educação”. Tenho divergências com o Schneider, o que é salutar, mas, nesse caso, concordo com o título.

•        Deseja acrescentar algo?

Daniel Cara – O esvaziamento da escola por políticas, como a reforma do Ensino Médio, facilita a ocorrência de casos como o ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, que resultou em uma morte e cinco feridos. O estudante era de Ensino Fundamental, mas sem dúvida que a lógica de esvaziamento de políticas públicas colabora com esses ataques mobilizados pelo extremismo de direita fascista e neonazista e pela cultura de ódio, especialmente contra as mulheres.

 

       Os desafios da Educação diante da necropolítica. pOR Vicente Thiago Freire Brazil

 

"O covarde ataque de assassinou uma professora de 71 anos, feriu mais cinco outros docentes e estudantes em São Paulo é sintomático de um tempo. Somente o espírito público de serviço à sociedade por meio da educação mantém alguém septuagenária em atividade em sala de aula. A mão que esfaqueou aquela idosa até à monstruosa morte foi de um jovem, mas as digitais são de uma política genocida que, desde sempre, escolheu a Educação como vítima prioritária", escreve Vicente Thiago Freire Brazil, professor da Universidade Estadual do Ceará e doutor em Filosofia.

<<< Eis o artigo.

A Educação – e aqui nomeio-a com letra maiúscula para frisar que não estou a falar de um modelo, segmento ou proposta específica, mas da operação reflexiva de fundamento coletivo que demarca certa noção de humanidade – tem sido violentamente atacada no atual cenário político brasileiro. A sistematicidade desta violência contra a Educação – e todos os agentes que a constituem – pode ser observada de modo multifatorial: alteração dos dispositivos das políticas educacionais, construção social de um ambiente adverso ao processo educacional em si que se materializa no desenvolvimento da política do ódio contra os atores partícipes da causa educativa.

A autopropagandeada reforma para estabelecimento de um “Novo” Ensino Médio não passa de um processo de esterilização de futuros. A ilusão mais difundida do NEM – e como um educador cearense, não há abreviatura/onomatopeia melhor para expressar meu desprezo por essa política deseducacional – é aquela que vende a liberdade discente de escolha de itinerários. Se na letra morta da legislação tudo ganha brilho e cores, na experiência fática do chão da sala de aula o que testemunhamos é o futuro de milhares de jovens da Educação Pública – friso este enorme segmento, pois as instituições privadas fizeram apenas adequações cosméticas ao NEM – sendo abortado pois não existem opções muito menos autonomia para escolhas. É preciso revogar o NEM já!

O covarde ataque de assassinou uma professora de 71 anos, feriu mais cinco outros docentes e estudantes em São Paulo é sintomático de um tempo. Somente o espírito público de serviço à sociedade por meio da educação mantém alguém septuagenária em atividade em sala de aula. A mão que esfaqueou aquela idosa até à monstruosa morte foi de um jovem, mas as digitais são de uma política genocida que, desde sempre, escolheu a Educação como vítima prioritária. Como educadores não queremos mais armas, nem mais ódio, acreditamos na potência humanizadora da Educação, por isso, neste momento tão decisivo da história brasileira, nós educadores continuaremos a defender o educar como um ato de coragem, como a maior desobediência civil que alguém pode ter contra uma política da morte.

 

Fonte: Entrevista especial com Daniel Cara, em IHU OnLine

 

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