quarta-feira, 9 de abril de 2025

SUS pode ser inspiração para salvar saúde do Reino Unido, diz jornal inglês

O governo britânico "está acompanhando de perto" o modelo brasileiro dos agentes comunitários de saúde, estudando aplicar algo semelhante no NHS, o sistema de saúde do Reino Unido, segundo reportagem publicada pelo jornal The Telegraph na segunda-feira (07/04).

A reportagem, assinada por Laura Donnelly e Claudia Marquis, pergunta no título: "O NHS está perto do colapso — um projeto das favelas brasileiras poderia salvá-lo?"

De acordo com o jornal, o governo britânico está fazendo um projeto-piloto inspirado no modelo brasileiro em Pimlico, um bairro de Londres.

O projeto deve ser ampliado depois para 25 regiões na Inglaterra.

No Brasil, os agentes comunitários de saúde fazem parte da chamada Estratégia Saúde da Família, sob o guarda-chuva do Sistema Único de Saúde (SUS).

Segundo a reportagem do jornal britânico, os agentes comunitários propiciaram "melhorias drásticas" em indicadores de saúde no Brasil.

"Poucos meses após vencer a eleição, o governo [do partido] trabalhista ficou bastante interessado na Estratégia Saúde da Família brasileira, enviando representantes da área de saúde ao Rio para assinar uma carta de intenções sobre a cooperação em saúde entre o Reino Unido e o Brasil", diz um trecho da reportagem.

Ainda de acordo com o texto, o ministro da Saúde britânico, Wes Streeting, convidou especialistas em saúde do Brasil para obter informações sobre os programas de saúde da família e para usar esse conhecimento em um planejamento de dez anos para o NHS.

Esse plano deve ser publicado em junho, de acordo com o Telegraph — com maior ênfase na prevenção a doenças e um deslocamento do foco dos hospitais em direção às comunidades, o que seria inspirado no modelo brasileiro.

Durante a campanha eleitoral, na véspera da vitória trabalhista em julho de 2024, Streeting apontou que um dos maiores problemas do sistema britânico era a dificuldade de acesso a médicos.

Um dos entusiastas do modelo brasileiro e que está trabalhando na implementação de algo parecido no Reino Unido é o médico inglês Matthew Harris.

Harris já trabalhou em Pernambuco e atualmente é pesquisador da Escola de Saúde Pública do Imperial College de Londres. Em 2023, durante entrevista à BBC News Brasil, ele não fez cerimônia ao afirmar que a iniciativa é "100%" inspirada na Estratégia Saúde da Família.

<><> 'Senso de comunidade' funcionaria no Reino Unido?

A Estratégia Saúde da Família e os agentes comunitários começaram a ser implementados no Brasil no início dos anos 1990.

Normalmente, os agentes comunitários fazem partes de equipes de Saúde Família com outros profissionais, como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.

A reportagem do Telegraph, que visitou equipes de agentes comunitários e pacientes em cidades como Rio de Janeiro, Duque de Caxias e Manaus, destaca que esses profissionais atuam nas áreas onde moram e são obstinados em realizar seu trabalho — mesmo enfrentando as consequências da pobreza, as longas distâncias da Amazônia e a violência das grandes cidades brasileiras.

É enfatizado também que os agentes não têm necessariamente diplomas na área de saúde, mas recebem treinamento — a partir daí, indo de "porta em porta, oferecendo escuta atenta, recomendações de saúde e educação e conexões com os serviços de saúde".

Muitos, inclusive, são sobrecarregados pelas centenas de famílias que precisam atender, diz também o Telegraph.

São mostradas histórias reais de trocas, inclusive afetivas, entre os agentes e a população. Confiança e até segredos de família fazem parte dessa relação, contam Donnelly e Marquis.

Mas as repórteres do Telegraph colocam em dúvida se um dos ingredientes do sucesso brasileiro, a proximidade entre os agentes e a população, funcionaria do outro lado do Atlântico.

"Talvez seja menos claro se a Grã-Bretanha moderna tem um senso de comunidade que poderia ser aproveitado, ou se uma batida na porta seria tão bem-vinda."

¨      'O SUS trouxe inúmeras conquistas ao Brasil, mas ele pode ser aprimorado para reduzir desigualdades', diz professor de Harvard

Um país que não consegue garantir bons serviços de saúde à sua população precisa repensar suas prioridades.

Esse é um dos lemas que guia a carreira do médico Rifat Atun, professor de Sistemas Globais de Saúde da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.

Atun se interessou pelo tema ainda quando estava na faculdade de medicina. Depois de formado, o especialista teve a oportunidade de estudar de perto o modelo de saúde implementado no Reino Unido. "Foi um período de grandes reformas e achei muito interessante observar como isso mudou a situação das pessoas por lá", relembra.

Na bagagem, Atun traz a experiência de ter trabalhado em vários cantos do mundo. "Comecei na América Latina, onde lidei com os sistemas de saúde de Chile, Brasil, Bolívia e México", conta.

Ele também passou pelos países que compunham o ex-bloco soviético e prestou serviços na África, no Sudeste Asiático e no Oriente Médio.

Nesta entrevista à BBC News Brasil, Atun faz uma análise sobre a importância da cobertura universal de saúde, com destaque para o modelo brasileiro representado pelo Sistema Único de Saúde, o SUS.

O professor também analisa como a pandemia de covid-19 modificou a forma como os países enxergam e estruturam seus próprios sistemas de saúde.

  • Por que é importante que um país tenha um sistema de saúde?

Rifat Atun - Esse é um setor crítico para qualquer nação. Isso fica fácil de ver agora, durante a pandemia, quando estamos diante das consequências de um sistema de saúde fraco e mal estruturado, com o alto número de mortes por causa da covid-19. O sistema de saúde bem estruturado não é luxo. É algo que todos os países precisam necessariamente ter.

·        Mas o que define um sistema de saúde na sua essência?

Atun - Quando falamos em sistemas de saúde, podemos pensar na forma como ele é organizado, governado e financiado. Como os recursos chegam até a ponta e garantem bons profissionais, medicamentos e equipamentos? Na sequência, é preciso responder como toda a estrutura é utilizada pela população e quais são os efeitos disso em termos de saúde pública. É muito importante que os sistemas de saúde sejam efetivos, eficientes, igualitários e atinjam seus objetivos. A principal meta, claro, é sempre melhorar a saúde da população.

  • Um bom sistema de saúde precisa necessariamente ser público? Como você avalia a interação entre serviços públicos e privados?

Atun - Esse é um tópico muito debatido e que tem muitos aspectos. Se considerarmos o financiamento do sistema, ele pode vir de fontes públicas, privadas ou das duas ao mesmo tempo.

Em países europeus, esse modelo é muito comum. Nos EUA, cerca de metade do financiamento vem de fontes públicas, que pagam por programas como o Medicaid e o Medicare. O restante é privado ou pago diretamente pelos próprios contribuintes. Uma outra possibilidade recorrente é quando governos compram ou contratam serviços de saúde de empresas privadas.

Mas volto a repetir: independentemente do modelo, o mais importante é que o sistema de saúde seja eficiente, efetivo, igualitário e responda às necessidades locais. Se é público ou privado? No fim das contas, o que vale é a qualidade dos serviços prestados e o acesso que as pessoas têm a eles.

  • Dentro de tantos modelos adotados por diferentes países, tem algum que você considera o ideal ou o melhor?

Atun - Isso depende dos objetivos de cada sistema e quais as necessidades dos cidadãos. Tipicamente, considero ideais os sistemas que atingem a cobertura universal de saúde e são igualitários, no sentido de oferecerem um serviço de qualidade a todos.

Há muitos países europeus que conquistaram isso. Encontramos bons exemplos também entre as nações asiáticas, como o Japão, a Coreia do Sul e a Malásia. Outros com sistemas de saúde bem estruturados são a Austrália, a Nova Zelândia e a Turquia.

  • É possível copiar esses bons exemplos em outros países? Ou é necessário sempre adaptá-los às realidades locais?

Atun - Não conseguimos simplesmente copiar um modelo de saúde de um país para outro. Isso não é apropriado, nem aconselhável. É necessário entender o contexto de cada país, suas características demográficas, geográficas, o ambiente político e os valores caros aos cidadãos. O que podemos fazer é usar os mesmos princípios. Quais são as bases que estão no desenvolvimento de um sistema de saúde?

Apesar de todas essas particularidades, muitos desses bons modelos podem ser adaptados em seus fundamentos. Um princípio importante é a cobertura universal, de modo que todos tenham acesso aos serviços essenciais. Mas a configuração de cada sistema será diferente.

Se considerarmos o Brasil, por exemplo, a escolha foi por uma organização administrativa descentralizada. Isso faz parte do próprio processo de redemocratização do país após a ditadura militar.

Com isso, o manejo das políticas de saúde é regional. As decisões sobre o sistema são descentralizadas. Na contramão, em locais como a Turquia, as decisões são centralizadas. Isso reflete a estrutura de governo de cada país.

  • Falando do Brasil, que avaliação o sr. faz do nosso Sistema Único de Saúde, o SUS?

Atun - Um dos grandes méritos do SUS é que, num período de 30 anos, o Brasil foi capaz de colocar em prática uma forte estratégia de saúde da família. Essa política expandiu a cobertura de saúde para mais de 100 milhões de cidadãos no país. Isso trouxe muitos ganhos, com reduções significativas na mortalidade materno-infantil e ganhos no manejo de doenças crônicas e infecciosas.

Dito isto, o SUS também enfrenta muitos desafios. Para começo de conversa, o financiamento varia substancialmente de acordo com a região do país. Em segundo lugar, os três níveis de administração [federal, estadual e municipal] levam à fragmentação do sistema. Muitas cidades brasileiras são pequenas demais e não têm capacidade de administrar os cuidados com a saúde de sua população de maneira adequada.

Por fim, o Brasil tem um setor privado de saúde enorme, que poderia ser melhor aproveitado. Atualmente, os sistemas público e privado funcionam separadamente. Mas o governo poderia utilizar muito melhor a estrutura privada. Essa colaboração poderia ser aprimorada para que todo o sistema funcionasse melhor.

  • É possível comparar o SUS com algum sistema de saúde de outro país?

Atun - Depende do que você quer comparar. Eu penso que o SUS vai bem numa série de métricas e parâmetros. A descentralização da administração não é necessariamente ruim. Há vários países que adotam essa estratégia, como o Canadá, a Rússia e a Índia. São nações cujo manejo de saúde é feito diretamente pelas administrações regionais.

O SUS trouxe inúmeras conquistas ao Brasil, mas ele pode ser aprimorado para reduzir desigualdades. Há muita disparidade em termos de acesso a serviços e isso traz impactos na qualidade da saúde da população.

  • Em 2020, algumas notícias indicavam que o governo brasileiro estudava privatizar alguns serviços básicos relacionados ao SUS. Isso gerou uma onda de protestos e um movimento de valorização do sistema público de saúde. Como o sr. avalia esse tipo de reação?

Atun - Eu penso que é importantíssimo que os países sejam capazes de prover uma cobertura universal de saúde aos seus cidadãos. Se um Estado não consegue oferecer isso, ele precisa urgentemente repensar as suas prioridades. Saúde é um tema crítico não apenas quando pensamos em cada indivíduo, na comunidade ou no país inteiro. A saúde tem impacto direto na economia e no tecido social que dá coesão a um povo.

Em relação ao setor privado, a resposta depende de como esse potencial pode ser usado. Se o governo consegue se organizar e contratar empresas para prestar um serviço bom por um preço justo, isso é ok.

Se você analisar países como Holanda e Reino Unido, muitos serviços primários de saúde são terceirizados ou contratados de forma independente. Isso significa que aqueles profissionais da linha de frente não são empregados diretamente pelo Estado. Mas há um valor, um fundamento, uma ética por trás disso, que garante um serviço de alta qualidade.

  • O que a covid-19 pode nos ensinar sobre a importância de sistemas de saúde bem estruturados?

Atun - A pandemia nos traz lições muito valiosas. Nós já sabíamos antes dela que, de maneira geral, muitos sistemas de saúde não estavam se saindo bem. O que a covid-19 nos revelou foi a magnitude dessa baixa qualidade dos serviços prestados. Muitos sistemas não foram capazes de responder de forma ideal. É só olhar para os EUA ou o Brasil, que acumulam centenas de milhares de mortes.

E olha que mesmo países cujos sistemas de saúde são bem avaliados nos surpreenderam negativamente, como Espanha, Itália e França. Isso tem muitas consequências negativas para todos os indivíduos. Quantas pessoas não morreram de forma desnecessária?

Daqui para a frente, num cenário de crise financeira e desemprego generalizado, os sistemas de saúde terão uma missão ainda mais importante. Eles serão essenciais não apenas no campo da saúde, mas para a economia, a segurança e o próprio bem-estar social em todos os países.

  • Ao longo da pandemia, houve uma grande discussão sobre salvar vidas ou salvar empregos. A dicotomia saúde versus economia faz algum sentido?

Atun - Essa é uma falsa dicotomia, pois falamos de duas coisas inseparáveis. Se o sistema de saúde de um determinado país não é forte o suficiente, a população sofre, e a economia entra em crise. Isso gera mais estragos, pois abalos econômicos diminuem o suporte aos sistemas de saúde. A questão não é escolher um ou outro, mas lançar mão de políticas e estratégias capazes de proteger a saúde dos cidadãos, de maneira que a economia se recupere gradualmente.

Esse é um tema particularmente sério na América Latina, cujos países não possuem sistemas de saúde tão bem estruturados como em outras partes do mundo. Nessa região, há muitas pessoas que trabalham no mercado informal e precisam ter sua saúde protegida de alguma maneira.

  • Os países realizaram mudanças significativas em seus sistemas de saúde durante a pandemia?

Atun - Sim, nós tivemos excelentes exemplos disso. A Coreia do Sul apostou em soluções digitais, com análise de dados em tempo real e uso de celulares para aumentar a sua capacidade de testagem e rastreio de contatos de pessoas potencialmente contaminadas. Assim, esse país conseguiu colocar em prática políticas altamente efetivas de quarentena e isolamento social, de maneira a limitar a pandemia em seu território.

A Alemanha também deu uma ótima resposta na primeira onda da pandemia, com uma grande capacidade de usar seu sistema de saúde.

O que estamos vendo em outros lugares é cada vez mais o uso de soluções digitais, como a telemedicina e o acompanhamento remoto de pacientes. Essas mudanças importantes podem continuar a trazer benefícios e tornar os sistemas de saúde mais eficientes, mesmo quando essa pandemia acabar.

 

Fonte: BBC News

 

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