O cinismo é uma arma preciosa... e perigosa. Especialmente em nações
miseráveis, fartamente desiguais e com população com nível político-cultural
muito abaixo do que se espera como mínimo. Cumpre aos cínicos a tarefa de
vestir a máscara do que imagina ser seu tempo e seu espaço, pretendendo romper
o pragmatismo das fronteiras e princípios basilares à convivência nas
sociedades contemporâneas.
Por óbvio, o duelo entre o cinismo e a legalidade é bastante
conveniente aos nebulosos interesses de uma espécie bizarra: os ideólogos
discursistas. Aquela raça tacanha, de apoucada responsabilidade, sempre pronta
a fermentar supostos conceitos politicamente corretos, servidos à bandeja do
caráter duvidoso e da má-fé. Eia, pois, a resumir a ópera dos malandros cínicos
em argumento de palanque político brasileiro.
Neste início de 2014, o charlatanismo de bananeira é o “rolezinho”. A garotada da
geração “nem-nem” — nem trabalha, nem estuda, nem joga
futebol, nem virou modelo, nem entrou no reality
show — utiliza o democrático
neodivã freudiano das redes sociais para agendar a reunião de milhares em
espaços públicos e privados, preferencialmente algum shopping center, taxado de “templo do consumo capitalista”,
demonizado nas mal traçadas linhas e mal versados discursos construídos sob a
égide do analfabetismo funcional crônico deste país, mas desejado pelo supremo
instinto de quem quer ser “alguém” na flagelada terra verde-e-amarela de
poucos,“quase ninguém”.
“Os babaca tá noiado. Bora cola no shop sem arrasta só cata mulher,
encoxa no banheiro, fumá maconha, bebe e tira foto :D vamo que vamo!” [sic], diz a
chamada numa rede social para mais um “rolezinho”,
com mais de 10 mil convidados. Em seguida, um comentário pede adesão à petição
pública contra o “apartheid
urbano”, enquanto uma ala medíocre dos veículos de comunicação alterna
imagens de uma pequena trupe em cantoria inofensiva (audição exclusa ao
adjetivo) na praça de alimentação e uma multidão desenfreada correndo,
gritando, quebrando e, nalguns casos, saqueando lojas.
Tal como os vinte centavos de junho de 2013, a onda modista está
ganhando o país, inclusive com “variações”,
digamos, pretensamente edificantes e solidárias: na biblioteca, no ensino médio
e até no asilo. O cinismo está na alma do brasileiro feito a lendária Excalibur, encravada à pedra.
Imediatamente, entram em ação os cínicos institucionais e oportunistas,
com políticos desprezíveis e agrupamentos de mamateiros da sociedade civil
bradando contra o suposto “preconceito
contra pobres e crioulos” que
querem“se divertir” nos “ambientes da elite”. “São jovens com alta demanda por
cultura e lazer não atendida pelos governos”, argumentou um representante
da turma dos direitos humanos da Ordem dos Advogados do Brasil.
Em que planeta a “alta
demanda por cultura e lazer” pode
servir de combustível e justificativa à baderna, ao vandalismo, à bandalheira e
ao descalabro? Estudar, trabalhar e se empenhar integra o desejo de poucos. O
Estado brasileiro é tetado e tem dispensado tais esforços.
O que falta ao país das bananas e jabuticabas é ter coragem e dignidade.
Entre outras coisas, para assumir que o“rolezinho” é uma vertente pueril do glamourizado
crime organizado sob o abraço carinhoso e fraterno de nossas instituições
falidas. Como muito bem disse o escritor e filósofo Luiz Felipe Pondé em seu
artigo “Covardia chique”,
publicado na Folha de
S.Paulo: “Logo, vamos
exigir a abolição do trabalho como direito. Ganhar a vida com o suor do rosto
será considerado contra os direitos humanos. [...] É a corrosão do caráter
causada pelo enriquecimento das sociedades e suas demandas de supressão das
condições reais da vida como dor, luta e trabalho”.
Noutras palavras, são “rolezinhos” de cínicos, insatisfeitos com seus
modelos de telefone celular, videogames, tênis e bonés, em busca de privilégios
e facilidades. É claro, convenientemente travestidos em lutas de classes,
preconceitos periféricos e pedestres bandeiras políticas em nome de
pseudodireitos. Assustar, vandalizar, roubar, fotografar e postar, aguardando
curtidas e compartilhamentos. Realmente, são muito cínicos!
Autor: HELDER CALDEIRA*
- Escritor e
Jornalista Político
*Autor dos
livros “ÁGUAS TURVAS” e “A
1ª PRESIDENTA”.