SUS
pode ser inspiração para salvar saúde do Reino Unido, diz jornal inglês
O
governo britânico "está acompanhando de perto" o modelo brasileiro dos agentes
comunitários de saúde, estudando aplicar algo semelhante no NHS, o sistema de saúde do Reino Unido, segundo reportagem
publicada pelo jornal The Telegraph na segunda-feira (07/04).
A
reportagem, assinada por Laura Donnelly e Claudia Marquis, pergunta no título:
"O NHS está perto do colapso — um projeto das favelas brasileiras
poderia salvá-lo?"
De
acordo com o jornal, o governo britânico está fazendo um projeto-piloto
inspirado no modelo brasileiro em Pimlico, um
bairro de Londres.
O
projeto deve ser ampliado depois para 25 regiões na Inglaterra.
No
Brasil, os agentes comunitários de saúde fazem parte da chamada Estratégia
Saúde da Família, sob o guarda-chuva do Sistema Único de Saúde (SUS).
Segundo
a reportagem do jornal britânico, os agentes comunitários propiciaram
"melhorias drásticas" em indicadores de saúde no Brasil.
"Poucos
meses após vencer a eleição, o governo [do partido] trabalhista ficou bastante
interessado na Estratégia Saúde da Família brasileira, enviando representantes
da área de saúde ao Rio para assinar uma carta de intenções sobre a cooperação
em saúde entre o Reino Unido e o Brasil", diz um trecho da reportagem.
Ainda
de acordo com o texto, o ministro da Saúde britânico, Wes Streeting, convidou
especialistas em saúde do Brasil para obter informações sobre os programas de
saúde da família e para usar esse conhecimento em um planejamento de dez anos
para o NHS.
Esse
plano deve ser publicado em junho, de acordo com o Telegraph — com maior ênfase
na prevenção a doenças e um deslocamento do foco dos hospitais em direção às
comunidades, o que seria inspirado no modelo brasileiro.
Durante
a campanha eleitoral, na véspera da vitória trabalhista em julho de 2024,
Streeting apontou que um dos maiores problemas do sistema britânico era a
dificuldade de acesso a médicos.
Um dos
entusiastas do modelo brasileiro e que está trabalhando na implementação de
algo parecido no Reino Unido é o médico inglês Matthew Harris.
Harris
já trabalhou em Pernambuco e atualmente é pesquisador da Escola de Saúde
Pública do Imperial College de Londres. Em 2023, durante entrevista à BBC News Brasil, ele não fez
cerimônia ao afirmar que a iniciativa é "100%" inspirada na
Estratégia Saúde da Família.
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'Senso de comunidade' funcionaria no Reino Unido?
A
Estratégia Saúde da Família e os agentes comunitários começaram a ser
implementados no Brasil no início dos anos 1990.
Normalmente,
os agentes comunitários fazem partes de equipes de Saúde Família com outros profissionais,
como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem.
A
reportagem do Telegraph, que visitou equipes de agentes comunitários e
pacientes em cidades como Rio de Janeiro, Duque de Caxias e Manaus, destaca que
esses profissionais atuam nas áreas onde moram e são obstinados em realizar seu
trabalho — mesmo enfrentando as consequências da pobreza, as longas distâncias
da Amazônia e a violência das grandes cidades brasileiras.
É
enfatizado também que os agentes não têm necessariamente diplomas na área de
saúde, mas recebem treinamento — a partir daí, indo de "porta em porta,
oferecendo escuta atenta, recomendações de saúde e educação e conexões com os
serviços de saúde".
Muitos,
inclusive, são sobrecarregados pelas centenas de famílias que precisam atender,
diz também o Telegraph.
São
mostradas histórias reais de trocas, inclusive afetivas, entre os agentes e a
população. Confiança e até segredos de família fazem parte dessa relação,
contam Donnelly e Marquis.
Mas as
repórteres do Telegraph colocam em dúvida se um dos ingredientes do sucesso
brasileiro, a proximidade entre os agentes e a população, funcionaria do outro
lado do Atlântico.
"Talvez
seja menos claro se a Grã-Bretanha moderna tem um senso de comunidade que
poderia ser aproveitado, ou se uma batida na porta seria tão bem-vinda."
¨ 'O SUS trouxe
inúmeras conquistas ao Brasil, mas ele pode ser aprimorado para reduzir
desigualdades', diz professor de Harvard
Um país
que não consegue garantir bons serviços de saúde à sua população precisa
repensar suas prioridades.
Esse é
um dos lemas que guia a carreira do médico Rifat Atun, professor de Sistemas
Globais de Saúde da Universidade Harvard, nos Estados Unidos.
Atun se
interessou pelo tema ainda quando estava na faculdade de medicina. Depois de
formado, o especialista teve a oportunidade de estudar de perto o modelo de
saúde implementado no Reino Unido. "Foi um período de grandes reformas e
achei muito interessante observar como isso mudou a situação das pessoas por
lá", relembra.
Na
bagagem, Atun traz a experiência de ter trabalhado em vários cantos do mundo.
"Comecei na América Latina, onde lidei com os sistemas de saúde de Chile,
Brasil, Bolívia e México", conta.
Ele
também passou pelos países que compunham o ex-bloco soviético e prestou
serviços na África, no Sudeste Asiático e no Oriente Médio.
Nesta
entrevista à BBC News Brasil, Atun faz uma análise sobre a importância da
cobertura universal de saúde, com destaque para o modelo brasileiro
representado pelo Sistema Único de Saúde, o SUS.
O
professor também analisa como a pandemia de covid-19 modificou a forma como os
países enxergam e estruturam seus próprios sistemas de saúde.
- Por que é
importante que um país tenha um sistema de saúde?
Rifat
Atun - Esse
é um setor crítico para qualquer nação. Isso fica fácil de ver agora, durante a
pandemia, quando estamos diante das consequências de um sistema de saúde fraco
e mal estruturado, com o alto número de mortes por causa da covid-19. O sistema
de saúde bem estruturado não é luxo. É algo que todos os países precisam
necessariamente ter.
·
Mas o que define um sistema de saúde na sua essência?
Atun
- Quando
falamos em sistemas de saúde, podemos pensar na forma como ele é organizado,
governado e financiado. Como os recursos chegam até a ponta e garantem bons
profissionais, medicamentos e equipamentos? Na sequência, é preciso responder
como toda a estrutura é utilizada pela população e quais são os efeitos disso
em termos de saúde pública. É muito importante que os sistemas de saúde sejam
efetivos, eficientes, igualitários e atinjam seus objetivos. A principal meta,
claro, é sempre melhorar a saúde da população.
- Um bom sistema
de saúde precisa necessariamente ser público? Como você avalia a interação
entre serviços públicos e privados?
Atun
- Esse
é um tópico muito debatido e que tem muitos aspectos. Se considerarmos o
financiamento do sistema, ele pode vir de fontes públicas, privadas ou das duas
ao mesmo tempo.
Em
países europeus, esse modelo é muito comum. Nos EUA, cerca de metade do
financiamento vem de fontes públicas, que pagam por programas como o Medicaid e
o Medicare. O restante é privado ou pago diretamente pelos próprios
contribuintes. Uma outra possibilidade recorrente é quando governos compram ou
contratam serviços de saúde de empresas privadas.
Mas
volto a repetir: independentemente do modelo, o mais importante é que o sistema
de saúde seja eficiente, efetivo, igualitário e responda às necessidades
locais. Se é público ou privado? No fim das contas, o que vale é a qualidade
dos serviços prestados e o acesso que as pessoas têm a eles.
- Dentro de tantos
modelos adotados por diferentes países, tem algum que você considera o
ideal ou o melhor?
Atun
- Isso
depende dos objetivos de cada sistema e quais as necessidades dos cidadãos.
Tipicamente, considero ideais os sistemas que atingem a cobertura universal de
saúde e são igualitários, no sentido de oferecerem um serviço de qualidade a
todos.
Há
muitos países europeus que conquistaram isso. Encontramos bons exemplos também
entre as nações asiáticas, como o Japão, a Coreia do Sul e a Malásia. Outros
com sistemas de saúde bem estruturados são a Austrália, a Nova Zelândia e a
Turquia.
- É possível
copiar esses bons exemplos em outros países? Ou é necessário sempre
adaptá-los às realidades locais?
Atun
- Não
conseguimos simplesmente copiar um modelo de saúde de um país para outro. Isso
não é apropriado, nem aconselhável. É necessário entender o contexto de cada
país, suas características demográficas, geográficas, o ambiente político e os
valores caros aos cidadãos. O que podemos fazer é usar os mesmos princípios.
Quais são as bases que estão no desenvolvimento de um sistema de saúde?
Apesar
de todas essas particularidades, muitos desses bons modelos podem ser adaptados
em seus fundamentos. Um princípio importante é a cobertura universal, de modo
que todos tenham acesso aos serviços essenciais. Mas a configuração de cada
sistema será diferente.
Se
considerarmos o Brasil, por exemplo, a escolha foi por uma organização
administrativa descentralizada. Isso faz parte do próprio processo de
redemocratização do país após a ditadura militar.
Com
isso, o manejo das políticas de saúde é regional. As decisões sobre o sistema
são descentralizadas. Na contramão, em locais como a Turquia, as decisões são
centralizadas. Isso reflete a estrutura de governo de cada país.
- Falando do
Brasil, que avaliação o sr. faz do nosso Sistema Único de Saúde,
o SUS?
Atun
- Um
dos grandes méritos do SUS é que, num período de 30 anos, o Brasil foi capaz de
colocar em prática uma forte estratégia de saúde da família. Essa política
expandiu a cobertura de saúde para mais de 100 milhões de cidadãos no país.
Isso trouxe muitos ganhos, com reduções significativas na mortalidade
materno-infantil e ganhos no manejo de doenças crônicas e infecciosas.
Dito
isto, o SUS também enfrenta muitos desafios. Para começo de conversa, o
financiamento varia substancialmente de acordo com a região do país. Em segundo
lugar, os três níveis de administração [federal, estadual e municipal] levam
à fragmentação do sistema. Muitas cidades brasileiras são pequenas demais e não
têm capacidade de administrar os cuidados com a saúde de sua população de
maneira adequada.
Por
fim, o Brasil tem um setor privado de saúde enorme, que poderia ser melhor
aproveitado. Atualmente, os sistemas público e privado funcionam separadamente.
Mas o governo poderia utilizar muito melhor a estrutura privada. Essa
colaboração poderia ser aprimorada para que todo o sistema funcionasse melhor.
- É possível
comparar o SUS com algum sistema de saúde de outro país?
Atun
- Depende
do que você quer comparar. Eu penso que o SUS vai bem numa série de métricas e
parâmetros. A descentralização da administração não é necessariamente ruim. Há
vários países que adotam essa estratégia, como o Canadá, a Rússia e a Índia.
São nações cujo manejo de saúde é feito diretamente pelas administrações
regionais.
O SUS
trouxe inúmeras conquistas ao Brasil, mas ele pode ser aprimorado para reduzir
desigualdades. Há muita disparidade em termos de acesso a serviços e isso traz
impactos na qualidade da saúde da população.
- Em 2020, algumas
notícias indicavam que o governo brasileiro estudava privatizar alguns
serviços básicos relacionados ao SUS. Isso gerou uma onda de protestos e
um movimento de valorização do sistema público de saúde. Como o
sr. avalia esse tipo de reação?
Atun
- Eu
penso que é importantíssimo que os países sejam capazes de prover uma cobertura
universal de saúde aos seus cidadãos. Se um Estado não consegue oferecer isso,
ele precisa urgentemente repensar as suas prioridades. Saúde é um tema crítico
não apenas quando pensamos em cada indivíduo, na comunidade ou no país inteiro.
A saúde tem impacto direto na economia e no tecido social que dá coesão a um
povo.
Em
relação ao setor privado, a resposta depende de como esse potencial pode ser
usado. Se o governo consegue se organizar e contratar empresas para prestar um
serviço bom por um preço justo, isso é ok.
Se você
analisar países como Holanda e Reino Unido, muitos serviços primários de saúde
são terceirizados ou contratados de forma independente. Isso significa que
aqueles profissionais da linha de frente não são empregados diretamente pelo
Estado. Mas há um valor, um fundamento, uma ética por trás disso, que garante
um serviço de alta qualidade.
- O que a covid-19
pode nos ensinar sobre a importância de sistemas de saúde bem
estruturados?
Atun
- A
pandemia nos traz lições muito valiosas. Nós já sabíamos antes dela que, de
maneira geral, muitos sistemas de saúde não estavam se saindo bem. O que a
covid-19 nos revelou foi a magnitude dessa baixa qualidade dos serviços
prestados. Muitos sistemas não foram capazes de responder de forma ideal. É só
olhar para os EUA ou o Brasil, que acumulam centenas de milhares de mortes.
E olha
que mesmo países cujos sistemas de saúde são bem avaliados nos surpreenderam
negativamente, como Espanha, Itália e França. Isso tem muitas consequências
negativas para todos os indivíduos. Quantas pessoas não morreram de forma
desnecessária?
Daqui
para a frente, num cenário de crise financeira e desemprego generalizado, os
sistemas de saúde terão uma missão ainda mais importante. Eles serão essenciais
não apenas no campo da saúde, mas para a economia, a segurança e o próprio
bem-estar social em todos os países.
- Ao longo da
pandemia, houve uma grande discussão sobre salvar vidas ou salvar
empregos. A dicotomia saúde versus economia faz algum
sentido?
Atun
- Essa
é uma falsa dicotomia, pois falamos de duas coisas inseparáveis. Se o sistema
de saúde de um determinado país não é forte o suficiente, a população sofre, e
a economia entra em crise. Isso gera mais estragos, pois abalos econômicos
diminuem o suporte aos sistemas de saúde. A questão não é escolher um ou outro,
mas lançar mão de políticas e estratégias capazes de proteger a saúde dos
cidadãos, de maneira que a economia se recupere gradualmente.
Esse é
um tema particularmente sério na América Latina, cujos países não possuem
sistemas de saúde tão bem estruturados como em outras partes do mundo. Nessa
região, há muitas pessoas que trabalham no mercado informal e precisam ter sua
saúde protegida de alguma maneira.
- Os países
realizaram mudanças significativas em seus sistemas de saúde durante a
pandemia?
Atun
- Sim,
nós tivemos excelentes exemplos disso. A Coreia do Sul apostou em soluções
digitais, com análise de dados em tempo real e uso de celulares para aumentar a
sua capacidade de testagem e rastreio de contatos de pessoas potencialmente
contaminadas. Assim, esse país conseguiu colocar em prática políticas altamente
efetivas de quarentena e isolamento social, de maneira a limitar a pandemia em
seu território.
A
Alemanha também deu uma ótima resposta na primeira onda da pandemia, com uma
grande capacidade de usar seu sistema de saúde.
O que
estamos vendo em outros lugares é cada vez mais o uso de soluções digitais,
como a telemedicina e o acompanhamento remoto de pacientes. Essas mudanças
importantes podem continuar a trazer benefícios e tornar os sistemas de saúde
mais eficientes, mesmo quando essa pandemia acabar.
Fonte:
BBC News

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