Por que os EUA tentam esconder a covid longa?
Ativistas e pesquisadores da covid longa nos
Estados Unidos conseguiram um feito extraordinário. Após uma batalha árdua,
foram revogadas algumas das anulações de financiamentos de pesquisas, que
haviam sido ordenados pelo governo do presidente Donald Trump. Uma rara vitória
para a ciência, num momento em que a equipe do presidente corta verbas e demite
pesquisadores que trabalham para órgãos federais.
A crise começou no final de março, quando os
Institutos Nacionais de Saúde (NIH) cortaram o financiamento para dezenas de
projetos sobre covid longa. Ativistas e pesquisadores – muitos deles mesmos com
covid longa – iniciaram uma campanha incansável. Seu esforço convenceu, na
última hora, um membro do Congresso simpático à causa a intervir, segundo um
funcionário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), que supervisiona
o NIH (ele pediu anonimato por não estar autorizado a falar com a imprensa). Em
poucos dias, os cortes foram revertidos.
Mas a decisão do governo de encerrar uma
série de pesquisas sobre doenças infecciosas sugere um caminho difícil para os
estudos sobre covid prolongada. Agora, cientistas e ativistas sustentam a
ansiedade e esperança, enquanto se preparam para lutar contra possíveis novos
cortes no financiamento federal.
“A comunidade de pacientes com covid longa
está atordoada e chocada com o que está vendo”, afirma Emily Taylor, presidente
da Solve ME/CFS Initiative, sediada na Califórnia. “Temos dito aos
congressistas: ‘Parem de cortar, antes de tudo. Parem de nos ferir. Parem com a
dor’”.
O HHS, que inclui o NIH e outras agências de
saúde, não respondeu a um pedido de comentário.
- O
alcance da covid longa
Nos últimos dois meses, o governo do
presidente Donald Trump cancelou ou adiou milhares de bolsas de pesquisa
biomédica, incluindo as relacionadas à covid-19.
Quando questionado sobre os cortes
relacionados à covid-19, um porta-voz do HHS disse à Nature, em 26
de março: “O HHS não vai mais desperdiçar bilhões de dólares dos contribuintes
para responder a uma pandemia inexistente que os americanos já superaram”.
Essa resposta assustou pesquisadores da covid
longa e pessoas que lutam para seu reconhecimento. “É totalmente chocante e
realmente incorreto”, segundo Serena Spudich, neurocientista de doenças
infecciosas da Yale School of Medicine, em Connecticut. “As consequências da
pandemia de covid ainda afetam milhões de pessoas, a economia e a capacidade de
trabalhar e estudar.” Um estudo de
2024 estimou que 11 milhões nos EUA
atualmente vivem com covid longa, e que a condição custa ao país mais de US$
152,6 bilhões em horas de trabalho perdidas por ano.
- Portas
fechadas
O HHS é liderado pelo notório ativista
antivacina Robert F. Kennedy Jr, que afirmou, durante sua audiência de
confirmação em 29 de janeiro, que se comprometeria a financiar pesquisas sobre
covid longa. Isso deu a Ian Simon, então diretor do Escritório de Pesquisa e
Prática em Covid Longa do HHS, um “lampejo de esperança”, porque parecia “um
endosso total a uma ação governamental séria”. Mas os cancelamentos de
financiamento “me fazem questionar se um endosso total diante do Congresso
significa alguma coisa, hoje em dia”.
Sob Kennedy, o HHS fechou seu escritório de
covid longa, demitiu Simon e outro funcionário. Uma ordem executiva assinada
por Trump dissolveu o único comitê consultivo federal sobre covid longa, e o
Departamento de Trabalho dos EUA removeu menções à condição de seus sites.
O NIH cortou não apenas pesquisas sobre covid
longa, mas também outros trabalhos que poderiam afetar pessoas com a condição.
Vários estudos sobre deficiências foram encerrados, conta David Putrino,
fisioterapeuta e neurocientista da Icahn School of Medicine em Nova York. E
muitas pessoas com covid longa grave vivem com deficiências.
Apesar disso, alguns defensores esperavam que
a iniciativa RECOVER, do NIH, de US$ 1,8 bilhão para pesquisa sobre covid longa,
estivesse segura – pois o Congresso garantiu seu financiamento direto em
2020.
Mas no final de março, o NIH cancelou uma
série de financiamentos do RECOVER. “Ficamos completamente chocados”, conta
Megan Fitzgerald, neurocientista da Pensilvânia, que vive com covid longa e
trabalha com o grupo de advocacy Patient-Led Research Collaborative. “Foi
quando começamos a nos mobilizar.”
- Investimento
desperdiçado
A investigação de Fitzgerald revelou dezenas
de projetos cancelados, a maioria estudos sobre a biologia da covid longa ou
sua manifestação em crianças. A perda dos estudos pediátricos seria
particularmente dolorosa, diz Fitzgerald, porque a pesquisa em crianças está
atrasada em relação aos adultos.
Os estudos biológicos incluíam um projeto
sobre disautonomia, uma condição associada à covid longa que afeta o controle
da frequência cardíaca e da pressão arterial. Outro projeto encerrado buscava
caracterizar anticorpos produzidos contra proteínas do próprio corpo. Esses
“autoanticorpos” podem contribuir para alguns casos de covid longa – e ser
alvos de medicamentos.
Em muitos casos, os projetos estavam quase
concluídos. Encerrá-los pouco antes da publicação seria jogar fora o tempo e
dinheiro já investidos, defende Taylor. “É a coisa mais estúpida, pegar todo
esse investimento e interrompê-lo no meio”, afirma.
Para combater os cortes, Fitzgerald trabalhou
com dedicação para tentar convencer os pesquisadores a relatar suas histórias a
parlamentares e à mídia. “Muitos estavam receosos”, diz ela, por temer que
divulgar sua situação prejudicasse futuros financiamentos.
No estado de Maryland, Meighan Stone,
diretora do Long Covid Campaign, pressionou seus contatos no Congresso e na
mídia. Stone, que usa cadeira de rodas devido à covid longa, manteve-se
esperançosa. Após a audiência de Jay Bhattacharya para diretor do NIH, ela o
abordou. “Ele firmou um compromisso pessoal de trabalhar em tratamentos para
covid longa, se confirmado”, diz Stone.
Em 28 de março, pesquisadores do RECOVER
tiveram a notícia de que seus financiamentos foram reativados.
- Poder
da comunidade
Foi uma vitória crucial, mas alguns
financiamentos não vinculados ao RECOVER permanecem cancelados. Isso inclui um
estudo de Serena Spudich sobre os efeitos da covid longa no cérebro e um
projeto de Abraam Yakoub, da Harvard University, sobre como a infecção por
SARS-CoV-2 no cérebro causa sintomas em outras partes do corpo.
Em 3 de abril, um juiz federal bloqueou
temporariamente a tentativa de Trump de cortar US$ 11 bilhões de iniciativas
relacionadas à covid−19 no HHS; ainda não está claro como a decisão afetará
esses financiamentos.
Se há um lado positivo no estresse, é que o
choque dos últimos meses uniu todos os envolvidos na pesquisa sobre covid
longa, diz Taylor: “A ameaça de cortes energizou a comunidade científica a se
envolver e se manifestar”.
Fonte: Por Heidi Ledford e Max
Kozlov, na Nature
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