sexta-feira, 25 de abril de 2025

Pepe Escobar: O Espírito de Xangai – a China Não Aceitará Intimidações

Do alto da Torre Jin Mao, no distrito financeiro de padrão mundial de  Lujiazui, em Pudong, um elegantemente discreto companheiro art déco do arranha-céu do Centro Financeiro Mundial – o símbolo distintivo do poderio econômico da China – é como se os raios de uma roda radiassem para o Bund e ainda mais além, seguindo o incessante impulso a se contrapor à  idiotia absurda do “Imperador das Tarifas”, objeto de implacáveis caçoadas em miríades de plataformas de mídia social chinesas.  

 Tive o privilégio de caminhar do Centro Financeiro Bund, que abriga, entre outras instituições, a Fundação Fosun – uma obra-prima arquitetônica inspirada nas construções de bambu – até a Academia Chinesa, no imaculado campus da Universidade Fudan, onde participei de um seminário com o famosíssimo  Professor Zhang Weiwei em uma mesa-redonda composta dos melhores alunos de doutorado das mais diversas disciplinas. O Professor Zhang Weiwei é o principal conceituador da China como um estado-civilização.  

 O tema principal de nosso seminário foi a parceria estratégica Rússia-China, mas era inevitável que o foco se deslocasse incessantemente para o embasamento lógico usado pelo Imperador das Tarifas. As perguntas dos estudantes não poderiam ser mais afiadas. O seminário foi complementado por uma entrevista de grande nível de profundidade feita para a Academia Chinesa e apresentada por seu CEO, o formidável Pan Xiaoli.

 Uma visita à sede do Guancha – o maior website independente de noticiário/análise da China de hoje, cujos diversos canais em diferentes plataformas atingem o estarrecedor número de 200 milhões de pessoas – não poderia ter vindo em melhor hora. Guo Jiezhen, pesquisador do Instituto China, que participou de nossa mesa-redonda na Universidade de Fundan, trouxe uma das análises mais sagazes daquilo que ele descreve como "a insana técnica de fazer dinheiro" de Trump.  

 Em nosso encontro com o novo editor-em-chefe do Guancha,  He Shenquan, discutindo com os hipercompetentes especialistas em relações internacionais  Kelly Liu e Yang Hanyi – o chefe da comunicação do Instituto China – assistimos a um excepcional podcast com o Coronel do Exército de Libertação Popular Wang Lihua, com Gao Zhikai – Vice-Diretor do Centro China e Globalização  (CCG) – e com o sempre essencial Li Bo, Presidente do Instituto de Estratégia de Desenvolvimento  Chunqiu de Xangai.  

 E foi então que a lendária formulação de Mao Zedong datada da década de 1960, dos Estados Unidos como um “tigre de papel” – citada por toda a parte, de slogans guerrilheiros latino-americanos  a filmes de Godard - ressurgiu com força total.  

 Wang Lihua citou o que o Presidente Xi havia dito a Putin em sua decisiva reunião no Kremlin, há dois anos: estamos em meio a mudanças jamais vistas em cem anos.  

 Wang: “Essa mudança não pode se dar de uma só vez, e a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos não se resolverá em definitivo. Fricções e conflitos dessa natureza, nas palavras do Presidente Mao, são como “criar problemas, fracassar, criar problemas novamente, fracassar novamente, até a destruição”.  

 Wang concluiu com aquilo que talvez encapsule o sentimento dominante na China, identificado em cada rua, em cada esquina de Xangai: “É difícil para os Estados Unidos consertarem a si próprios de dentro para fora. Agora, os Estados Unidos têm que se confrontar  com a China e com o resto do mundo, e sua força, obviamente, não é suficiente, de modo que o fracasso é inevitável. Não temos medo de uma guerra prolongada porque o tempo está de nosso lado”.    

 A China “não tem medo da guerra”, seja qual for a forma com que ela se manifeste, de híbrida a quente, é o sentimento dominante em Xangai, com base no conceito maoísta de “frente unida”, e esposado por todos, desde acadêmicos e líderes empresariais até moradores dos “alojamentos modelo” da era maoísta impecavelmente preservados – e com um olho na inovação (por exemplo: fila após fila de tomadas para alimentar a multidão de bicicletas elétricas estacionadas nos pátios internos).  

  • O “Tigre de Papel” Dá o Bote

 Foi imensamente esclarecedor participar de almoços de negócios com executivos e com pessoal de vendas de diversas províncias chinesas – na espetacular Pei Mansion, um dos mais belos prédios de inícios do século XX de Xangai, onde o famoso arquiteto I.M. Pei viveu por um ano,  e também no Ali Wang, o melhor restaurante da cidade, situado no Centro Financeiro Mundial, que proporcionou uma experiência completa de pratos uigures de carne de carneiro.

 Todas as conversas e debate foram marcadas por uma constante: nenhuma ilusão quanto ao Trump 2.0 vir a mudar de estratégia, e como voltar essa estratégia contra os Estados Unidos, ao estilo de  Sun Tzu; de que forma a China deve acumular um sólido conjunto de instrumentos de barganha e, principalmente que, desde o início, essa foi uma guerra de uma fração da elite das classes dominantes estadunidenses contra a China. O resto do mundo é uma mera atração secundária.  

 Não é de admirar, portanto, que em qualquer jantar de negócios, após uma inigualável festa gastronômica, a conversa logo se volte para o fato de  que a estratégia chinesa não irá tratar do controle de danos imediatos, e que a China já está de olho em novos vínculos e nós que aprofundem sua competitividade global no longo prazo.

 É uma questão em aberto se o Trump 2.0 e seu time de sinófobos conseguirão evitar o surgimento de uma aliança estratégica da Maioria Global contra o Império do Caos.

 Em Xangai e por toda a China, a submissão simplesmente não é uma opção. Em termos culturais, Trump conseguir antagonizar  de uma só vez 1,4 bilhões de chineses ao desrespeitar o estado-civilização. A coisa que mais irrita os chineses é o desrespeito (ver, por exemplo,  o “século de humilhação”.  

 Uma guerra comercial escancarada? Desacoplamento profundo? Manda vir.  

 O Imperador das Tarifas atacou, em especial, as cadeias de suprimento do Sudeste Asiático – Vietnã, Camboja, Laos, Mianmar. O principal parceiro comercial de toda a ASEAN 10 é a China. Os investimentos externos diretos chineses são muito importantes para o Camboja e para Mianmar, que enfrenta grandes dificuldades após o terremoto. É fora de dúvida que a ASEAN terá que agir de forma “estrategicamente multilateral”.  

 A tão oportuna viagem do Presidente Xi ao Vietnã, Camboja e Malásia já começou a dar o tom  – o que foi corroborado pelo Chanceler chinês Wang Yi: "O Sudeste Asiático chegou a um consenso: continuaremos unidos e diremos não a esses atos retrógrados e regressivos”.  

 O Chilique Tarifário de Trump (CTT) é uma guerra contra os BRICS e a ASEAN – e contra a crescente presença da ASEAN nos BRICS, como membros plenos (Indonésia) e parceiros (Malásia, Tailândia, Vietnã). Intelectuais chineses de grande prestígio têm plena consciência desse fato. Trump, de sua parte, levando em conta sua ficha corrida, sequer sabe o que BRICS e ASEAN de fato significam.

 Nas reuniões sherpa dos BRICS, que preparam para a cúpula que terá lugar no Rio, em inícios de julho, já se notam sérias medidas visando a se contrapor ao “protecionismo sem precedentes” da guerra comercial de Trump, nas palavras do Ministério da Agricultura brasileiro. Trump já lançou a ameaça que se tornou sua marca: uma tarifa de 150%  para todos os membros dos BRICS. A China, um dos principais países-membros dos BRICS,  não se deixou intimidar.

  • Atarefados em Construir Consenso Global contra as Intimidações   

 Enquanto isso, em Pequim, em consonância com todo o frenesi intelectual de Xangai, Jensen Huang, CEO da Nvidia, vestindo terno (ele prefere jaquetas de couro) em sinal de respeito e falando inglês (apesar de ter nascido em Taiwan) teve um encontro hiperimportante com Ren Hongbin, presidente do Conselho Chinês para a Promoção do Comércio Internacional (CCPIT).

 Aqui temos, então, o CEO multibilionário de uma gigante de chips dos Estados Unidos dizendo pessoalmente ao governo chinês que sua empresa permanece totalmente comprometida com o mercado chinês, apesar das severas restrições à exportação de Chips de IA impostas pelo  Trump 2.0.   

 Um livro recém-lançado, The Thinking Machine: Jensen Huang, Nvidia, and the World’s Most Coveted Microchip, é leitura obrigatória para entender a maneira de pensar de Huang. Ele é um imigrante asiático que veio da pobreza, personifica o clássico sonho americano, não aceita desaforo de ninguém e é hipercompetitivo. Huang tem plena consciência de que a Nvidia, simplesmente, não pode perder o mercado chinês, além de saber que, antes de 2030, os engenheiros chineses irão lançar seu próprio  GPU, levando talvez a Nvidia à falência.

 Voltando a Xangai, ao levantar voo do Aeroporto de Pudong foi fácil entender por que o tráfego de passageiros  da China alcançou uma alta recorde no primeiro trimestre de 2025 – mesmo em uma atmosfera de “crise” e competição feroz, inclusive com as ferrovias de alta velocidade. Some-se a isso o tsunami humano que invade a Rodovia  Nanjing em uma sexta-feira à noite, exigindo filas e mais filas de policiais militares para disciplinar o fluxo humano em ambos os lados do bulevar de pedestres.  

  • Crise de consumo? Que crise? 

Paralelamente, do outro lado do Pacífico, o  Taobao é hoje o número 2 – e continua crescendo  – na App Store da Apple, nos Estados Unidos. Todos estão ansiosos não apenas por vídeos do TikTok, mas também por ir às compras e ter acesso ilimitado a produtos baratos made in China.  

 No front militar, a China acaba de lançar uma bomba de hidrogênio não-nuclear. Sem urânio. Sem plutônio. Apenas uma inigualável solução de química-engenharia. Impérios decadentes travando guerras por procuração são tão século passado. A nova bomba chinesa pesa 2 quilos, dura quinze vezes mais que o TNT e sua bola de fogo excede os 1000 graus Celsius.  

 A principal lição aprendida nesses frenéticos dias em Xangai talvez seja de que a China está hoje firme e estrategicamente focada em ocupar, por todo o planeta, uma posição de superioridade moral.  

 O Chilique Tarifário de Trump  (CTT) talvez não melhore o déficit comercial americano. Mas já ficou claro que ele implodiu a credibilidade dos Estados Unidos.   

 Além do mais, a prioridade absoluta da China vai muito além do comércio global: todos os que estejam familiarizados com o Pensamento de Xi Jinping sabem que seu objetivo é alcançar a “modernização nacional”,  a unificação e a construção, juntamente com parceiros de todos os continentes, de uma “comunidade de futuro compartilhado”.  

 Tanto em termos geopolíticos quanto geoeconômicos, portanto, esse é o mapa do percurso que temos pela frente: Xangai vem mostrando que a China está se deliciando com seu novo papel de farol da Resistência, disposta a desafiar toda e qualquer intimidação, ocupada em construir um consenso em meio à Maioria Global. Trata-se de paciência estratégica – que um Império caótico e fora do controle simplesmente não possui.  

¨      China joga duro com Trump e exige fim de todas as tarifas antes de negociar

Pequim pediu que os Estados Unidos “cancelem completamente todas as medidas tarifárias unilaterais” se quiserem retomar as conversas comerciais, em uma das declarações mais enfáticas até agora sobre o impasse entre as duas maiores economias do mundo.

Na quinta-feira, Pequim também afirmou que “atualmente não há negociações econômicas e comerciais entre China e Estados Unidos”, apesar de sinais recentes de uma possível flexibilização por parte de Washington. O secretário do Tesouro dos EUA, Scott Bessent, declarou nos últimos dias que a guerra comercial “não é sustentável” e que “seria necessário um recuo de ambos os lados”.

“As medidas tarifárias unilaterais foram iniciadas pelos EUA”, afirmou He Yadong, porta-voz do Ministério do Comércio da China. “Se os EUA realmente quiserem resolver o problema, devem cancelar completamente todas as tarifas unilaterais contra a China e encontrar uma forma de resolver as diferenças por meio de um diálogo em pé de igualdade.”

Pequim tem mantido a posição de que os EUA devem dar o primeiro passo para reduzir as tensões, que ameaçam provocar um rompimento profundo entre as economias dos dois países.

A China também reiterou que sua “porta está aberta” para negociações, mas a exigência de que os EUA retirem unilateralmente suas tarifas como pré-condição representa um endurecimento significativo de sua posição.

Em uma escalada de ações, o presidente dos EUA, Donald Trump, impôs neste mês tarifas adicionais sobre produtos chineses de 145%, e Pequim respondeu com tarifas de 125% — medidas que Bessent descreveu na terça-feira como um “embargo”.

Trump começou a amenizar algumas dessas medidas, concedendo isenções para smartphones, semicondutores e eletrônicos, e afirmou que EUA e China estavam em contato direto “todos os dias”.

Na terça-feira, o presidente disse que as tarifas seriam reduzidas “substancialmente” e que um acordo seria fechado “muito rapidamente”.

Mas o Ministério das Relações Exteriores da China afirmou na quinta-feira que quaisquer reportagens sobre um acordo iminente entre os dois países eram “notícias falsas”.

“Não houve consultas ou negociações entre China e Estados Unidos sobre tarifas, muito menos a conclusão de um acordo”, disse o porta-voz do ministério, Guo Jiakun.

O porta-voz do Ministério do Comércio, He, afirmou que “quem amarrou o sino no tigre deve ser o responsável por desamarrá-lo”, uma referência a um provérbio chinês que significa que a pessoa que cria um problema deve ser a responsável por resolvê-lo.

Ele disse que Pequim mantém “uma atitude aberta em relação a consultas e diálogo”, mas que “pressão, ameaças e extorsões não são formas adequadas de lidar com a China”.

“A guerra comercial foi iniciada unilateralmente pelos EUA… se quiserem negociar, devem demonstrar sinceridade e retornar ao caminho correto do diálogo e da consulta em pé de igualdade”, disse He.

Bessent declarou na terça-feira que qualquer recuo na guerra comercial teria de ser mútuo, negando reportagens de que Trump poderia reduzir tarifas sobre produtos chineses de forma unilateral.

Analistas chineses argumentam que a imposição de tarifas elevadas pelos EUA dificulta a busca de uma solução para a crise por parte de Pequim.

Segundo eles, o presidente chinês Xi Jinping teria dificuldade em se envolver pessoalmente com Trump sobre a guerra comercial, a menos que isso fosse precedido por longas negociações para acertar um acordo.

 

Fonte: Brasil 247/Financial Times

 

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