As mulheres que
chefiavam 'empresas' há 4 mil anos
Por volta de 1870 a.C., na cidade de Assur, no norte
do atual Iraque, uma mulher chamada Ahaha descobriu um caso de fraude
financeira.
Ahaha
havia investido no comércio de longa distância entre Assur e a cidade de
Kanesh, onde fica hoje a Turquia.
Ela
e outros investidores juntaram prata para financiar uma caravana de mulas para
transportar estanho e tecidos para Kanesh, onde as mercadorias seriam trocadas
por mais prata, gerando um lucro considerável.
Mas
a participação de Ahaha nos lucros parecia ter desaparecido — possivelmente
desviado por um de seus próprios irmãos, Buzazu. Então, ela pegou um estilete
de junco e uma tábua de argila e escreveu uma carta para outro irmão,
Assur-mutappil, implorando por ajuda:
"Não
tenho mais nada além desses fundos", redigiu ela em escrita cuneiforme.
"Trate
de agir para que eu não seja arruinada!"
Ela
instruiu Assur-mutappil a recuperar sua prata e atualizá-la rapidamente.
"Faça
uma carta detalhada sua chegar até mim na próxima caravana, dizendo se eles
pagaram a prata", escreveu ela em outra tabuleta.
"Agora
é a hora de me fazer um favor e me salvar das dificuldades financeiras!"
As
cartas de Ahaha estão entre as 23 mil tabuletas de argila escavadas nas últimas
décadas nas ruínas das casas de mercadores em Kanesh.
Elas
pertenciam a expatriados assírios que haviam se estabelecido em Kanesh e
mantinham uma correspondência intensa com suas famílias em Assur, que ficava a
seis semanas de distância de mula.
Um
novo livro dá uma visão sem precedentes de um grupo notável dentro desta
comunidade: mulheres que aproveitaram as novas oportunidades oferecidas pela
mudança social e econômica e assumiram funções que costumavam ser ocupadas por
homens na época.
Elas
se tornaram as primeiras empresárias, banqueiras e investidoras que se tem
conhecimento na história da humanidade.
·
'Fortes e independentes'
A
maior parte das cartas, contratos e decisões judiciais encontrados em Kanesh
datam de cerca de 1900-1850 a.C., período em que a rede de comércio dos
assírios estava florescendo, trazendo prosperidade para a região e dando origem
a muitas inovações.
Os
assírios inventaram certas formas de investimento e também foram os primeiros
homens e mulheres a escrever suas próprias cartas, em vez de ditá-las a
escribas profissionais.
É
graças a essas cartas que podemos ouvir um coro vibrante de vozes femininas nos
dizendo que mesmo em um passado distante, o comércio e a inovação não eram
dominados exclusivamente pelos homens.
Enquanto
seus maridos estavam na estrada ou fechando negócios em algum assentamento
comercial distante, essas mulheres cuidavam de seus negócios em casa.
Mas
também acumulavam e administravam sua própria riqueza e, gradualmente, ganhavam
mais poder em suas vidas pessoais.
"Essas
mulheres eram realmente fortes e independentes, porque estavam sozinhas, eram
as chefes da família enquanto o marido estava fora", diz Cécile Michel,
pesquisadora sênior do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla
em francês), na França, e autora do livro Women of Assur and
Kanesh ("Mulheres de Assur e Kanesh", em tradução literal).
Por
meio de mais de 300 cartas e outros documentos, o livro conta uma história
incrivelmente detalhada das lutas e triunfos dessas mulheres. Embora repletas
de drama e aventura, as cartas de argila em si são minúsculas, do tamanho da
palma de uma mão.
A
história dessas empreendedoras está ligada à da comunidade mercantil assíria
como um todo. Em seu apogeu, os assírios estavam entre os comerciantes mais
bem-sucedidos e bem relacionados do Oriente Próximo.
Suas
caravanas de até 300 mulas cruzavam montanhas e planícies desabitadas,
transportando matérias-primas, artigos de luxo e, claro, cartas de argila.
"Era
um braço de uma enorme rede internacional, que começou em algum lugar da Ásia
Central, com lápis-lazúli do Afeganistão, cornalina do Paquistão e o estanho
que pode ter vindo do Irã ou mais para o leste", afirma Jan Gerrit
Dercksen, assiriologista da Universidade de Leiden, na Holanda, que também
estudou as tabuletas de Kanesh.
Comerciantes
estrangeiros levavam essas mercadorias para os portões de Assur, junto com tecidos
da Babilônia, no sul do Iraque.
Eles
eram vendidos aos assírios, que os empacotavam em caravanas com destino a
Kanesh e outras cidades na região de Anatólia, na Turquia, onde eram vendidos
por ouro e prata.
Instrumentos
financeiros complexos facilitavam esse comércio, como o "naruqqum",
que significa literalmente "bolsa". Uma referência à sociedade
anônima na qual os investidores assírios juntavam sua prata para financiar as
caravanas lideradas por mercadores durante muitos anos.
Os
comerciantes também desenvolveram um intenso jargão comercial.
"A
tabuleta está morta" significava que uma dívida foi paga e o contrato da
tabuleta de argila que registrava isso havia, portanto, sido cancelado.
"Prata faminta" se referia à prata que não estava sendo investida,
parada ociosa em vez de gerar lucro.
As
mulheres assírias contribuíram para essa rede comercial movimentada, produzindo
tecidos para exportação, emitindo empréstimos a comerciantes, comprando e
vendendo casas e investindo em esquemas de naruqqum. Suas habilidades como
tecelãs permitiram a elas ganhar sua própria prata.
Elas
estavam atentas à moda estrangeira e às tendências do mercado para garantir os
melhores preços, assim como aos impostos e outros custos que afetavam seus
lucros.
"Elas
eram verdadeiras contadoras. Sabiam perfeitamente o que deviam receber em troca
dos seus tecidos. E quando ganhavam dinheiro com a venda dos tecidos, pagam
pela comida, pela casa, pelos gastos cotidianos, mas também investiam",
diz Michel, que também é cocriadora de um documentário sobre essas mulheres.
·
'Guardiães dos arquivos'
Essa
perspicácia comercial permitiu que algumas assumissem posições incomuns para as
mulheres da época, atuando como sócias de confiança dos maridos nos negócios.
Os
comerciantes, por sua vez, se beneficiavam de ter esposas alfabetizadas e
versadas nos números que podiam ajudar no dia a dia dos negócios, assim como em
emergências.
Um
comerciante assírio escreve para sua esposa, Ishtar-bashti:
"Urgente!
Remova suas mercadorias excepcionais. Recolha o ouro do filho de Limishar e
envie para mim... Por favor, coloque todas as minhas tabuletas em um lugar
seguro."
Outros
pedem às esposas que consultem tabuletas específicas dos arquivos privados que
ficavam na casa para encontrar informações financeiras ou resolver um assunto
comercial.
"Como
eram elas que ficavam em casa, eram as guardiães dos arquivos", diz
Michel.
"É
preciso lembrar que esses contratos representavam muito dinheiro, por exemplo,
os contratos de empréstimo e assim por diante."
As
mulheres, por sua vez, não hesitavam em enviar instruções e advertências a seus
maridos ou irmãos.
"O
que é isso que vocês nem me mandam uma tabuleta com dois dedos de boas notícias
suas?", uma mulher assíria chamada Naramtum escreveu a dois homens. Ela
reclama sobre uma disputa envolvendo dívidas e mercadorias perdidas e incita os
homens a resolvê-la, encerrando de forma descontraída:
"Me
enviem o preço dos tecidos. Me deixem alegre!"
Outra
repreendeu o irmão pela falta de pagamento:
"Não
seja tão ganancioso a ponto de me arruinar!"
A
independência dessas mulheres contrastava fortemente com algumas outras
sociedades do antigo Oriente Próximo, como a Babilônia, no sul do Iraque.
Michel
lembra que em Assur, como em Kanesh, tanto a esposa quanto o marido podiam
pedir o divórcio — e seriam tratados da mesma forma no processo.
"Mas
exatamente ao mesmo tempo na Babilônia, no sul da Babilônia, a mulher não podia
pedir o divórcio, e no norte da Babilônia, se ela ousasse pedir, seria
condenada à morte."
Com
o fortalecimento da influência econômica, vieram melhores condições de vida a
nível pessoal para as mulheres. Várias acrescentaram cláusulas aos contratos de
casamento que proibiam os homens de arrumarem uma segunda esposa ou viajarem
sozinhos, como neste exemplo:
"Assur-malik
se casou com Suhkana, filha de Iram-Assur. Aonde quer que Assur-malik vá, ele a
levará com ele. Ele não se casará com outra mulher em Kanesh."
Em
algum momento, por razões um tanto obscuras, o comércio entre Assur e Kanesh
diminuiu. Por fim, Kanesh estava deserta.
Outras
cidades e comunidades assumiram as rédeas do comércio, da criatividade e do
intercâmbio cultural. Mas as tabuletas de argila das mulheres, endurecidas
pelas fogueiras, permaneceram nas casas abandonadas para serem descobertas
milhares de anos depois.
Elas
capturam uma experiência feminina tão raramente documentada na história — não
de rainhas ou altas sacerdotisas, mas de mulheres trabalhadoras se perguntando
como sobreviver ao dia seguinte.
Como
Michel diz, em outras cidades da Mesopotâmia, cartas escritas por mulheres
também foram encontradas, "mas não há tantas. [Kanesh] é única por
isso".
E
como cerca de metade das tabuletas de Kanesh ainda não foram decifradas,
certamente há muito mais segredos aguardando para serem revelados.
Fonte:
BBC Work Life
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