Há 62 anos,
Congresso aceitou renúncia e abortou golpe de Jânio Quadros
Há
62 anos, o presidente Jânio Quadros deixou o Brasil atônito. Sem aviso prévio,
ele enviou um bilhete ao Congresso Nacional comunicando que havia abandonado a
Presidência da República. O governo, que deveria ter durado cinco anos, chegou
ao fim pouco antes de completar sete meses. A renúncia ocorreu em 25 de agosto
de 1961.
Documentos
históricos guardados no Arquivo do Senado mostram que inclusive os senadores e
deputados federais da base governista foram surpreendidos pela renúncia. Numa
tentativa desesperada de impedir que o ato se consumasse, o senador Lino de
Mattos (PSP-SP) quis rasgar o bilhete presidencial. Ele próprio narrou o
episódio logo depois:
—
Tentei obstar a entrega do documento [ao vice-presidente do Senado],
pretendendo tomá-lo das mãos do ministro [da Justiça] Oscar Pedroso Horta, até
mesmo meio à valentona. Sua Excelência declarou-nos, no entanto, que se tratava
de documento sério, assinado por um homem sério, para produzir efeito sério, que
estavam distribuídas à imprensa as respectivas cópias e que, nessas condições,
não adiantava qualquer atitude. O presidente já se demitira do posto e não se
encontrava mais em Brasília. Não adiantava mais a destruição do documento.
A
renúncia, segundo os historiadores, seria o primeiro passo de um autogolpe de
Estado. Pelos planos não declarados de Jânio, a renúncia não seria aceita pelo
Congresso, pelas Forças Armadas e até pelo povo, que lhe implorariam que
reconsiderasse. Ele, então, aproveitaria o clamor geral e, como condição para a
volta, exigiria mais poderes para governar do que os previstos pela
Constituição de 1946. Tendo êxito o autogolpe, Jânio alcançaria o objetivo de
se transformar num presidente forte ou até mesmo num ditador.
Os
documentos do Arquivo do Senado também mostram que os parlamentares se
recompuseram logo do terremoto provocado pela renúncia e, enxergando as
intenções de Jânio Quadros, agiram para abortar o plano golpista. O Congresso
Nacional aceitou a renúncia sem nenhum questionamento e, deixando Jânio para
trás, começou a discutir as condições para a posse do vice-presidente João
Goulart.
Num
discurso logo após a renúncia, o senador Argemiro de Figueiredo (PTB-PB) disse
que foi acertada a decisão do Congresso de não cair na armadilha de Jânio
Quadros:
—
Para fazê-lo voltar [à Presidência da República], seria mister a instituição
preliminar de um regime janista, de uma Constituição janista, de leis janistas,
de costumes janistas. Garroteiem a voz do povo que reivindica e protesta, calem
a palavra do Congresso e fechem os jornais que debatem, orientam, advertem. Aí
teríamos um regime governamental compatível com o temperamento do senhor Jânio
Quadros. Mas isso seria a renúncia às nossas conquistas liberais. Seria a morte
da democracia.
No
mesmo pronunciamento, Figueiredo resumiu:
—
A renúncia ao governo foi a tática premeditada de um homem que se julgava o
único capaz de reorganizar a vida nacional. Renunciou como Bolívar, para voltar
mais forte. Nunca pensou que lhe aceitariam a renúncia. Esperou retornar ao
governo nos braços do povo e das gloriosas Forças Armadas para dirigir a nação
como a queria governar: sozinho, mandando sozinho. A renúncia foi a primeira
etapa do processo de uma ditadura que se tinha em vista.
Também
atordoado pela renúncia, o ministro das Relações Exteriores, Afonso Arinos, às
pressas enviou um telex ao Congresso Nacional advertindo que o ato poderia
trazer consequências catastróficas para o Brasil e que, por isso, os
parlamentares deveriam discutir a fundo a conveniência de aceitar a saída do
presidente. Para acelerar a consumação da renúncia, o vice-presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade (PSD-SP), preferiu engavetar o telex sem
apresentá-lo aos colegas:
—
Devo declarar ao Senado que não trouxe ao conhecimento da Casa o referido telex
enviado pelo ministro das Relações Exteriores porque tive razões para esse
comportamento. Não me era ele nominalmente dirigido. Não se dirigia ao
Congresso, não se dirigia ao Senado, não se dirigia à Câmara. Não tinha destinatário.
Assim sendo, eu não poderia dar-lhe destino. Foi a razão pela qual o guardei ao
recebê-lo.
O
presidente Jânio Quadros sabia que as Forças Armadas não tolerariam a posse do
vice João Goulart. Jango, como era conhecido, mantinha estreitas relações com
os sindicatos trabalhistas, muitos dos quais dirigidos por comunistas. Isso
despertava nos militares, mais identificados com a direita, o medo de que o
Brasil governado por Jango tomasse o caminho do comunismo.
Quando
veio a renúncia, Jango se encontrava na China, numa missão oficial armada por
Jânio. O presidente trabalhou para que o vice estivesse justamente num país
comunista no momento em que a crise estourasse. As supostas inclinações
comunistas do vice se tornariam inquestionáveis.
Conforme
a previsão de Jânio Quadros, os militares de fato vetaram a posse de Jango.
Diante dessa ilegalidade, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola,
ameaçou pegar em armas para garantir o cumprimento da Constituição. A renúncia,
portanto, deixou o Brasil à beira de uma guerra civil.
O
senador Alô Guimarães (PSD-RS) subiu à tribuna do Senado e leu o seguinte
trecho de um editorial do jornal O Globo:
—
O senhor Jânio Quadros renunciou na esperança de provocar derramamento de
sangue ou pelo menos para provocar a ameaça de derramamento de sangue. Não
renunciaria se depois de cuidadosa meditação não tivesse chegado à conclusão de
que o derramamento ou a ameaça de derramamento de sangue teria o efeito por ele
visado: a nação, ante o mal maior, aceitaria o mal menor, isto é, a ditadura do
senhor Jânio Quadros. A verdade é essa.
Guimarães
concluiu o discurso afirmando que o Congresso Nacional seria firme e que,
portanto, o ex-presidente deveria esquecer de vez o plano de ser reconduzido
com superpoderes ao Palácio do Planalto:
—
O que não se pode agora é pretender modificar as instituições para que se
cogite do retorno do senhor Jânio Quadros ao poder. Isto até já não é mais
constitucional. Seria um ato de rebeldia a que nos oporíamos.
A
guerra civil só não estourou porque os senadores e deputados negociaram com
Jango a adoção do parlamentarismo, em substituição ao presidencialismo vigente
desde 1889. O presidente passaria a dividir o governo com um primeiro-ministro.
Com os poderes presidenciais de Jango limitados, as Forças Armadas aceitaram a
posse. Duas semanas depois da renúncia, a crise enfim se encerrou. Mais tarde,
por meio de um plebiscito em 1963, os brasileiros decidiriam pela volta do
presidencialismo.
Acompanhada
do bilhete de renúncia, Jânio Quadros enviou ao Congresso Nacional uma breve
carta em que justificou a atitude. Em termos vagos, ele escreveu que tentara
combater a corrupção, mas fora “vencido pela reação” e “esmagado” por “forças
terríveis”.
Para
os observadores da política, a renúncia de Jânio Quadros não chegou a ser de
todo surpreendente. Ele havia feito um movimento muito parecido em 1960, quando
ainda era candidato. Embora tenha sido eleito presidente com o apoio da UDN, o
poderoso partido de direita, Jânio pertencia ao PTN, um partido paulista inexpressivo
na política nacional. Insatisfeito com a ascendência da UDN sobre a sua
candidatura, ele abandonou a disputa. Com a faca no pescoço, a UDN não teve
alternativa senão ceder. Jânio voltou à corrida presidencial depois de ganhar
carta branca para dirigir sozinho a campanha eleitoral.
O
senador Victorino Freire (PSD-MA) revelou que Jânio ensaiou a mesma estratégia
chantagista ainda nos primeiros meses no Palácio do Planalto:
—
Muitas vezes debati com Sua Excelência [Jânio Quadros], com intimidade, problemas
nacionais, e uma das forças de reação de que se queixava era justamente o
Congresso. Era uma injustiça de Sua Excelência, porque esta Casa deu-lhe todas
as medidas de que necessitou, aprovando todos os vetos do governo, com exceção
de um que dizia respeito à estabilidade dos funcionários da Novacap [empresa
estatal que construiu Brasília]. No dia em que o Congresso o rejeitou, Sua
Excelência se preparou renunciar ao governo. Foi impedido por seus auxiliares e
sobretudo pelo eminente ministro Pedroso Horta, que submeteu o assunto à Corte
Suprema justamente para evitar que se consumasse o gesto do senhor Jânio
Quadros.
O
clima de golpismo permeou praticamente todo o curto governo de Jânio Quadros.
Quando estudantes universitários organizaram uma greve em Recife, o presidente
mandou tropas do Exército e até navios da Marinha reprimirem o movimento — uma
demonstração exagerada de força bélica. Em outro momento, sem maiores
explicações, transferiu a sede do governo federal provisoriamente de Brasília para
São Paulo — dando a entender que na capital paulista, seu reduto eleitoral,
poderia melhor se defender de uma tentativa de golpe de Estado.
O
golpismo pode ser explicado pela aversão de Jânio Quadros à negociação e à
divisão do poder. Ele se elegera com o discurso de que não gostava dos partidos
e dos políticos e que, com sua “vassourinha”, varreria para sempre a corrupção
do Brasil. Apesar de a UDN ter empregado toda a sua força para ajudar a
elegê-lo, o presidente não recompensou a sigla com o espaço no governo que ela
julgava merecer.
O
senador Argemiro de Figueiredo analisou:
—
O senhor Jânio Quadros, tendo sido eleito por uma onda civil revoltada contra
os sistemas anteriores, eleito pelo povo sem distinção de correntes
partidárias, eleito com essa formação revolucionária da opinião pública em
torno do seu nome, na prática do governo se esqueceu da atuação costumeira da
vida da República. A sua renúncia ao governo significou a sobrevivência da
República e da democracia.
O
mandatário não teve maioria no Senado e na Câmara nem se esforçou para
construir um governo de coalizão. Ele não recebia senadores e deputados no
Palácio do Planalto. Na Câmara dos Deputados, a oposição chegou a planejar um
pedido de impeachment do presidente.
Jânio
tentou minar a autoridade dos governadores criando escritórios do governo
federal nos estados — em vez de recorrerem aos governadores, os prefeitos
preferiam buscar a ajuda desses escritórios. Os ministros recebiam ordens
presidenciais por meio de bilhetinhos, que frequentemente eram vazados para a
imprensa — isso podia deixá-los em situação constrangedora e até humilhante.
O
senador Victorino Freire contou aos colegas outro episódio revelador da
personalidade autoritária de Jânio Quadros:
—
Eu disse a Sua Excelência: “Você só quer escrever a lei em papel sem pauta, mas
o Congresso tem que escrevê-la em papel pautado. Vetam [seus projetos] a UDN, o
PSD, o PTB e todos os partidos porque [no Congresso] não se discute em termos
partidários, mas em termos de interesse público”. Respondeu-me ele: “O
Congresso não pode rejeitar o [meu] veto porque eu veto sempre certo”.
O
senador Argemiro de Figueiredo reforçou o argumento do colega:
—
O Congresso, para ele, era a expressão de um poder inútil e até nocivo. A ordem
legal do país era um estorvo abominável quando a sua vontade se conflitava com
os preceitos constitucionais. Não se domesticava a ninguém, nem mesmo à própria
lei. O homem sempre me pareceu, por temperamento e vocação, a figura típica de
um ditador civil.
Em
sua renúncia, Jânio Quadros adotou elementos do suicídio de Getúlio Vargas,
sete anos antes. Ele também escreveu uma carta dirigida à nação, dizendo que
suas boas intenções foram freadas por forças adversárias. A data do ato foi
escolhida a dedo. Enquanto o suicídio ocorreu em 24 de agosto, a renúncia se
deu em 25 de agosto. A diferença é que, no caso de Getúlio, o povo tomou as
ruas de diversas cidades para manifestar apoio ao presidente morto.
Jânio
Quadros provavelmente acreditava que os brasileiros se mobilizariam exigindo
sua volta à Presidência da República por causa das medidas de cunho moralizante
que tomara, como a proibição das brigas de galo, a obrigação de os funcionários
públicos federais vestirem uniforme, o veto aos trajes de banho nos concursos
de beleza feminina, a criminalização do lança-perfume e o fim das corridas de
cavalo nos dias de semana. Foram medidas de grande apelo entre as famílias
conservadoras.
Ele
também acreditava que contaria com algum apoio dos setores da sociedade mais à
esquerda, como os sindicatos, pelo fato de ter começado a reatar as relações
diplomáticas com países comunistas, apoiado a autodeterminação de Cuba e
condecorado Ernesto Che Guevara, um dos ministros do governo cubano — tudo isso
como parte da chamada Política Externa Independente.
Até
mesmo o presidente da UDN, deputado Herbert Levy (SP), apesar de ter sustentado
a candidatura de Jânio Quadros em 1960, deu a entender que também enxergava
golpismo na renúncia:
—
O ato da renúncia só pode ser explicado por duas hipóteses: ou foi um ato
temperamental do senhor Jânio Quadros, ou foi um ato meditado, planejado. Se
foi temperamental, estaríamos diante de uma irresponsabilidade, de uma
leviandade. Se foi deliberado, se pensava em renunciar, estava obrigado a
preparar sua saída, sem a prejudicar o país, sem a ameaça de nos levar ao caos.
Como não preparou sua saída, a gravidade é muito maior, pois, neste caso, o
senhor Jânio Quadros desejaria convulsionar o país.
De
acordo com o historiador Felipe Loureiro, especialista nos governos de Jânio e
Jango e coordenador do curso de relações internacionais da Universidade de São
Paulo (USP), embora não se conheçam todos os detalhes do plano, a intenção do
presidente era, sim, dar um autogolpe:
—
Jânio Quadros teve uma carreira política meteórica. No curto período de pouco
mais de dez anos, ele foi vereador, deputado estadual, prefeito, governador,
deputado federal e presidente da República. Ele conseguiu esse feito por força
da sua imagem pessoal. Jânio sempre utilizou os partidos políticos de forma
pragmática, conforme seus interesses, sem criar vínculos com eles. A eleição
presidencial de 1960 não foi vencida pela UDN ou pela direita conservadora, mas
pelo janismo. Dada essa força pessoal, Jânio acreditava que podia governar
sozinho e não tinha que dividir o poder com os partidos e com o Legislativo.
Loureiro
explica que o autogolpe falhou, entre outros motivos, porque o presidente não
conseguiu manter sua base eleitoral mobilizada durante o governo:
—
Jânio não tinha uma estrutura partidária que fosse sólida, tivesse capilaridade
nacional e pudesse mobilizar os brasileiros a seu favor no momento da renúncia.
Além disso, não havia na época canais alternativos de comunicação, como as
redes sociais de hoje, que permitissem ao presidente se comunicar diretamente
com a sua base e mantê-la ativa, radicalizada e, quando necessário, presente
nas ruas.
Jânio
tampouco conseguiu construir uma ponte firme com as Forças Armadas, segundo
Loureiro, o que também foi decisivo para o fracasso do autogolpe. As relações
com a caserna sempre foram ambíguas. Ao mesmo tempo em que prestigiou a classe,
nomeando militares para presidir sindicâncias sobre supostos desvios cometidos
pelo governo de Juscelino Kubitschek, ele também a humilhou publicamente, como
quando acusou o general presidente da Petrobras de levar a estatal à falência —
o militar chegou a ser preso após refutar o ataque. A Política Externa
Independente também deixou as Forças Armadas com um pé atrás.
Consumada
a renúncia, alguns aliados de Jânio chegaram a defender que ele deveria
novamente se candidatar à Presidência da República para enfim derrotar as tais
“forças terríveis”. O senador Argemiro de Figueiredo riu da ideia:
—
Direi apenas que uma nova experiência com o senhor Jânio Quadros na chefia do
governo seria o mais deplorável atestado de insanidade mental da nação
brasileira.
O
efeito mais traumático da renúncia seria sentido apenas três anos depois. Os
militares que em 1961 não quiseram Jango na Presidência da República
conseguiram derrubá-lo em 1964 e instaurar uma ditadura que duraria 21 anos.
No
ano seguinte à renúncia, Jânio Quadros se candidatou ao governo de São Paulo,
mas por poucos votos não se elegeu. Ele teve depois seus direitos políticos
cassados pela ditadura militar e só voltou à vida política em 1986, após vencer
nas urnas o adversário Fernando Henrique Cardoso e assumir a prefeitura de São
Paulo.
Jânio
morreu em 1992, sem nunca ter dado uma explicação convincente para a renúncia
de 1961.
—
Nunca se encontrou nenhuma evidência da existência de “forças terríveis” contra
o governo. Ele jamais deu uma justificativa satisfatória simplesmente porque
significaria descortinar o seu lado autoritário e antidemocrático. Como
personalidade que ainda tinha planos eleitorais, sabia que não poderia fazer
isso — explica o historiador Felipe Loureiro.
Fonte:
El País
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