quinta-feira, 30 de março de 2023

A delicada luta pelo saneamento indígena

É genocídio sim, Justiça para o povo Yanomami! Esse deve ser o mantra a ecoar por todos os cantos do Brasil e do planeta. O mundo assistiu perplexo às imagens que vieram a público em janeiro último: 570 crianças Yanomami com menos de 5 anos mortas por causas evitáveis: diarreia, desnutrição, malária, verminoses. Esses números, que não incluem adultos e mulheres, podem ser maiores devido a subnotificação e configuram uma crise humanitária sem precedentes, um cenário de genocídio promovido por organizações criminosas, setores empresariais envolvidos com a lavagem do ouro, com a conivência de agentes do Estado e incentivo, sobretudo nos últimos quatro anos, do poder público, particularmente da gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Os crimes, as formas de violência, cada vez mais acintosas, comprometem a continuidade física e cultural do Povo Yanomami e a integridade do seu território, do ecossistema, consubstancial à sua existência.

Os povos indígenas apresentam modos de vida específicos e os respectivos contextos socioambientais são determinantes para tornar suas demandas relacionadas à soberania alimentar, à água e ao manejo dos resíduos bastante variáveis. É comum a compreensão de que a natureza e o ser humano são uma coisa só: a terra, as águas e tudo o que vive. Os povos indígenas se consideram parte da natureza, não seus proprietários. Desde a chegada dos colonizadores encontram-se ameaçados pelo sistema econômico e expostos a ações desumanas, revestidas de impulsionadoras do desenvolvimento. Grande parte da sociedade insiste em caracterizá-los de forma simplista e preconceituosa, sem procurar, de fato, compreendê-los, entender seus modos de vida distintos e diversos.

Os desafios para implementação de políticas públicas que contemplem os povos indígenas são muitos, se relacionam à posse e usufruto exclusivo de suas terras e territórios, à saúde, à educação, à garantia do acesso à água com a proteção dos rios, pelo reconhecimento e condições de trabalho adequadas dos profissionais de saúde indígena, dos agentes indígenas de saúde (AIS) e de saneamento (AISAN), dentre outras necessidades e direitos. Antes de se falar em demandas de saneamento básico para povos indígenas, é preciso refletir sobre o que exatamente são essas necessidades, a quem interessa saber e por quê. Partindo-se do pressuposto de que esses povos indígenas priorizam a vida em coletividade e que suas demandas são representadas por um conjunto de necessidades muito variáveis, a depender de como vivem, ações de saneamento podem assumir formas diferentes. Vão das estruturas coletivas convencionais – como as redes de água e esgoto e as unidades de tratamento – até as práticas tradicionais bastante dependentes da disponibilidade e do manejo das águas.

Quando se opta pelo saneamento convencional – demanda daqueles que o adotaram, ou a ele foram submetidos –, é reconhecida a dificuldade de o manter. As falhas são de técnicas procedentes de outras experiências, difíceis de serem assimiladas pela diferença cultural. No caso das práticas ancestrais, passadas de geração em geração, a posse da terra representa o ponto central para o seu manejo. Sem a homologação, demarcação e proteção das terras indígenas, sem políticas públicas permanentes e estruturantes asseguradas pelo Estado, sem o apoio da comunidade internacional à garantia de seus direitos, sem a possibilidade de serem protagonistas da própria história, os povos indígenas estão condenados à expropriação, em amplo sentido, e à reprodução – mesmo que gradual – de ações convencionais, ditadas pelos padrões impostos pela sociedade.

As ações voltadas ao saneamento básico para povos indígenas são primordiais para os que se encontram em terras indígenas e para aqueles que se identificam como indígenas, mesmo morando em outros ambientes e condições, tais como retomadas, acampamentos e comunidades urbanas. E são primordiais ao resto da humanidade, pelo impacto positivo da sua associação à preservação dos ecossistemas. A natureza está sob constante e crescente ameaça, tornando-se cada vez mais evidentes os efeitos nefastos causados pelo desmatamento, poluição e degradação oriundos da grilagem de terras, do garimpo ilegal, da caça e pesca ilegal, da pecuária, do agronegócio (monocultivos), da mineração em larga escala, do narcotráfico e das obras de infraestrutura. É notório que a insalubridade ambiental cresceu em ritmo acelerado nos últimos anos, de 2016 a 2022, particularmente, fomentada por um governo que deveria combatê-la e proteger a vida.

Assim, os povos indígenas necessitam protagonizar as discussões e decisões relativas às suas demandas de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais, e todos os aspectos que as integram aos distintos modos de vida, para que possam usufruir do direito de manter suas identidades e culturas. A conservação das práticas tradicionais de saneamento, com o apoio do Estado, deve ser um direito dos povos indígenas. A proteção e promoção dos direitos fundamentais e coletivos dos povos indígenas deve nortear as políticas públicas. O Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR), aprovado em 2019, aponta as diferenças entre as demandas indígenas e as demais populações rurais, a partir do conhecimento possibilitado pelo subprojeto “Perspectivas do Saneamento Básico para as Populações Indígenas no Brasil” e recomenda a elaboração de um programa específico, que contemple suas formas de organização e as suas reais necessidades. A saúde e o saneamento são indissociáveis.

O ONDAS repercute a recomendação do Programa Nacional de Saneamento Rural, de implementação de um “Programa Nacional de Saneamento Indígena” com garantia e efetiva participação dos povos indígenas, de forma a respeitar a sua cultura, o modo de se viver nos territórios e a relação de respeito com a água que se traduz não só na defesa do direito à água, mas com o direito da água e dos bens comuns. O não acesso à água com qualidade, como assistimos nos territórios Yanomami, provoca a destituição das condições de se produzir e de se viver. Afirmamos a defesa das terras indígenas, do garimpo zero, do desmatamento zero, em defesa do saneamento básico, da saúde indígena e dos bens comuns. Urge acabar com essas práticas ecocidas e genocidas.

 

       Saneamento: não basta extinguir a Funasa. Por Gabriel Brito

 

Logo em seu primeiro dia útil, o governo federal e o ministério da Saúde anunciaram a intenção de fechar a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), autarquia criada em 1991 cuja finalidade é a promoção de saneamento. Tarefa dividida entre ministérios diferentes, a partir do tamanho das cidades, a fundação se tornou entreposto das trocas de favores da política parlamentar fisiológica, o que motivou a decisão do governo Lula.

Mas, apesar da boa intenção, a iniciativa por si só não é garantia de nada. Cerca de metade da população do país carece de saneamento básico e, diante da urgência em se fazer uma transição para uma modelo de vida mais sustentável, a questão seguirá na ordem do dia. Centralizar e racionalizar as ações das quais a Funasa se incumbia nos ministérios da Saúde e das Cidades é boa iniciativa. Porém, afastar pactos e interesses escusos desta questão estrutural é o grande desafio.

“É uma instituição que sem dúvida nenhuma cumpriu e ainda cumpre um papel importante na arquitetura do saneamento do Brasil. Se confirmada sua extinção, esperamos que essa tradição continue a positivamente influenciar o setor”, contextualiza Leo Heller, ex-relator da ONU pelo Direito à Água Potável e ao Saneamento, em entrevista ao Outra Saúde.

É ele quem faz as ponderações que abrem este texto. A questão do saneamento precisa ser melhor direcionada no país e se não o foi até agora não se tratou de alguma condição inerente à autarquia. Como ressalta o engenheiro civil e mestre em Saneamento, o órgão tem contribuições positivas, que o Estado brasileiro, tomado por ideologia privatizante desde sua fundação, em 1991, não colocou em prática por falta de interesse, para não falar de práticas nada republicanas.

“Por exemplo, quando um parlamentar resolve fazer uma obra de 1 milhão de reais na cidade X do estado Y, cabe perguntar em que medida essa obra é prioritária, se está dentro de um contexto de planejamento ou não. De fato, as emendas parlamentares têm sido muito nocivas a um possível planejamento de prioridades do governo federal e a atuação da Funasa tem sido muito pautada por elas. Isso é negativo, mas não é exatamente culpa da Fundação. É um modelo de atuação política que foi criado”.

Como se vê, aqui também estamos diante de problema semelhante a todo o campo da saúde no ultimo período: a bizarra substituição da política pública coordenada e planejada pela lógica individualista e fisiológica das emendas parlamentares, diretamente ligadas a relações de conveniência de seus portadores. A seguir assim, não há milagre à vista.

Leo Heller, que lançou recentemente o livro Os direitos humanos à água e ao saneamento, aponta caminhos. Alguns até já elaborados pelo Estado. Falta, como dito acima, boa fé dos gestores políticos. “É fundamental haver o respeito ao planejamento que já temos, o Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico). O governo tem feito revisões periódicas do Plansab, mas tem uma distância entre o que é o plano, que defendo, por ser bem elaborado e, claro, o que se faz. Mas ele precisa sair dos arquivos do governo; definitivamente, o Plansab não tem orientado decisões, ações, prioridades”.

Ainda nesse sentido, Heller condena enfaticamente os projetos privatizantes no setor, em especial o Marco do Saneamento, criado em 2020 pelo governo Bolsonaro e mais uma das reformas emplacadas pelos neoliberais. Até aqui, nenhum avanço na questão. Afinal, a experiência mundial já permite afirmar o fracasso deste dogma na questão do saneamento, que apenas intensifica exclusão social.

E, também neste campo, a avanço da política pública não satisfaria “apenas” o direito humano e constitucional ao saneamento. Trata-se de gatilho de desenvolvimento econômico democratizante. “Está tudo interligado: a questão sanitária não está descolada de desenvolvimento econômico, integração social e geração de emprego e renda. Mas isso só será potencializado se o saneamento for encarado como um direito humano”.

Leia a entrevista completa com Leo Heller no Outra Saúde

•        Como analisa o fechamento da Funasa?

Foi uma recomendação da comissão de transição de governo, da área da saúde, depois de certa análise de arquitetura institucional, uma vez que a Funasa, dentro do Ministério da Saúde, trabalhava basicamente com saneamento, sobretudo em municípios menores e área rural.

A minha impressão é de que a equipe de transição identificou uma distorção das funções da Funasa no âmbito do Ministério. Haveria, eu penso, outras alternativas, como por exemplo transferi-la para o Ministério das Cidades ou o ministério que tivesse mais afinidade com o tema.

A decisão foi uma das alternativas dentre outras. O que me parece fundamental é não perder de vista que ela fazia basicamente saneamento em municípios menores, mas havia uma intenção de que passasse a coordenar e atuar muito fortemente no saneamento rural. Nesse aspecto, parece-me positivo não haver uma fragmentação das ações de saneamento como havia antes, isto é, saneamento rural no Ministério da Saúde e urbano no Ministério das Cidades. Isso não é salutar para uma política de saneamento de caráter nacional.

Portanto, com ou sem Funasa, transferir as ações de saneamento para o mesmo ministério em que estão as demais ações de saneamento parece um passo positivo. Há uma maior chance de coordenação, integração e isso pode ser feito perfeitamente com o concurso de alguns técnicos com experiência acumulada, que estão na FUNASA atualmente. Em síntese, eu não julgo nem positiva nem negativamente. Fechar a Funasa é uma dentre outras possibilidades.

O importante é monitorar o que vai acontecer e garantir que o saneamento rural de fato seja uma prioridade. A palavra é essa: prioridade no campo do saneamento no Brasil, porque a população rural é aquela que foi deixada à margem pelas últimas décadas na política de saneamento do Brasil. Hoje nós temos um projeto nacional de saneamento rural desenhado, muito bem feito, muito participativo. É momento de colocá-lo em prática. E repito: deve-se fazer isso com a experiência acumulada no Governo Federal e na própria Funasa.

•        Qual a importância da Fundação à luz de sua concepção, em 1991, e qual seu balanço histórico?

Ao longo desses 32 anos a Funasa foi mudando. Ela se origina no SESP (Serviço Especial de Saúde Pública, criado em 1942), cuja função era promover saneamento em locais estratégicos do país, onde havia maior preocupação com a saúde pública. Depois se transformou em Fundação SESP na década de 1960. A FUNASA vem no governo Collor, quando a Fundação SESP foi extinta e fundida com a SUCAM (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública).

A Funasa dá sequência às ações desses órgãos, ao lado de municípios. Teve papel muito importante em fortalecer a gestão municipal do saneamento, inaugurou no país a ideia de criação dos serviços autônomos, das autarquias municipais de saneamento. Ela ajudou a organizar algumas e participou da gestão dessas autarquias em cidades de médio porte, principalmente no Sudeste e Nordeste. Foi uma atuação muito importante, porque esse modelo das autarquias ainda hoje é muito interessante na gestão do saneamento.

A partir do governo Lula. se estabeleceu um pacto entre o Ministério das Cidades e a FUNASA de um recorte para cidades até 50 mil habitantes: em cidades com populações inferiores a isso, ela atuaria; em superiores, entraria o Ministério das Cidades. A FUNASA carrega uma tradição importante de serviços municipais, teve uma ação importante também no campo da tecnologia apropriada e da tecnologia social, trouxe algumas experiências inclusive internacionais ao Brasil.

É muito difícil saber em que medida que a fundação hoje é a mesma do início. Houve renovação dos quadros e ela vinha atuando com convênios, com os municípios, transferindo-lhes recursos, em especial do Orçamento Geral da União. Ela é uma mediadora entre o recurso federal e o município que o aplica; claro que ela faz também um monitoramento, um acompanhamento dessa aplicação, mas não tem mais a atuação que já teve, quando ela própria organizava o serviço de saneamento e participava da execução de ações. Isso tem ficado muito por conta dos municípios.

Mas é uma instituição que sem dúvida nenhuma cumpriu e ainda cumpre um papel importante na arquitetura do saneamento do Brasil. Se confirmada sua extinção, esperamos que essa tradição continue a positivamente influenciar o setor.

•        Uma crítica, talvez a principal, que fundamenta sua extinção é que a Fundação se tornou uma moeda política para negociações fisiológicas e manejo de verbas de emendas parlamentares, que produzem uma descoordenação de suas funções essenciais. Como você vê isso?

Existem tradições boas e ruins na Fundação. Ela ser um espaço de clientelismo, partidos conservadores a almejarem porque através dela há transferência de recurso, espaço para campanhas políticas  é ruim, claro. Eu acho difícil generalizar e dizer que a FUNASA é só isso. Tem uma parte boa, têm pessoas comprometidos.

Mas o que tem sido um grande problema – neste e em outros espaços de governo – são as emendas, em especial as emendas impositivas. As emendas ignoram totalmente uma perspectiva de política pública, de visão mais ampliada, e no caso do saneamento isso fica visível.

Por exemplo, quando um parlamentar resolve fazer uma obra de 1 milhão de reais na cidade X do estado Y, cabe perguntar em que medida essa obra é prioritária, se está dentro de um contexto de planejamento ou não. De fato, as emendas têm sido muito nocivas a um possível planejamento de prioridades do governo federal e a atuação da FUNASA tem sido muito pautada pelas emendas parlamentares. Isso é negativo, mas não é exatamente culpa da Fundação. É um modelo de atuação política que foi criado. Acontece também no Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, e no Ministério das Cidades em cidades com de populações de maior porte…

A palavra é pesada, mas tal prática é um câncer na área de saneamento.

Onde fica o Plansab (Plano Nacional de Saneamento)? A alocação de recursos, onerosos ou não onerosos, não deveria ser pautada por critérios estabelecidos em um plano nacional? Mas o que vemos é uma dinâmica, de ver quem consegue emplacar uma emenda parlamentar no congresso. Um deputado, um senador, que quer colocar saneamento no seu município, onde tem maior chance de obter votos e promover seu nome. Isso é uma grande distorção. Sempre me posicionei contra essa prática das emendas parlamentares e infelizmente a FUNASA se viu envolvida nesse processo.

•        Considerando o seu alerta de que este desvio de finalidade não é exclusivo à Funasa, e tem a ver com a dinâmica de reprodução política vigente, como a política de saneamento, uma das maiores necessidades estruturais do país, precisa ser direcionada pelo atual governo?

Algumas transformações são essenciais. Primeiro, precisa ter uma boa coordenação: saneamento ainda é muito disperso em diferentes ministérios e nos diferentes níveis subnacionais – federal, governos estaduais e municipais. Tão pouca coordenação não faz bem pra um setor que tem tantos déficits, em um país com tanta diversidade, com tanta complexidade, com muita coisa a ser superada.

Segundo: planejamento. É fundamental haver o respeito ao planejamento que já temos, o Plansab. O governo tem feito revisões periódicas do Plansab, mas tem uma distância entre o que é o plano, que defendo, por ser bem elaborado e, claro, o que se faz. Mas ele precisa sair dos arquivos do governo; definitivamente, o Plansab não tem orientado decisões, ações, prioridades.

Para dar um exemplo, o Plansab prevê três programas para implementação da política de saneamento: integrado, rural e estruturante. Não tem havido nenhum tipo de orientação das ações do Governo Federal, segundo esses três programas.

O programa de saneamento rural foi elaborado, formulado, mas está no papel. O saneamento estruturante, que é muito importante e foi uma das grandes inovações do Plansab, não tem tido prioridade. Significaria fortalecer o gestor, o regulador, dar mais eficiência aos sistemas, controlar perdas, investir em ciência e tecnologia para ganhar inovação no setor, investir em planejamento, em controle social.

Tudo isso está nesse guarda-chuva do chamado saneamento estruturante e está totalmente fora do radar das políticas de saneamento e seu planejamento.

Coordenação e planejamento são centrais na medida em que se paute a política de saneamento dessa forma, com as devidas atualizações. Nós teríamos muito mais eficiência e efetividade no uso do recurso público.

•        No meio disso, tivemos o Marco do Saneamento Básico, criado em 2020, entendido por muitos como mais uma pauta neoliberal encampada pelo Estado. O Marco já tem alguma contribuição visível para a expansão do saneamento no país?

A Lei 14.026 não foi exatamente uma inovação, um “novo marco”, pois apenas faz alterações no marco que já existia desde 2007. É uma lei que tem uma um caráter absolutamente enviesado, é ideológico. Uma lei que foi feita para proteger as empresas privadas, substituir, sufocar as empresas públicas, principalmente as companhias estaduais, e substitui-las pela prestação privada. É um modelo que carece de evidência internacional de ser o melhor. Ao contrário, é um modelo fracassado em várias partes do mundo.

É um novo modelo de saneamento que vai trazer muitos retrocessos, não vai ajudar. A gente já está vendo em alguns estados problemas nos processos de privatização, no Rio de Janeiro, em Alagoas, já têm algumas denúncias surgindo, problemas aparecendo nesse processo de privatização em massa, em larga escala. Nenhum lugar do mundo está fazendo isso hoje. Foi feito nos anos 90. A Lei é uma aposta muito sustentada na política neoliberal do ministro Guedes, muito apoiada por lobbys empresariais e a mídia corporativa, que comprou esse discurso, fez campanha a favor e conseguiu prevalecer na Câmara e no Senado.

É um retrocesso. Nós ainda vamos penar muito com as consequências desse marco e eu espero que o Governo Federal procure minimamente neutralizar seus efeitos, olhando para as populações excluídas do país, coisa que a privatização não fará.

•        Você acabou de lançar Os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento, robusto volume de 600 páginas que discute tais questões de forma multifacetada. O que pode comentar deste trabalho e quais são suas contribuições, à luz do que debatemos nesta entrevista?

Esse livro foi lançado inicialmente em inglês, depois no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz; agora nós estamos num processo de lançar uma edição na Espanha e no México. Ele é fruto de reflexões que eu fiz quando fui relator especial para os direitos humanos, com atualizações e revisões de alguns relatórios que eu produzi durante esse meu mandato nas Nações Unidas.

A ideia do livro é trazer o conceito dos direitos humanos à água e ao saneamento, mostrando como pode ser apropriado nas políticas públicas. Ao nos apropriarmos de tais conceitos, a política pública passa a enxergar determinadas faces da realidade que não enxerga tradicionalmente, usando outro tipo de marco conceitual.

Por exemplo, desigualdades: colocamos a necessidade de garantir o direito de populações que tem baixa capacidade de pagamento pelos serviços ou que são invisíveis aos olhos das políticas públicas, como pessoas que vivem em situação de rua.

Também trazemos alguns elementos que orientam a política, como a ideia da responsabilização, da avaliação, da regulação pautada pelos direitos humanos. A pretensão do livro é contribuir para a área do saneamento, mas não apenas ela, e sim também dos direitos humanos, das políticas públicas, mostrando novas possibilidades, de caráter mais social.

Eu tenho visto que este é um conceito que vem ganhando o espaço nacional e internacional. Um exemplo que eu daria é a criação do Ondas, o Observatório Nacional para os Direitos da Água e Saneamento, uma organização não governamental que tem mostrado muitas possibilidades quando se utiliza esse marco na crítica e na identificação de boas práticas em políticas públicas. Minha esperança é que o livro contribua para esse debate, para que as políticas públicas tenham uma outra orientação.

Ainda estamos distantes disso no Brasil, sequer conseguimos mudar a Constituição para reconhecer tais direitos. Tem PECs tramitando, mas não foram votadas e o livro traz uma perspectiva muito interessante no sentido de pautar as políticas públicas de uma maneira nova.

•        Por fim, para além de seu caráter de direito humano essencial, uma política bem coordenada de saneamento não poderia ser um catalisador econômico capaz de contribuir para a superação de nossa atual crise social?

Eu não vejo incompatibilidade entre o saneamento ser considerado um direito humano e contribuir para os aspectos colocados na pergunta. Ao implementar saneamento com base na visão dos direitos humanos nós vamos ter um serviço mais inclusivo, com menos populações deixadas para trás, com menos marginalização, com mais transparência. Somente para ficar num exemplo, um princípio dos direitos humanos é de que, quando há um conflito pelo uso da água, a prioridade é para o consumo humano, em detrimento de outros usos como irrigação, indústrias, mineração.

Essa guinada na concepção do saneamento potencializa muitos benefícios, como na saúde, ambiente, geração de emprego. Isso é natural quando se trata esse setor com prioridade, pois ele é muito intensivo em uso de mão de obra. Gera conforto, desenvolvimento urbano, enfim, tem muitas áreas das políticas públicas que são muito beneficiadas quando se dá este tipo de prioridade.

Uma leitura muito interessante que tem sido feita é sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030, delineada pela ONU. Nesta agenda, há estudos e documentos a demonstrar que quando se prioriza essa área tem-se um benefício para quase todos os outros 17 objetivos do desenvolvimento sustentável: combate à pobreza, melhoria da saúde, cidades inclusivas, geração de empregos… Isso está bem documentado, bem estudado. Está tudo interligado: a questão sanitária não está descolada de desenvolvimento econômico, integração social e geração de emprego e renda. Mas isso só será potencializado se o saneamento for encarado como um direito humano.

 

Fonte: Ondas — Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento/Outra Saúde

 

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