quinta-feira, 24 de abril de 2014

A beleza da lata d’água na cabeça


Outro dia, fiz-me de bobo e fingi estar chocado — todo politicamente correto... e prosa! — com a declaração de ódio à nova classe média expectorada pela suprassumática fisólofa-mor do PT, meme imediato nas redes sociais. Ainda estava atordoado com a pilhéria da noite anterior quando, num desses neomodistas stand up, a comediante berrava, fazendo beiço-gordo de latino-americana velha, diante de uma trupe de maltrapilhos em algazarra numa galeria de arte: “Tira a mão do quadro, meu filho! É só pra olhar... não precisa colocar a mão! Não basta ser pobre, né?! Tem que botar a lata d’água na cabeça!”
O suposto desconforto — lapso politicamente correto, reitero! — com essas personagens da vida público-privada brasileira remeteu-me diretamente à douta diretora de uma universidade-riquinha que, provavelmente trajando elegante estola e imaginando estar na Dinamarca, usou uma rede social para protestar contra a camisa regata, bermuda e sapatênis do passageiro que comia coxinha com guaraná zero ao seu lado e questionou se o Aeroporto Santos Dumont, no ultratropical Rio de Janeiro, não estaria se tornando uma rodoviária. Foi aplaudida por amigos mestres e até por magnífico reitor de universidade-pobrezinha.
Cá estava eu, très, très, très désolé, com o desenrolar desse modelo de crítica — digamos assim — ao que os larápios dos cofres públicos chamam de “distribuição de renda” e “justiça social”, quando me tornei observador-vítima de nossa barbárie (in)civilizatória.
 Resistente a feriado-emendado — desastre pra quem tenta produzir alguma coisa neste país-tetado, invenção de vagabundo, deleite de mandrião —, acatei a sugestão doméstica de passar o final de semana de Páscoa num hotel que, diariamente, abre as portas da Amazônia mato-grossense aos turistas do mundo. Um lugar espetacular, difícil acesso, repleto de cuidados especiais, águas cristalinas, pássaros exóticos e peixes belíssimos em balé diante de quem se aproxima. Conhecemos o local há dois anos, ao custo de R$ 400 a diária, quando dividimos todo esse paraíso com apenas um casal polaco educado — sim, eles existem! —, deslumbrados com as maravilhas da região.
Qual não foi a surpresa? Feita nas coxas a tal da “justiça social” e da “transferência de renda” à custa de uma minoria que ainda tenta tocar à frente a bananeira, ao desembarcar a “pré-visão” dava o tom da desgraça. No lugar onde outrora capivaras desfilavam faceiras, um casal estendia uma gigantesca toalha de estampa floral e distribuía pipoca e bolacha de maisena a várias crianças que pulavam, sem dó, sobre o jardim bem cuidado. Previsão fatídica.
Na pequena cabana com pérgula florida, onde era possível deitar à rede e contemplar a floresta e o rio, dois barrigudos desavergonhados exibiam as panças suadas, sem camisas, enquanto preparavam um churrasco. Suas esposas — creio eu — aguardavam a carne enquanto tostavam a própria, besuntando com bronzeador os traseiros empinados em microscópicos biquínis. À esquerda, um rapaz de óculos com armação branca e lentes multicoloridas protagonizava um agarra-agarra erótico com uma louraça, deitados à margem do lago. Ao lado da pornochanchada, duas crianças batiam os pés n’água para espantar os peixes, enquanto seus pais gritavam, ao longe, ferindo decibéis toleráveis.
Cabisbaixo, decidi seguir a trilha e buscar alguma distância em meio à mata, na belíssima nascente do rio. Ao contrário do som do brotar das águas que antes avisava a proximidade do destino, agora era possível ouvir o funk da “grande pensadora contemporânea” anunciando “só tiro, porrada e bomba”: a piscina formada no nascedouro do grande rio parecia um rolezinho de shopping paulistano, com direito a “proibidão” na floresta ao redor. Voltamos para o restaurante, sentamos à mesa e ficamos a refletir sobre o “extraordinário feriadão”. Arrisquei algumas selfies — porque não sou ferro! — e fui surpreendido por um pirarucu aparecido e um pintado assustado.
Para coroar o “day use” no paraíso ecológico, mais de cem pessoas se esfregavam numa fila — brasileiro odeia guardar educada e gentil distância, pois não?! — para alcançar o leitão assado — com direito a maçã na boca e tudo! — que alimentaria a tropa. Funcionários visivelmente constrangidos tentavam poses de aeromoça de avião em queda, enquanto a multidão seguia em falatório, temendo que os primeiros comessem o porco inteiro e não sobrasse jabá. “Isso aqui está errado! Deveriam distribuir senhas”, protestou uma mulher encharcada, com óculos terrivelmente grandes e canga amarrada ao redor do pescoço.
Voltei pra casa e fiz uma série de fotos sobre as maravilhas de tê-la... imune, tranquila... cachorro, gata, coqueiro, caju e soneca à beira da piscina. Posteriormente questionado nas redes sociais sobre como passei o feriado, minha humilde consciência resgatou a filósofa petista, o professor candango e douta carioca. Ainda mantendo minha opinião quanto à preciosidade desta joia da coroa hoteleira mato-grossense, respondi ao estilo stand up, sob salvas de incompreensão: “A lata d’água na cabeça é uma beleza!”

Autor: HELDER CALDEIRA - Escritor, Jornalista Político e Conferencista.
*Autor dos livros “ÁGUAS TURVAS” e “A 1ª PRESIDENTA”.


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