quinta-feira, 9 de março de 2023


 'Liberdade religiosa ainda não é realidade no Brasil': os duros relatos de ataques por intolerância

Um pai de santo celebrava um culto em um terreiro de candomblé em Vitória da Conquista, na Bahia, quando, na noite de 24 de janeiro de 2022, começou a ouvir, em altíssimo volume, frases como "Jesus Salva!".

Do lado de fora, um homem, que se declarou evangélico, acabara de estacionar um carro de som para interromper a cerimônia e tentava "exorcizar" quem chegava ao local. Indignado, o líder religioso registrou um boletim de ocorrência e fez uma denúncia à Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia.

Três meses depois, em 25 de abril, uma jovem de 16 anos foi agredida em uma escola municipal de Joinville, em Santa Catarina, após dizer que era praticante de umbanda, religião de matriz africana.

Segundo a mãe da adolescente, que é mãe de santo e registrou um boletim de ocorrência, sua filha conversava sobre religião com um colega de turma quando outra aluna ouviu e, entre outras ofensas, disse que a estudante "cultuava o demônio".

Em 2 de novembro, uma mãe de santo foi impedida de entrar em um hospital estadual na cidade do Rio de Janeiro para atender um paciente na UTI. Segundo ela, que dirige um terreiro de candomblé em Guapimirim, na Baixada Fluminense, os funcionários alegaram que a família não teria autorizado sua entrada.

Depois de esperar por cerca de seis horas do lado de fora, a mãe de santo registrou um boletim de ocorrência e denunciou o caso à Comissão de Combate à Discriminação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma lei federal de 2000 assegura o livre acesso de líderes religiosos aos hospitais da rede estadual e privada atender pacientes. "Os ataques estão sempre rondando o povo do axé", lamenta Ana Paula Santana de Souza, conhecida como Iya Paula de Odé, mãe de santo que foi impedida de entrar em um hospital de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, para fazer um ritual em Jerônimo Rufino dos Santos Júnior, de 39 anos, que sofreu um AVC em 31 de outubro e morreu cinco dias depois. "Implorei ao segurança para conversar com o diretor de plantão, mas não adiantou. O racismo religioso foi nítido quando minha advogada conseguiu entrar na unidade e eu, não. Isso não teria acontecido se fosse outro segmento religioso."

        Média de três denúncias por dia

O número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. O Estado recordista foi São Paulo (270 denúncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51).

A maior parte foi feita por praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Seis em cada dez vítimas são mulheres. Só nos primeiros 20 dias de 2023, o Disque 100, canal para denúcias de violações de direitos humanos, registrou 58 ocorrências. "A intolerância religiosa, assim como o racismo, está, desde o período colonial, atrelada à história da formação da sociedade brasileira. Atualmente, faz parte das relações sociais cotidianas", afirma Ivanir dos Santos, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR).

"A liberdade religiosa, assegurada na Constituição, ainda não é uma realidade. Na década de 1980, os ataques, principalmente no Estado do Rio, passaram a ser praticados pelo poder paralelo, que proibia o funcionamento de templos religiosos de matrizes africanas dentro das favelas."

Mas o número de casos de intolerância religiosa no país pode ser maior do que o registrado pelo governo federal, aponta Nilce Naira do Nascimento, a mãe Nilce de Iansã, coordenadora nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro).

Em julho de 2022, a entidade divulgou o relatório "Respeite o Meu Terreiro — Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religiões de Matriz Africana", que ouviu lideranças de 255 comunidades tradicionais de terreiros, no qual 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso. "Todos nós já fomos discriminados. Muitos nos olham como se fôssemos de outro planeta. Somos sempre apontados, seja por nossa indumentária, seja por nossos guias, que usamos para nossa proteção. Somos uma tradição de matriz africana. A maioria do nosso povo é formada por negros e negras. Isso incomoda. Mas, não deixo de fazer nada por causa do racismo religioso. Incentivo a quem sofreu violência a ir à delegacia e denunciar. O Estado é laico, e isso tem que ser respeitado", afirma.

"Nasci e me criei dentro de terreiro. Nossas portas estão abertas para qualquer pessoa. Somos um espaço de acolhimento e escuta, que não discrimina ninguém. Lutamos para construir uma cultura de paz. Esse espaço sagrado merece respeito."

        Número de casos quintuplicou em 2022

No ambiente virtual, o número de casos de intolerância religiosa quintuplicou em um ano. Segundo levantamento da Safernet, ONG que mantém uma central de denúncias de violações contra direitos humanos, como racismo, misoginia e xenofobia, os ataques online saltaram de 614, entre janeiro e outubro de 2021, para 3,8 mil, no mesmo período de 2022, um crescimento de 522%. "É importante denunciar toda e qualquer manifestação que ataque ou incite violência contra pessoas ou grupos em razão de sua orientação religiosa. As autoridades precisam ser provocadas para tomar providências e investigar os casos", explica Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet. "Quando o crime acontece na internet, a vítima, ou qualquer pessoa, pode fazer a denúncia no site denuncie.org.br. A abordagem criminal é importante para desfazer a percepção de que a internet é uma terra sem lei, mas não é suficiente. A mudança só virá como resultado da educação. O melhor antídoto para o discurso de ódio é a informação".

O advogado Arnon Velmovitsky, presidente da CCIR-OAB-RJ, explica que a Constituição garante a todo cidadão o direito de escolher sua religião e, também, o direito de culto, ou seja, de exercer sua religião plenamente.

Em caso de intolerância religiosa, isto é, da invasão de terreiros, da interrupção de cultos e do vandalismo de imagens, a vítima deve procurar uma delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intolerância e registrar um boletim de ocorrência. É importante reunir provas, fotos ou vídeos e testemunhas para viabilizar a punição do agressor. "Entendo que a educação ainda é o melhor caminho, mas não é o único. Vamos lançar uma cartilha para conscientizar a população. Além disso, é indispensável ter leis com penas mais severas e multas de valor elevado para inibir essa prática maléfica."

        'Intolerância religiosa mata!'

Nem mesmo famosos escapam ilesos da ira de fanáticos religiosos. Em 9 de julho, a atriz Cleo e o empresário Leandro D'Lucca renovaram seus votos de casamento em uma cerimônia realizada pelo babalorixá Paulo de Oyá. "Abençoados no axé", escreveu ela em seu perfil no Instagram.

Logo, alguns seguidores começaram a postar mensagens preconceituosas. Uns disseram que Cleo estava "cega". Outros lamentaram que estivesse "desviada de Jesus". "Intolerância religiosa mata!", desabafou a atriz nas redes sociais. "Foi um turbilhão de sensações: medo, impotência, desrespeito, incredulidade... Não foi a primeira vez, mas foi a de maior proporção. Estava ali celebrando algo, renovando os meus votos de casamento, e algumas pessoas se aproveitaram disso para destilar ódio e preconceito", lamenta Cleo. "Recomendo substituir o ódio por pesquisa e o preconceito por leitura para entender melhor sobre religiões de matriz africana. Precisamos aprender a respeitar o diferente para avançarmos como sociedade. Vivemos em um Estado laico. As pessoas têm o direito de professar sua fé. E a obrigação de respeitar."

        Símbolo de luta contra o racismo religioso

A intolerância religiosa não é um fenômeno recente no Brasil. Em outubro de 1999, Gildásia dos Santos, a mãe Gilda de Ogum, teve uma foto sua, com trajes de candomblé e uma oferenda aos pés, publicada em uma reportagem do jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que acusava religiões de matriz africana de praticar charlatanismo.  "Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes", dizia o título da matéria. Em poucos dias, a vida de mãe Gilda de Ogum virou um inferno.

Ela teve seu terreiro invadido e suas imagens depredadas. Os vândalos ainda agrediram física e verbalmente a fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum. Aos 65 anos, ela sofreu um infarto e morreu em 21 de janeiro de 2000.

Sua filha, Jaciara Ribeiro dos Santos, processou a Universal, que foi obrigada a publicar uma retratação no seu jornal e a pagar, em setembro de 2008, uma indenização de R$ 145,2 mil por danos morais e uso indevido de imagem à família de mãe Gilda. Em sua memória, 21 de janeiro virou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. "O Brasil sempre teve uma noção frágil de laicidade. O sistema de crenças dos 5 milhões de pretos e pretas escravizados no Brasil sempre foi satanizado pelos colonizadores portugueses", diz Sidnei Nogueira, o Sidnei de Xangô, doutor em Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Intolerância Religiosa (Jandaíra, 2020). "Intolerância tem a ver com desrespeito. É quando um determinado grupo toma sua religião como superior à dos demais e não respeita a do outro. Estamos vivendo um momento de fanatismo religioso."

        Respeitem o meu axé

Em junho de 2015, outro caso de intolerância religiosa ganhou repercussão nacional. Na noite do dia 14, a estudante Kayllane Coelho Campos, então com 11 anos, foi atingida por uma pedra ao sair de um culto de candomblé na Vila da Penha, na Zona Norte do Rio.

A pedra foi arremessada por dois jovens que estavam em um ponto de ônibus. Segundo a família da vítima, os agressores conseguiram fugir. Três dias depois, a caminho do Instituto Médico Legal (IML) para fazer exame de corpo de delito, a garota, acompanhada da avó, que é mãe de santo, voltou a ser atacada. "Vai queimar no inferno!", gritou um homem que passava pelo local.

"Guardo duas lembranças daquele dia: primeiro, o sangue sujando minha roupa branca e o desespero de não poder fazer nada", observa Kayllane, hoje com 18 anos. "De lá para cá, a situação só piorou. Está cada vez mais difícil conviver com pessoas que não respeitam as diferenças e, pior, não seguem a Bíblia que diz: 'Amarás ao teu próximo como a ti mesmo'. Acho que, com leis mais severas, elas pensariam duas vezes antes de cometer qualquer ato de intolerância religiosa."

A intolerância religiosa deixa cicatrizes, não só físicas, como psicológicas. Durante muito tempo, Kayllane, que tem mãe evangélica e avó mãe de santo, teve medo de sair de branco às ruas. "Toda intolerância religiosa é uma violência, toda violência gera trauma, e todo trauma afeta, com maior ou menor intensidade, a saúde psíquica de um indivíduo", explica a psicóloga Tânia Jandira Rodrigues Ferreira, que presta atendimento a vítimas de intolerância religiosa. "O Brasil é um país de maioria cristã que sempre foi intolerante com as religiões não cristãs. Já fomos chamados de charlatães, curandeiros e histéricos. Como dar um basta à intolerância religiosa? A educação é o melhor caminho. É preciso educar para a paz."

 

       Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil

 

Se a água é a substância fundamental para a vida, talvez não haja metáfora melhor para representar a mãe da humanidade. Iemanjá, divindade cuja data é celebrada em 2 de fevereiro, é a rainha das águas e, acreditam os que a cultuam, a figura materna que irmana todas as pessoas.

Em terras brasileiras — ou seja, nas práticas religiosas trazidas por africanos na diáspora forçada durante os séculos de regime escravagista e tráfico de mão de obra compulsória —, o orixá feminino ganhou ainda um significado que remete à ancestralidade.  Afinal, se entendermos as costas brasileira e do continente africano como duas margens do mesmo imenso rio, o Oceano Atlântico, é Iemanjá quem promove a união, por ser ela a divindade das águas. "Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição iorubá", explica o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Seu nome vem da expressão 'a mãe dos peixes' ou 'a mãe cujos filhos são como peixes'. É considerada a mãe de todos, a que nos prepara para a vida, nos dá a imensidão das águas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eugênio. Na língua original, seu nome é Yemoja.

Contudo, atualmente há uma aparente contradição que se torna evidente: se a divindade é originalmente negra, por que sua representação mais comum em terras brasileiras é uma mulher branca? A resposta estaria na violência do processo de sincretismo, muitas vezes romantizado como algo inerente à chamada "democracia racial".

        Dos rios para o mar

Para os que creem na divindade, ela tem a propriedade de "comandar as cabeças", reger o domínio da consciência. "Na tradição iorubá, dizem que a cabeça carrega o corpo, então, é ela quem traz o equilíbrio emocional e psíquico", prossegue o babalorixá Eugênio. "Yemoja é a mãe de todas as águas. Se existe água, existe Yemoja, se nós existimos é porque Yemoja existe. Não há uma cabeça que Yemoja não tocou e cuidou. e não há uma cabeça que Yemoja não possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psicóloga e mestre em sociologia política. "Iemanjá é um orixá, ou seja, uma divindade africana cultuada a partir do panteão divino dos povos iorubás. Embora, no Brasil, assuma títulos e características de 'rainha do mar', na África, é cultuada na região de Abeokutá, na Nigéria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas águas doces do rio Yemoja, entre Ifé e Ibadan", contextualiza o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP.

Ou seja: para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos". Dias explica que por ser "orixá das cabeças", ela "concede saúde mental" e "propõe harmonia entre o sentimento e a razão". "Esta orixá traduz o símbolo feminino das mulheres dos seios fartos, é capaz de alimentar todo o mundo. É a orixá que nutre, que alimenta, gerando abundância e prosperidade às suas filhas e seus filhos", completa.

Eugênio ressalta que todo orixá tem seus arquétipos mas o que sintetiza Iemanjá é o da "grande mãe".

"Todos somos filhos de Iemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes", argumenta ele.

"Ela traz também essa noção fundamental de ancestralidade."

"A mensagem de Iemanjá para a humanidade é de união, de respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irmãos", resume o babalorixá. "Na festa de Iemanjá estão todos, não só os adeptos do candomblé. São pessoas de várias origens, várias crenças e ela abençoa a todos sem nenhuma distinção."

        No Brasil

Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade ganhou importância no Brasil justamente por conta do processo de escravização.

Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazer de todo uma só família, ela foi fundamental para refazer os laços dos escravos separados de seus parentes durante o processo de migração violenta e forçada. "Em torno dela as famílias se organizam", diz Eugênio. "Para as religiões de matriz africana, ela foi a possibilidade de refazer, reinventar a família, que no processo de escravização havia sido esfacelada. Em termos simbólicos, Iemanjá representou o compromisso de recriar a família, promover a união na diáspora."

Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil o culto a Iemanjá foi a resposta "ao rompimento dos laços familiares e afetivos" causados pelo regime escravocrata. "Com o sequestro das famílias africanas, há episódios de mortes de familiares ainda nos navios negreiros e a separação deles no desembarque, quando eram encaminhados para locais diferentes de trabalho", pontua. "Ser filho ou filha de orixá era uma forma de estarem ligados à sua origem ancestral, uma forma de recapitular o passado, reestruturar os laços."

No Brasil, a devoção a ela "extrapola as religiões de matriz africana", ressalta Eugênio. "Todos os brasileiros de um jeito ou de outro são devotos dela. Ela é a grande mãe do povo brasileiro, faz parte do imaginário. Está profundamente arraigada em nossa formação."

"Há quem diga que Iemanjá é uma santa católica, muita gente confunde e acha isso. Isso é um traço de aculturação que faz parte da formação do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue Eugênio.

        Representação

"Ela é uma senhora de ancas largas, que pariu toda a humanidade e todos os orixás. Com seus seios fartos amamentou toda a humanidade", diz Eugênio. "Dizem que os rios são como o leite de Iemanjá escorrendo em direção ao oceano. Se temos uma mãe em comum também temos elos, os mesmos direitos."

Na questão da representação reside o principal problema da maneira como Iemanjá acabou sendo incorporada ao imaginário brasileiro. Porque, originalmente uma divindade africana, é natural que suas primeiras e originais representações fossem de uma mãe negra. E seu embranquecimento é visto, por estudiosos atuais, como resultado de uma construção racista do século 20, que buscou tornar suas feições mais "europeias".

Nesse sentido, uma violência cultural.

"A figura de Iemanjá que está no imaginário coletivo é aquela imagem da mulher branca de cabelos longos com sua túnica azul, se confundindo um pouco com as águas do mar", pontua Eugênio. "Foi um processo de aculturação que levou à difusão dessa imagem. Tem a ver com sincretismo, com a aculturação.

Para o babalorixá, "isso tem de ser respeitado". "Povos diferentes, quando convivem, ou eles sincretizam ou eles se matam. Então é importante respeitar, embora essas coisas tenham sido impostas: um povo é submetido à violência de abarcar uma outra cultura e então acaba assimilando essa cultura".

Outros pesquisadores do assunto têm uma postura mais crítica frente a essa transformação.

Watanabe ressalta que a ideia de sincretismo "apaga os processos históricos que deram origem a esse amálgama de divindades." Mas reconhece que o sincretismo existe inclusive com tradições indígenas. "Muitas vezes Iemanjá é confundida com Janaína, que seria a divindade da cultura dos povos originários do Brasil, uma sereia", exemplifica.

Evidentemente que o processo mais dominador e muitas vezes violento dessa mistura se deu mediante o choque desigual com a religiosidade trazida pelos europeus. "Entender que o processo violento de sincretismo foi útil para que muita sabedorias ancestrais vindas na diáspora sobrevivessem até hoje é fundamental", afirma Santos. "Mas é fundamental também entender que, diante de tantos outros processos de mudança, nós, sobretudo mais novos, não precisamos do sincretismos como os nossos mais velhos precisaram num outro tempo para dar continuidade ao culto."

Durante o período da escravidão, para conseguirem manter seus cultos, era comum que os africanos e seus descendentes precisassem recorrer a figuras do catolicismo.

"Eles eram proibidos por seus senhores brancos e também pelos religiosos católicos de manterem suas crenças e então uma forma que encontraram para continuar foi disfarçando suas divindades de santos católicos", contextualiza a jornalista Bell Kranz, autora do livro 21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil.

Em suas pesquisas ela encontrou associações de Iemanjá com diversas denominações de Nossa Senhora. "Especialmente Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora das Candeias", pontua ela.

Não é por coincidência, aliás, que o 2 de fevereiro é tanto dia de Iemanjá como de Nossa Senhora das Candeias — também chamada de Nossa Senhora da Luz. O arquétipo semelhante também ajudou nessa situação. Para os cristãos, afinal, a figura de Nossa Senhora é a mãe de Jesus. Especialmente para os católicos, ela também é reconhecida como mãe da humanidade, mãe de todos, senhora da família.

E se você já usou branco numa festa de Revéillon, conscientemente ou não, também participou desse processo de sincretismo. Esse fenômeno cultural está intimamente ligado ao trabalho realizado para popularizar a Iemanjá em terras brasileiras, realizado pelo pai de santo Tancredo da Silva Pinto (1904-1979), o Tata Tancredo, no Rio de Janeiro. "Conhecido como o 'papa da umbanda', ele foi quem criou a cultura de celebrar Iemanjá no último dia do ano, quando reunia milhões de religiosos, inspirando brasileiros, independentemente de crença ou religião, a vestirem roupas brancas mesmo sem conhecer o motivo", conta Dias.

"Muitos vestem branco na virada do ano pensando que é para pedir paz, muitos vão até a praia jogar rosas brancas… São rituais macumbeiros, e muitos que têm um pezinho na igreja evangélica ou no catolicismo estão lá realizando esse tipo de ritual. Tudo isso vem da popularização das macumbas", comenta Watanabe. "Com o processo de sincretismo e apagamento dos cultos de matriz africana no Brasil, os orixás, sobretudo Yemoja, que acabou por ficar muito popular no país, sofreram alterações e processos simbióticos com as características dos santos católicos", complementa a psicóloga Santos. "Mas vale lembrar que orixá não é santo e que Yeoja não é Nossa Senhora."

        Branqueamento de Iemanjá

Há alguns registros que demonstram uma europeização das características de Iemanjá já no século 19, muitas vezes a aproximando de representações de Nossa Senhora. Mas a imagem que acabou se sobrepondo às outras representações e dominando o inconsciente coletivo remonta aos anos 1950.

Conforme explica o sacerdote umbandista e pesquisador Dias, tudo começou quando uma carioca chamada Dalla Paes Leme afirmou ter tido uma visão de Iemanjá e encomendou a pintura de um quadro com essa representação. "Curiosamente e, em pouco tempo, criam-se movimentos de promoção do quadro da nova imagem, além de selos postais, eventos, romarias resultantes de um movimento chamado pelo jornal 'Luta Democrática' de 'yemanjismo'", relata Dias.

O pesquisador lembra que ela era "uma aristocrata e publicitária" e acabou fomentando uma tradução de "estética branca para a divindade por meio de uma peregrinação" do quadro aos terreiros de umbanda da época. Segundo Dias, essa tradicional imagem "pode ser considerada o marco do embranquecimento e aculturação da orixá". "Não por acaso, a fisionomia da 'nova Iemanjá' se dá mediante à sequela que o fenômeno do sincretismo deixa enquanto processo de apagamento e conversão cultural", prossegue.

"A orixá, traduzida pela estética cristã, traz agora o mesmo estereótipo das virgens santas, perdendo completamente seus traços africanos. A partir de então, exclui-se os grandes seios que alimentam o mundo, cobre-se seu corpo, retiram-se as noções daquela que é mãe dos filhos peixes em detrimento da santa virgem que jamais dançou ao toque dos atabaques de umbanda", comenta o sacerdote.

Para Watanabe, a Iemanjá representada como "a tal da moça branca com vestido azul" é um legado de grupos umbandistas conhecidos como "umbanda branca". "É das imagens que mais circulam, muitos têm uma dessas em suas casas", reconhece. "Acredito que se trate de uma tentativa descarada de apropriação de uma divindade africana e apagamento de toda uma história e de uma cultura que são negras", argumenta Watanabe. "Criticamos muito essa imagem. Todos os orixás são negros porque têm uma cultura de origem, um território de origem e esse território é a região de língua iorubá, em grande parte sintetizado na atual Nigéria."

Ele afirma que muitos apregoam que "orixá não tem cor porque é energia". "Mas isso é uma disforia criada a partir dessas umbandas que foram invadidas por conhecimentos alienígenas, estranhos a elas. Esses esoterismos, essa tentativa da umbanda de se vincular a narrativa do mito da democracia racial, essa tomada da umbanda pelos grupos brancos que corroboram para o embranquecimento da mesma, isso tudo deu origem a essa imagem de Iemanjá branca", defende.

Watanabe define o fenômeno como uma "violência aos povos negros, a cultura negra". "A imagem deve ser substituída, de fato. Não pode seguir circulando da forma como circula. Simbolicamente é um aviltamento da cultura negra", critica.

Santos concorda e ressalta que a "descaracterização e o esvaziamento racista" feito com a orixá é um problema. "Essa Yemoja branca, com cabelos lisos, longos, magra, recatada, mansa e do lar que é, na verdade, uma imagem europeia cristã, não dá conta de quem Yemoja é e de quem ela pode vir a ser, porque Yemoja é isso: possibilidade", diz.

Dias acrescenta que o "processo de sincretismos" sempre é visto "como um fenômeno de dominação". "Independente das relações e das trocas por ele produzidas, sempre haverá uma cultura de dominação sobreposta a uma cultura dominante. A invenção da imagem de Iemanjá traduz um Brasil que vivemos hoje em que, feito as redes sociais, adiciona filtros para tornar as imagens 'mais aceitas e palatáveis' pela sociedade que teima em manter o seu pseudo-status antirracista", argumenta ele. "Todavia, há algo de curioso em tudo isso: não se encontram traduções de divindades de outras culturas tão facilmente quanto as africanas. Nunca se viu uma imagem de Sidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro, de dreadlocks e brincos nas orelhas. Não se colocam mantos e retiram-se as insígnias hindus de Shiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade tão quanto a cor da pele de Cristo, o clero se levanta em defesa de uma tradição inventada para apagar a existência de um povo."

 

Fonte: BBC News Brasil

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