quarta-feira, 8 de março de 2023

Como a mineração de bauxita vem expulsando, envenenando e matando quilombolas no Pará

Território tradicionalmente quilombola, o município de Barcarena, no Pará, pouco viu do desenvolvimento que lhe foi prometido com a instalação do complexo industrial que recebeu várias empresas de mineração — em especial Imerys e Albras Alunorte, empresa norueguesa hoje conhecida como Norsk Hydro.

Isso ocorreu em 1979, quando o Governo Federal — na época uma ditadura militar — criou a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), responsável pela implantação do complexo. Em pouco tempo, as mudanças no território foram acontecendo para que as empresas pudessem operar de acordo com a demanda de um mercado influenciado por um Estado que tinha pressa em transformar a Amazônia em um ativo que só beneficiaria as mineradoras e seus empreendimentos nocivos ao meio ambiente e à vida.

Os acidentes ambientais vêm ocorrendo há anos em Barcarena, com três episódios registrados de despejo de rejeitos de bauxita — altamente tóxicos — nos rios Murucupi e Pará: em 2009, 2014 e 2018. O último levou a uma CPI que teve como resultado várias recomendações ao Ministério Público Federal, além de indiciamentos por crimes ambientais. A Hydro sempre negou de forma catedrática qualquer acusação, mesmo com provas apresentadas por estudiosos e pela população atingida.

Antes da Codebar, o território onde se situa o município era território quilombola. O documento mais antigo de legitimação de posse da terra data de 1986, onde se lê que o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) detém direitos sobre a terra através do adquirente Manoel Joaquim dos Santos, antecessor das principais lideranças quilombolas que hoje lutam pelo direito de existir no território.

Um desses líderes é Valter Bubuia, hoje à frente do quilombo Gibrié do São Lourenço. Segundo ele, a invasão das mineradoras só foi possível porque, na época, a Codebar não fez política fundiária na região. “Naquele tempo era difícil avançar com negociação. Quem tinha documento conseguia, mas quem não tinha dançava”, disse ele à Mongabay.

Hoje o documento de 1986, considerado coletivo, é sua arma para reaver as terras desapropriadas pela Codebar na época. “Eles não vão deixar a gente titular porque dessa forma eles não conseguem vender ou negociar as terras no futuro”, afirma Bubuia. “São mais de 300 famílias lutando pra existir.”

        Lideranças apontam cumplicidade da prefeitura

Roberto Cravo, conhecido como Chip, é uma das principais lideranças quilombolas em Barcarena e conta que os problemas enfrentados pelo seu povo vão além da contaminação pelas mineradoras. Ele relatou à Mongabay que há um consórcio entre prefeitura e mineradoras que remonta ao início do processo de crescimento de Barcarena, sob o comando da Codebar, e que ignorou por completo a existência dos territórios quilombolas.

Segundo ele, a primeira invasão foi no distrito de Vila dos Cabanos, onde foi construída a estrutura para acomodar a elite de funcionários das empresas de mineração. Só eles poderiam ter acesso à vila. Até as escolas passaram a ser frequentadas apenas por filhos de funcionários. A questão, aponta Chip, é que essas terras pertenciam historicamente aos quilombolas — incluindo o terreno onde hoje é o quartel do 14° Batalhão da Polícia Militar.

“Se você fizer uma pesquisa arqueológica nessas áreas onde se encontra o Batalhão e o Cabanos Club, você vai encontrar artefatos que comprovam e legitimam nossa preexistência nesta região”, diz Chip. Segundo ele, a prefeitura de Barcarena usou de má-fé na ocasião, dado que estava ciente do processo de mapeamento e demarcação da terra que estava sendo feito pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) em favor dos quilombolas.

“Quando o Incra terminou o trabalho, a prefeitura construiu um muro ao redor do local que o Incra delimitou para a titulação, e que impossibilita nosso acesso à área”, explica Chip. “Eles construíram em tempo recorde e colocaram uma placa lá que diz que a área é de preservação e de propriedade do município de Barcarena. A prefeitura invadiu o terreno que o Incra garantia que era nosso.”

Entre as decisões arbitrárias da prefeitura de Barcarena, a mais recente foi a tentativa da empresa Águas de São Francisco de desocupar uma área onde funcionava uma unidade de tratamento de esgoto que estava instalada em território quilombola. A empresa chegou a derrubar algumas casas, expulsando famílias do local na época em que a pandemia de covid-19 estava em seu período mais mortal, mas o Supremo Tribunal Federal, através do ministro Eduardo Fachin, deu ganho de causa para as famílias por se tratar de área na qual nem a prefeitura, nem a empresa de saneamento conseguiram comprovar posse.

“Isso é uma derrota muito grande pra prefeitura, que agiu de forma truculenta com aquelas famílias e inclusive mentiu na televisão e nas redes sociais, falando que as pessoas daquela área queriam o terreno pra venda”, afirma Chip. “Morava gente lá e eles derrubaram casas com móveis dentro sem ordem judicial nem nada. Sem comprovação de posse.”

        Rios contaminados, feridas na cabeça

Em 2018, Damiana Oliveira dos Santos notou que havia uma falha no couro cabeludo da filha Rebeca, de apenas 4 anos. Os cabelos encaracolados da menina estavam caindo, e onde antes havia pêlos agora eram feridas. Ela e seu marido levaram a filha para o hospital em Belém e, ao chegar, Damiana, que vinha sentindo náuseas, desmaiou. Sua pressão estava alterada. No hospital, descobriu que sua cabeça também estava cheia de erupções.

“Tivemos que raspar o nosso cabelo. Toda a comunidade chorou quando viu nossa filha e eu carecas”, disse ela à Mongabay em sua casa, situada a apenas 3 km do complexo industrial da Hydro. “Fomos buscar nossos exames e ninguém nos disse o que significavam aqueles números. Hoje a gente sabe.”

O que elas agora sabem, e os estudos comprovam, é que tudo em Barcarena — pessoas, solo, ar, água e peixes — apresenta indícios de contaminação. A origem seriam os dejetos químicos despejados pelas mineradoras nos rios da região. Metais como alumínio, chumbo e níquel estão presentes em laudos médicos de institutos como Evandro Chagas e laboratórios como o Laboratório de Química Analítica e Ambiental da Universidade Federal do Pará (Laquanam/UFPA).

Os sintomas de contaminação incluem coceira, dores de cabeça, enjoo, diarreia, dores intestinais, episódios de esquecimento recorrentes, feridas pelo corpo, pele fina quebradiça e vários casos de câncer. A Norsk Hydro nega que esses casos tenham relação com suas atividades.

A química Simone de Fátima Pinheiro Pereira, coordenadora do Laquanam, tem mais de 40 anos de pesquisa na área de mineração, 15 deles acompanhando de perto os crimes ambientais praticados em Barcarena. Em 2012, a pedido do Ministério Público Federal, ela analisou a água usada para consumo na região. O resultado foi estarrecedor.

“Eu analisei a água de 26 comunidades e a água de 24 delas estava contaminada por chumbo”, contou ela à Mongabay. “Água, peixes, plantas, sedimentos do rio: tudo que eu coletei para análise estava contaminado. Fiz análise dos cabelos das pessoas da comunidade também e encontrei números 27 vezes acima do meu controle”, disse ela, comparando a índices de pessoas fora da área de estudo.

Simone relata que as duas empresas que mais impactam essa região são Hydro e Imerys. A primeira, até recentemente, possuía a DRS1, uma área de depósito de resíduos de bauxita, instalada perto das comunidades quilombolas. A barragem foi desativada, mas os milhões de toneladas de lama vermelha tóxica continuam lá. Quando chove, a lama transborda e vai para os rios do entorno, o Murucupi e o Pará, carregando com ela metais como cromo, chumbo e níquel — todos cancerígenos, caso o indivíduo seja exposto por muito tempo.

“Fui coletar na Hydro a lama vermelha para análise a pedido do Ministério Público Federal, mas eles me proibiram de divulgar os valores da análise”, conta Simone. “Mesmo com ordem do MPF, eles me ameaçaram de processo caso eu analisasse. Cheguei a coletar, mas tive que assinar um termo de confidencialidade. A Hydro está no mundo todo e para eles um processo não é nada.”

        Lideranças ameaçadas, doenças e expulsões

“Era pro meu marido estar aqui comigo. Ele era minha vida. Vi meu marido perder um pé e ficar numa cadeira de rodas por causa desse desenvolvimento desenfreado”, conta Maria do Socorro Costa da Silva. Conhecida como Socorro do Burajuba, ela é uma das mais importantes lideranças de Barcarena.

Enquanto mostra os laudos do Instituto Evandro Chagas e da UFPA que detectam a presença excessiva de metais pesados em seu cabelo, ela nos conta o que aconteceu a seu marido, que teve a diabetes agravada pela contaminação: “Ele começou a coçar os olhos, dizendo que não estava enxergando bem. Em 2008, ele começou a emagrecer, mas a gente não desconfiou de nada. Em 2009, houve mais um transbordo de lama, mas continuamos consumindo a água até que vieram equipes da universidade pra fazer exames na gente. Entre 2012 e 2015, a gente teve a confirmação oficial de que a água estava contaminada. Se passaram dez anos nessa luta. Ele não aguentou. Se foi.”

A própria Socorro coça muito o corpo enquanto conversa com a reportagem. Nos mostra sua pele fina e cheia de áreas vermelhas e conta que parte da população de Barcarena está como ela. Nem por isso, Socorro do Burajuba deixou de lutar. Levou as reivindicações quilombolas, inclusive, para além das fronteiras do Pará e do Brasil, movendo uma ação coletiva de 40 mil pessoas afetadas pela produção de alumínio. A ação foi aceita pela Holanda, onde seguirá para uma decisão de mérito na Corte de Roterdã.

A Mongabay entrou em contato com a Norsk Hydro perguntando sobre a ação na Holanda, ao que a mineradora respondeu que “o caso apresentado na Holanda está relacionado a questões locais no Brasil, que já estão sendo discutidas nos tribunais brasileiros. O caso é apenas um derivado das mesmas acusações contra as entidades brasileiras. A Hydro apresentará sua defesa de acordo com o processo definido pelo Tribunal”.

A Hydro acrescentou ainda que “nega veementemente as alegações apresentadas pelos autores da ação. A empresa está comprometida em ser um bom vizinho, agindo com responsabilidade e colocando a saúde, meio ambiente e segurança em primeiro lugar onde quer que opere. As atividades da Alunorte e da Albras na região estão devidamente licenciadas e as operações das plantas são monitoradas e auditadas pelas autoridades.”

 

       A nova política eco social. Por Liszt Vieira e Renato Cader

 

“A sustentabilidade não é só econômica, não é só ambiental, ela é também social e é também política.” Essa declaração da ministra Marina Silva na reunião de 16 de janeiro no Fórum Econômico de Davos, na Suíça, demonstra claramente que a nova política ambiental deve perseguir a perspectiva da transversalidade, em um processo dialético entre os diversos setores, desde o agronegócio até a indústria de transformação. O grande desafio é fazer com que os problemas socioambientais e seus equacionamentos conduzam a ações que contribuam para o desenvolvimento econômico com comprometimento socioambiental. Para que isso aconteça, a nova política deve partir da reconstrução de tudo aquilo que foi desmantelado nos últimos anos.

O quadro é deplorável e urge agir com fundamentos técnicos e científicos para uma rápida transformação dos indicadores e metas socioambientais. A gestão atual já se inicia com a perspectiva de formular políticas públicas com base nas evidências e fatos da realidade. Os dados apresentados no Relatório de Transição demonstraram que é preciso empreender esforços redobrados para reverter um quadro de destruição de marcos regulatórios, de controle e de participação social nas políticas ambientais. Foi como um tsunami que trouxe consequências nefastas, como 60% de aumento do desmatamento na última gestão, a maior taxa que já ocorreu em um mandato presidencial, desde o início das medições por satélite, em 1988.

Temos diante de nós um robusto repertório de dados que só reforçam a urgência de uma nova política ambiental. Apenas 0,4% do Cadastro Ambiental Rural foi validado, enfraquecendo sobremaneira a aplicação do Código Florestal. E a situação ainda fica mais grave com a escassez de recursos orçamentários e humanos. O Fundo da Amazônia, na gestão passada, teve mais de R$ 3,3 bilhões paralisados e o quadro de servidores do Ministério do Meio Ambiente e de suas autarquias encontrava-se com mais de 2 mil cargos vagos. É patente a necessidade de reforçar a capacidade institucional para que a nova política ambiental consiga atingir níveis satisfatórios de performance.

As mudanças climáticas se destacam cada vez mais como eixo primordial da nova política ambiental e isso ficou claro no discurso da ministra Marina na COP 27, no Egito, e em medidas já adotadas e em andamento, como a nova nomenclatura do Ministério do Meio Ambiente, passando a se chamar “Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima”, bem como a previsão de criação da Autoridade Nacional de Segurança Climática na nova estrutura do Ministério.

A meta do desmatamento zero aliada à criação de uma Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento e Ordenamento Territorial e Fundiário anunciados pela ministra Marina demonstram o ambicioso e necessário caminho que a política ambiental deve seguir. A postura e a imagem internacional da nova ministra constituem um diferencial nessa empreitada. Seu discurso em Davos sobre o Fundo da Amazônia e os apoios anunciados por diversos países já demonstram a retomada do protagonismo brasileiro na política ambiental em escala global.

A nova política ambiental deve demonstrar que é possível promover o desenvolvimento econômico tendo a dimensão socioambiental como elemento constitutivo de novos modelos nas políticas púbicas e empresariais. A economia de baixo carbono deve ser compreendida como vantagem competitiva, haja vista seu potencial para gerar produtos e serviços com reduzidas emissões de carbono, contribuindo para as medidas de mitigação e adaptação das mudanças climáticas.

Há muito a ser feito e o novo governo já colocou o pé no acelerador inaugurando uma nova forma de fazer política ambiental, com o foco na promoção da infraestrutura para o desenvolvimento sustentável e na transversalidade, dialogando com as diversas políticas setoriais. Isso aconteceu recentemente com a rápida resposta do governo decretando emergência em Saúde Pública para atender os Yanomamis, vítimas de uma política genocida.

Essa perspectiva vai além, alcança uma cooperação coletiva, envolvendo sociedade civil, comunidade científica, servidores públicos e também a cooperação internacional, como foi o caso do uso do Fundo da Amazônia para apoiar a população Yanomami, anunciada pela ministra Marina em entrevista coletiva no dia 30 de janeiro.

De fato, a transversalidade e a cooperação internacional são questões chaves na perspectiva da nova política ambiental. Um dos desafios atuais é a proposição de políticas e ações ancoradas nos chamados Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), da ONU, com os quais o Brasil e mais 192 países membros se comprometeram como signatários. Se no governo anterior essa agenda foi ignorada, é hora de retomá-la com novos paradigmas.

Os ODS são um chamado para a ação com o objetivo de alcançar o fim da pobreza, a proteção da biodiversidade e dos recursos naturais do planeta e garantir paz e prosperidade a todas as pessoas até 2030. Para isso, será necessária a adoção de um plano de ação global composto por dezessete objetivos, com um conjunto de metas que pressupõem a atuação sistêmica envolvendo diversas categorias e finalidades, o que demanda ações integradas e transversais.

Essa nova política socioambiental deve ser pensada, formulada e colocada em prática sob uma ótica que vai muito além da dimensão ambiental stricto sensu. Deve ser concebida a partir de uma visão sistêmica de sustentabilidade, com foco na erradicação da pobreza, na educação e saúde de qualidade, na agricultura de baixo carbono, na igualdade de gênero, na energia limpa e acessível, na produção e consumo sustentável, na redução da emissão de gases de efeito estufa, responsáveis pela crise climática que ameaça a sobrevivência da humanidade. Essa perspectiva exige um esforço de articulação e sinergia entre diversos atores e, com esse objetivo, a ministra Marina já anunciou a criação de um Conselho, ligado ao presidente Lula, com a participação de todos os ministérios, da sociedade civil, além dos estados e municípios.

Lembrando o filósofo Felix Guattari, a crise do mundo contemporâneo só pode ser enfrentada com uma revolução político-social a partir de uma articulação entre as três ecologias: a do meio ambiente, a das relações sociais e a das ideias. O objetivo é reorientar a produção de bens materiais e simbólicos. Como o poder repressivo é introjetado pelos oprimidos, é necessária uma visão transversalizante de sustentabilidade, abrangendo elementos ambientais, sociais e culturais. Ou seja, trata-se de construir uma nova política eco social.

Assim, a nova política ambiental é a busca da sustentabilidade no plano econômico, social, ambiental, político e cultural, com o objetivo de transformar o Brasil num país economicamente próspero, socialmente justo, politicamente democrático, culturalmente diverso e ambientalmente sustentável.

 

Fonte: Mongabay/Le Monde

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