A ruína de Belo
Monte e o enigma da foz do Amazonas encaram o novo presidente do Ibama
Rodrigo
Agostinho, o novo presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), precisa se desdobrar. Antes mesmo de
assumir o cargo, no fim de fevereiro, ele já acompanhava a emergência na Terra
Indígena Yanomami. Agora, tem diante de si uma tarefa de dimensões
continentais: a desintrusão de terras indígenas invadidas pelo garimpo, ajudar
a deter o desmatamento da Amazônia e de outros biomas, como o Cerrado, e a
decisão em ao menos dois processos de licenciamento ambiental de extrema
sensibilidade. Estão na sua mesa a renovação da licença da Usina Hidrelétrica
de Belo Monte, onde a devastação provocada em sete anos de operação mostrou o
que acontece quando as recomendações do próprio Ibama são ignoradas, e o pedido
da Petrobras para explorar petróleo em alto-mar na bacia da foz do Amazonas,
abrindo uma “nova fronteira” para o combustível fóssil em meio a incertezas
sobre as consequências sociais e ecológicas. Para enfrentar todos esses
desafios urgentes, Rodrigo Agostinho conta com um instituto sucateado no
governo Bolsonaro.
Advogado,
ambientalista, ex-prefeito de Bauru, no interior de São Paulo, ex-deputado
federal pelo PSB e ex-presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara,
Agostinho fala calma e detalhadamente sobre esses desafios. Em entrevista por
telefone, afirma que pretende “tranquilizar as pessoas” sobre o projeto de
exploração de petróleo na foz do Amazonas, porque qualquer decisão “será tomada
com muito cuidado”, levando em conta “todos os impactos possíveis e
imagináveis”, e explica que a licença de Belo Monte só será renovada se a “vida
do rio Xingu estiver garantida” e todo o passivo de condicionantes
socioambientais não cumpridas for resolvido.
“O
Ibama não é irresponsável. Estamos em outro momento, sob nova presidência, nada
vai ser autorizado sem que de fato a gente tenha todas as implicações
necessárias”, diz Agostinho sobre o processo da foz do Amazonas, parte da
chamada margem equatorial, que compreende todo o litoral norte do Brasil. Ele
evita antecipar qualquer medida, mas admite que a recomendação de técnicos do
instituto de que seja pedida uma Avaliação Ambiental Estratégica, estudo mais
amplo dos impactos de uma eventual atividade petrolífera naquela região, é “uma
possibilidade real”.
Em
relação a Belo Monte, o presidente do Ibama afirma que a decisão sobre a
renovação ou não da licença não será tomada nem em curto nem sequer em médio
prazo. Ele ressalta que o principal ponto é a definição de um novo hidrograma,
o regime de uso das águas do rio na operação da usina, já que os dois previstos
no primeiro licenciamento falharam em preservar o Xingu e as comunidades que
dependem dele. “Enquanto não for definido um hidrograma razoável, enquanto não
for concluída a análise do cumprimento das condicionantes até aqui, nenhuma
licença será emitida”, explica.
De
acordo com Agostinho, o Ibama não sairá do território Yanomami tão cedo, mas as
consequências do garimpo “vão durar por toda a eternidade”. Além de áreas que
ficaram com o solo “lavado e estéril”, o que dificulta a recuperação da
floresta, há o rastro do mercúrio. Ele conta que foi pedida ajuda ao Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que dispõe de técnicos especializados
no problema. “Tem pontos importantes a serem debatidos daqui para a frente:
como minimizar o problema da contaminação do mercúrio, que orientações serão
dadas às populações da área sobre o consumo de água contaminada e como,
eventualmente, haverá reparação de danos causados pelo garimpo”, ressalta.
LEIA
A ENTREVISTA:
• Numa reunião em 3 de março, o Ibama e a
Petrobras acertaram que a Avaliação Pré-Operacional do projeto de exploração no
bloco 59 na foz do Amazonas seria feita ainda neste mês. No mesmo encontro, o
representante do Ibama disse que a Petrobras vem atendendo a todas as demandas
do instituto. Isso significa que a emissão da Licença de Operação está próxima?
Rodrigo
Agostinho: Não tem nada a ver. Há um processo que implica uma série de obrigações,
que estão sendo solicitadas, e a Petrobras vem sendo instada a realizar as
ações necessárias. Mas isso não quer dizer que tem licença pronta para sair
porque, depois de todas as solicitações, ainda há a análise técnica. Nesse caso
específico o tema é bastante sensível, e o Ibama vai ser muito, muito cuidadoso
em qualquer análise.
• Nos pareceres que o Ibama publicou nesse
processo, os técnicos, dada a sensibilidade ambiental e social daquela região,
sugeriram que seja realizada, antes da decisão sobre a licença, uma Avaliação
Ambiental de Área Sedimentar (AAAS). O presidente do Ibama tem o poder de
suspender o processo e pedir essa avaliação mais ampla, inclusive porque há
mais cinco blocos da Petrobras em licenciamento só na foz do Amazonas. O senhor
vai pedir essa avaliação, existe uma decisão?
Eu
tomei posse há pouco tempo, e esse é um tema que está entre as prioridades do
Ibama. Estão sendo analisadas todas as recomendações que foram feitas pela
equipe técnica, pelo Ministério Público, pela sociedade civil. Estamos agora
analisando todas as recomendações para que a gente possa tomar uma decisão, ou
mais de uma decisão. Nós ainda não tomamos uma decisão, mas todas as
recomendações são, em tese, possíveis de ser atendidas. O que eu quero só é tranquilizar
as pessoas, porque nenhuma decisão será tomada sem a análise técnica, sem a
avaliação de todos os impactos possíveis e imagináveis. Existe o princípio da
prevenção, existe o princípio da precaução, e eles estarão em primeiro lugar
antes de qualquer decisão sobre o licenciamento dessa atividade.
• Num dos pareceres do processo do bloco
59, em janeiro, ao sugerirem a Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, os
técnicos do Ibama escreveram que nesse caso “o licenciamento em si não é capaz
de avaliar as transformações socioambientais provocadas pelo conjunto do
empreendimento, não é capaz de prever se o petróleo é uma adequada vocação
econômica para a região”. Considerando que não há hoje produção de petróleo na
maior parte da margem equatorial do litoral brasileiro, com exceção do Rio
Grande do Norte, isso não demandaria essa avaliação mais ampla?
Bem,
o Ibama vai buscar que todas as situações sejam compreendidas, e a Avaliação
Ambiental Estratégica é sempre uma possibilidade no caso de uma situação complexa
como essa. Estamos falando de uma ampla área do litoral brasileiro que vai do
Rio Grande do Norte até o Amapá, uma região bastante sensível, em algumas áreas
há um litoral muito rico em biodiversidade, espécies migratórias, corais. Na
foz do rio Amazonas qualquer acidente tem um risco gigantesco de se transformar
numa situação fora do controle, então obviamente que isso é uma possibilidade e
está sob análise do Ibama. O Ibama vai analisar todos esses pontos. O que quero
deixar claro é que não existe nenhuma decisão de que a licença será emitida nos
próximos dias ou mesmo semanas e também no sentido de que estamos analisando
todas as recomendações feitas até aqui antes da tomada de decisão. Eu não posso
antecipar uma decisão, mas uma Avaliação Ambiental Integrada, uma Avaliação
Ambiental Estratégica, é, sim, uma possibilidade. A gente não está falando
apenas de um poço de petróleo, estamos falando de abrir uma região inteira do
Brasil para a exploração petrolífera. Obviamente que a Avaliação Ambiental Estratégica
é uma possibilidade real e está em análise neste exato momento.
• É uma área em que a própria dinâmica
marítima é pouco conhecida, por isso o Ibama decidiu construir uma nova base
hidrodinâmica naquele litoral. Pessoas que moram no Oiapoque não acreditam que
o óleo não chegará à costa em um eventual acidente. O senhor está informado
disso?
Sim,
nós já estudamos todo o processo, estamos analisando todas as possibilidades.
Como eu disse, esse processo é prioritário para o Ibama, a análise técnica está
sendo feita com muito rigor, todos os pontos levantados até aqui estão no nosso
radar, a gente sabe a sensibilidade ambiental da região, sabe dos riscos
eventuais desse tipo de atividade no local. O Ibama vem solicitando uma série
de documentos para que a gente possa tomar uma decisão alicerçada em
conhecimento científico. A minha orientação aos técnicos é que o Ibama trabalhe
sempre baseado em evidência, em conhecimentos científicos, por isso são
solicitados tantos laudos, estudos de impacto ambiental. Agora, nós estamos em
um momento de analisar tudo o que foi apresentado até aqui, há mais um estudo
em realização neste mês. Mas isso não quer dizer que a decisão será tomada
imediatamente após esse ensaio de um eventual acidente na região. O Ibama está
olhando com muito carinho e atenção esse caso.
• O processo de licenciamento mostra que a
Petrobras indicou várias vezes que esperava que a Licença de Operação fosse
emitida ainda no governo passado. Em dezembro, a empresa enviou um navio-sonda
à região que está até agora esperando a Avaliação Pré-Operacional e a licença.
Se a decisão ainda vai demorar semanas, o que o senhor diria à Petrobras?
Não
posso conversar com a Petrobras pela imprensa. Uma coisa é a Petrobras colocar
um navio na região, outra é a análise técnica do Ibama. O Ibama é uma
instituição independente, de Estado, que faz o seu trabalho com eficiência há
34 anos. Nenhuma decisão será tomada ao arrepio da lei ou de forma açodada,
independentemente de haver equipamentos lá na área. O Ibama vai fazer o seu
papel, mas a gente não dialoga por meio da imprensa.
• A pergunta era mais no sentido de que
isso gera uma expectativa na região. Há uma expectativa de empregos, de
royalties, a Petrobras está reformando o aeroporto local. Essa pressão social
não afeta o seu trabalho, o trabalho do Ibama?
Não
afeta, não. O Ibama vai fazer o seu trabalho, no seu tempo. O Ibama é
independente, ainda mais do ponto de vista do licenciamento ambiental. O Ibama
não se sente pressionado com esse tipo de situação.
• O Estudo de Impacto Ambiental feito
originalmente no processo de licenciamento afirmou que não haveria impacto nas
terras indígenas do Oiapoque. Por isso a Petrobras sempre argumentou que não
era preciso haver consulta prévia. Agora, depois de uma reunião entre os
indígenas e a empresa, ficou claro que já há impacto só com os sobrevoos das
aeronaves que vão do Oiapoque para o navio-sonda. Essa questão da consulta
prévia pode travar o processo ou não está ligada às exigências do Ibama para o
licenciamento?
A
consulta prévia, livre e informada é uma obrigação de um acordo internacional
que o Brasil assinou, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
A matéria é regulamentada no âmbito do Ibama e da Funai por meio da Portaria
60, de 2015. Esse ponto específico ainda está sob análise da equipe de
licenciamento, e, se for necessário fazer consultas, as consultas serão
obrigatórias. Estamos ainda na fase de analisar os documentos. E essa análise é
feita com outro critério, no sentido de que a gente tem hoje um novo presidente
do Ibama. Então, antes de qualquer decisão sobre licença, eu vou analisar toda
a documentação do processo, todos os estudos e recomendações feitos, antes que
a gente tome qualquer decisão.
• Pelo regulamento do Ibama, a consulta
prévia poderia ser uma condicionante? O Ibama recomendou que a Petrobras reveja
o Estudo de Impacto Ambiental para considerar esse impacto já causado.
Como
disse, nós estamos analisando, e, se for necessário solicitar novas informações
à Petrobras, essas solicitações serão feitas. O Ibama não é irresponsável.
Estamos em outro momento, sob nova presidência, nada vai ser autorizado sem que
de fato a gente tenha todas as implicações necessárias, e um dos pontos que
sempre é relevante é a questão relativa às oitivas. Não é fazer oitiva por
fazer, existem regras, protocolos, que muitas vezes mudam de acordo com a
população tradicional, com o povo indígena. É ver definições, apontamentos,
observações feitas nessas consultas que de fato possam ser relevantes para o
desenho institucional do licenciamento ambiental. Não faz sentido fazer
consulta por fazer consulta, ela tem um motivo e obrigações implícitas nela.
• Outra questão premente é a renovação da
Licença de Operação de Belo Monte.
Ela
não será feita no curto prazo. A gente tem pontos muito controversos a serem
debatidos. Não é um processo de licenciamento que tem previsão de curto nem de
médio prazo. Tem um ponto inicial bastante controverso, que é um pedido para
analisar a possibilidade de instalação de soleiras [pequenas barragens] para
minimizar os problemas relacionados a todo o perfil hidrográfico que está se
desenhando ali na região. Os estudos relacionados às soleiras já foram
apresentados, o Ibama vai analisar isso, e em seguida a gente vai se debruçar
sobre toda a questão hidrológica do rio. Não tem previsão nenhuma de emissão de
licença.
• Há uma crise ambiental e humanitária
muito forte na Volta Grande do Xingu: redução de peixes, comunidades inteiras
afetadas, um território ribeirinho que ainda não foi criado para alocar as
pessoas afastadas dos seus meios de sobrevivência.
O
Ibama tem conhecimento de todos os problemas ambientais decorrentes do
funcionamento da usina. O cumprimento de todas as condicionantes está sendo
analisado, e nós precisamos resolver o problema do hidrograma de funcionamento.
A usina foi licenciada com hidrogramas [regimes de uso das águas do rio na
operação da usina] que se mostraram insatisfatórios na execução ao longo do
tempo, e tudo isso está sendo analisado pelas equipes técnicas. O que posso
dizer é que estamos com equipes inteiras debruçadas nesses estudos para que a
gente possa avançar. Enquanto não for definido um hidrograma razoável, enquanto
não for concluída a análise do cumprimento das condicionantes até aqui, nenhuma
licença será emitida.
• Um relatório do Ibama mostra que apenas
13 das 47 condicionantes originais foram cumpridas, não é?
Quando
a usina foi licenciada, sempre ficou claro que o regime hidrológico do Xingu é
bastante complexo, a vida do rio depende desse sistema complexo. A usina foi
licenciada com dois hidrogramas, A e B, que ao longo do tempo se mostraram
bastante insatisfatórios do ponto de vista de garantia da manutenção da vida no
rio. Esses são pontos estratégicos que serão analisados e que, se não forem resolvidos,
não há que falar em licenciamento ambiental. O licenciamento vai buscar a
compatibilização dos diferentes usos do rio e da manutenção da vida no rio.
Além do mais, a gente tem esses passivos de condicionantes não cumpridas que
estão sendo postos na balança.
• O que observamos é que, no processo de
licenciamento original, muitos pareceres do Ibama foram ignorados com
frequência. A impressão é de que havia uma escolha política que beneficiava a
empresa [Norte Energia] e as empreiteiras. Desta vez, o senhor tem o
compromisso de respeitar esses pareceres técnicos?
Todo
parecer técnico que de fato seja alicerçado em informação e amparado legalmente
será levado em consideração. Como eu disse, o Ibama, daqui para a frente, fará
o seu trabalho baseado em evidências, em conhecimento técnico. Isso não quer
dizer que eventualmente um ou outro analista possa dar uma sugestão que não
seja acatada. Não existe vinculação a toda e qualquer sugestão, aconselhamento
ou parecer. Agora, aquilo que de fato for relevante com certeza será levado em
consideração. O caso de Belo Monte é bastante emblemático. Nós teremos mudanças
climáticas cada vez mais violentas, com episódios extremos acontecendo. Então,
não necessariamente o perfil hidrológico que a gente tem hoje será o perfil
daqui para a frente. A região de Altamira é uma das que têm as maiores taxas de
desmatamento no Brasil, então também há o problema da mudança do clima local.
Tudo isso precisa ser levado em consideração, e o Ibama não vai emitir nenhuma
renovação de licença sem essas análises.
• No caso das soleiras que a empresa quer
construir, preveem-se a expulsão de mais famílias e o aumento do desequilíbrio
ambiental na região. Existe a possibilidade de aprovação?
Eu
não disse que vai ser aprovado ou não. O ponto principal é a gente definir um
bom hidrograma de trabalho para o regime hidrológico do rio. A questão das
soleiras foi trazida no âmbito da possibilidade de uma redução de danos, mas,
pessoalmente, me parece muito pouco funcional. O Ibama não concluiu a análise
técnica, mas, pessoalmente, acho que resolve muito pouco a questão. E a questão
central, do hidrograma, não está resolvida. Quando a usina foi licenciada, todo
mundo sabia que em determinadas épocas faltava água naquele local. Houve o
licenciamento, e agora como resolver esses passivos decorrentes do
licenciamento é o grande desafio.
• Se a licença não for renovada, isso vai
paralisar a usina?
Eu
não posso antecipar decisões.
• É só uma pergunta hipotética.
Não
tenho essa análise para responder, mas não é desejável que uma atividade
aconteça sem o devido licenciamento ambiental, ainda mais numa situação como
essa de um empreendimento numa área tão sensível. Por outro lado, com ou sem
licença a usina vai continuar no mesmo local. A licença não muda o fato de que
existe uma barreira de concreto no rio Xingu. O que eu acredito muito é na
possibilidade de que a gente consiga avançar na questão do hidrograma, porque o
mais importante é a gente garantir a vida do rio, que as comunidades não sejam
afetadas pelo funcionamento da usina.
• No caso da Terra Indígena Yanomami, como
o senhor vê o cenário depois da emergência? Teme-se que os garimpeiros só
estejam esperando a situação esfriar para voltar. Como manter a vigilância lá
sem descuidar de outras regiões para onde o garimpo pode migrar?
Nós
não estamos dispostos a sair do território Yanomami tão cedo. Temos barreiras
nos dois principais pontos de entrada, no rio Mucajaí e no rio Uraricoera,
sendo essa última a mais antiga, em operação desde 6 de fevereiro. Por meio
dessas bases a gente tem impedido a reentrada de garimpeiros e garantido a
saída deles. Suprimentos como combustível e alimentos não estão mais entrando
por via fluvial, e isso vem forçando a saída. Há um corredor aéreo aberto até 6
de abril, que muitos garimpeiros estão usando para sair, e o que resta é um
grande rastro de destruição por dentro da terra indígena. Tem pontos
importantes a serem debatidos daqui para a frente: como minimizar o problema da
contaminação do mercúrio, que orientações serão dadas às populações da área
sobre o consumo de água contaminada, como, eventualmente, haverá reparação de
danos causados pelo garimpo. Obviamente, o Ibama não tem apenas a terra
Yanomami, tem dezenas de outras, em algumas existe decisão judicial que determina
a desintrusão.
• Por exemplo?
Nos
territórios Munduruku e Kayapó, existem várias terras indígenas em que há
decisão judicial de fazer a desintrusão, além da vontade política do atual
governo. Nós estamos fazendo um bom planejamento para entrar ao longo do ano, a
estrutura é bastante acanhada para tudo isso. No caso dos Yanomami, não vamos
sair de lá tão cedo. Contamos com o apoio de muitas instituições, como Funai,
Ministério da Defesa, Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária
Federal, além do apoio que existe em atendimento humanitário do Ministério do
Desenvolvimento e Assistência Social, do Ministério da Saúde. É uma situação
bastante complexa, o Ibama já havia planejado que entraria em março,
antecipamos em um mês por causa da crise humanitária, e nós vamos ficar lá até
que acabe de vez o garimpo naquela área. E vamos, na medida do possível, também
combater o garimpo ilegal em outras terras indígenas e em apoio ao Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) nas unidades de
conservação federais.
• Na terra Yanomami há uma destruição
absurda causada pelo garimpo, crateras na mata, rios contaminados. É possível
recuperar essas áreas?
É
possível minimizar o problema das crateras, resolver problemas relacionados às
erosões, mas as consequências do garimpo vão durar por toda a eternidade. O
mercúrio não se degrada, vai continuar presente nas águas, nos peixes. Ele
começa a ser metabolizado, vira metilmercúrio, entra na cadeia de metais. Tem
um padrão de peixes contaminados agora e nos próximos anos vai ter outro
perfil, porque vai circulando na cadeia alimentar. Há áreas em que é possível
fazer um projeto de restauração, recuperar as feições do local, deixar a
floresta fazer seu trabalho de regeneração natural, mas lá dentro tem muito
lixo acumulado, resíduos, nascentes e matas ciliares que não podem ser
recuperadas. Não tem solo, tem uma areia lavada, um solo estéril, morto. O
Ibama e o Ministério do Meio Ambiente estão discutindo com o Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Pnuma, que tem uma equipe de
especialistas em contaminação de mercúrio, para que possa ajudar num bom
diagnóstico das contaminações e orientar sobre medidas que possam ser tomadas
daqui para a frente. Mas nas áreas destruídas pelo garimpo a recuperação é
muito lenta. A floresta vai tentar ocupar o seu espaço, mas é lento. Há áreas
garimpadas na Terra Indígena Yanomami nos anos 1980 e 1990 que estão numa
situação complicada até hoje. Voltar a ser uma floresta exuberante, esquece.
• O senhor já falou, em outras
entrevistas, da carência de quadros no Ibama. Isso está afetando os processos
de licenciamento?
Não
do ponto de vista da qualidade. Mas obviamente que um quadro tão reduzido como
temos hoje influencia na velocidade das decisões. Nós temos hoje meio Ibama,
2.900 servidores, 53% do quadro, um quadro que foi desenhado lá atrás. Temos
470 servidores com abono de permanência [benefício pago ao servidor que já
poderia se aposentar, mas opta por continuar trabalhando], algumas áreas mais
intensivas do Ibama sofrem mais, como licenciamento e fiscalização. São áreas
estratégicas onde faltam profissionais, equipamento. Houve um processo de
sucateamento pesado nos últimos quatro anos, e até superar tudo isso vai levar
muito tempo. Não vai ser fácil resolver, temos a previsão de pelo menos 200
servidores se aposentarem e, a menos que eu consiga fazer concurso em outubro,
novembro, não acredito na possibilidade de que todas essas vagas sejam
preenchidas rapidamente. Ainda assim, temos que treinar, capacitar. A
experiência de campo leva tempo. Nos últimos anos, o Ibama começou a delegar
muito as licenças para os estados, principalmente os que tinham maior
estrutura, até por conta da redução da equipe. Estamos num processo de o Ibama
voltar a ser uma instituição forte, ter uma estrutura capaz de estar à altura
da biodiversidade brasileira, a maior do mundo, embora esteja ameaçada. O
Brasil ainda tem metade de sua cobertura com alguma forma de vegetação nativa,
apesar de toda a degradação temos o maior percentual de cobertura verde do
mundo. A gente tem um desafio enorme, e a estrutura do Ibama não está hoje à
altura de sua responsabilidade. O que não quer dizer que os servidores não
trabalhem com muita dedicação.
• Quão significativo de fato é o Fundo
Amazônia do ponto de vista da preservação ambiental? [O fundo, criado com
doações da Noruega e da Alemanha, foi paralisado no governo Bolsonaro, quando
ficaram retidos cerca de 3,6 bilhões de reais].
Ele
é essencial se a gente quer ter políticas públicas diferentes para a Amazônia.
Uma coisa é o orçamento da União, de cada um dos órgãos integrantes do Sistema
Nacional de Meio Ambiente (Sisnama), e outra é fazer uma política para a
Amazônia baseada em bioeconomia, geração de empregos, que respeite a maior
floresta tropical do mundo e valorize os serviços ecossistêmicos. É essencial
que a gente tenha ferramentas como o Fundo Amazônia se queremos ter uma
estratégia diferente para a Amazônia, senão o que resta é dinheiro do Plano
Safra, que vai incentivar a contínua transformação da floresta em áreas de
pastagem, de cultivo agrícola, o que vai resultar em ausência do Estado e levar
à grilagem de terra, extração ilegal de madeira, caça, pesca e mineração
ilegal. O Ibama tem feito captações de recursos do Fundo Amazônia. Acabamos de
inaugurar uma instalação do PrevFogo [Centro Nacional de Prevenção e Combate
aos Incêndios Florestais] que foi feita com o fundo e vamos apresentar um
projeto de reestruturação do setor de fiscalização do Ibama. É uma garantia de
recursos contínuos. A floresta em pé tem que valer mais do que a floresta no
chão. Hoje, dependendo do estado, uma área de floresta vale metade de uma
desmatada. No Pará, vale um décimo. Isso não vai acontecer se não criarmos um
amplo cadastro de soluções, que possam envolver pagamentos de serviços
ambientais, concessões florestais, manejo florestal, produção de artigos
florestais para a indústria alimentícia e farmacêutica, agrofloresta. O fundo é
uma ferramenta importante para isso, e o novo governo vem dando prioridade a
ele para que outros países se tornem doadores.
• Existe uma queixa recorrente de que
muitas vezes os produtos da floresta recompensam pouco o produtor.
Por
isso é que a gente não pode ter uma única solução, não é só o extrativismo. O
extrativismo é muito importante para algumas famílias, mas não vou salvar a
Amazônia inteira com uma única estratégia.
Fonte: Sumaúma
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