Lula
e a política do não enfrentamento
O
conceito de correlação de forças desenvolvido por Antonio Gramsci em seus Cadernos
do Cárcere (1926-1937) refere-se ao equilíbrio entre as pressões
sociais e políticas em uma determinada sociedade, que determina as
possibilidades de avanço de determinados projetos políticos ou resistência a
eles. Segundo Gramsci, essa correlação não é estática, sendo resultado de um
constante jogo de alianças, negociações e enfrentamentos, no qual a hegemonia
de uma classe ou grupo é constantemente desafiada e contestada pelas forças
opostas. No contexto político atual, isso se traduz na capacidade de um governo
implementar mudanças em face de uma oposição interna e externa, sendo crucial
para o sucesso de políticas transformadoras a habilidade de fortalecer a
posição política e social do governo através de alianças e consensos.
No
Brasil, o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva enfrenta uma correlação
de forças complexa, na qual são feitas constantes concessões ao Congresso
conservador, especialmente ao Centrão, além de lidar com uma oposição
exacerbada da extrema direita, o que limita a capacidade de implementar
mudanças estruturais. A estratégia de Lula tem sido buscar equilíbrio e
estabilidade, apostando na moderação e no diálogo para garantir a
governabilidade, o que implica uma forma de pragmatismo na política interna. Ou
seja, o não enfrentamento devido à falta de correlação de forças. Mas isso deve
ser assim?
O
argumento de que “não há correlação de forças” suficiente para um enfrentamento
mais incisivo pode ser visto como uma análise realista da conjuntura, mas
também pode indicar uma falta de disposição para mobilizar bases populares e
tensionar o sistema político em favor de mudanças estruturais. Ao priorizar uma
hipotética estabilidade e o diálogo, o governo corre o risco de ceder demais à
oposição e aos setores de influência, esvaziando seu próprio programa
progressista.
Historicamente,
momentos de transformação significativa no Brasil – como as reformas
trabalhistas da Era Vargas ou as conquistas sociais dos anos 2000 – não
aconteceram apenas por meio da negociação com o Congresso, mas também pela
pressão popular e pelo uso estratégico da força política do Executivo. Se Lula
evita o confronto por acreditar que não há margem para enfrentamento, essa
própria crença pode reforçar a inércia e impedir mudanças mais profundas.
A
questão central, então, é: será que o governo realmente não tem alternativa ao
pragmatismo imediatista, ou está evitando testar seus próprios limites
políticos? É possível ampliar essa correlação de forças com mobilização popular
e articulação mais firme, ou a escolha pelo equilíbrio e pelo diálogo é, na
verdade, uma opção consciente que relega mudanças estruturais para um futuro
incerto?
Lula,
em seus primeiros mandatos (2003-2011), adotou uma estratégia semelhante, de
moderação e conciliação. Naquele contexto, contudo, a direita tradicional ainda
não estava tão radicalizada e o bolsonarismo não existia como fenômeno
político. Hoje, a dinâmica é diferente, e um governo que busca a todo custo
evitar o conflito pode acabar refém das pressões conservadoras.
Por
outro lado, líderes latino-americanos como Gustavo Petro, na Colômbia, e
Claudia Sheinbaum, no México, adotam posturas mais assertivas e confrontam
diretamente a oposição, muitas vezes com posições mais rígidas frente às
potências externas, como os Estados Unidos. Essas atitudes revelam que, em
contextos distintos, as correlações de forças podem permitir estratégias mais
firmes de enfrentamento, sem necessariamente comprometer a estabilidade
interna.
·
Brasil: um governo refém da correlação de forças?
O
terceiro mandato de Lula é marcado por uma correlação de forças particularmente
hostil, refletindo tanto o peso que diversas frações da direita apresentam
quanto os desafios econômicos e diplomáticos que o governo enfrenta. A vitória
eleitoral apertada nas eleições de 2022, na qual Jair Bolsonaro foi derrotado
por uma margem de apenas 1,8 ponto percentual, evidenciou a profunda divisão da
sociedade brasileira. A campanha foi marcada por episódios de violência
política, disseminação de desinformação e uma intensa mobilização da máquina
bolsonarista, que segue ativa mesmo após a derrota nas urnas. Esse cenário
consolidou uma oposição aguerrida que, mesmo sem o comando do Executivo, mantém
forte influência sobre setores estratégicos do Estado, como o Congresso
Nacional e as Forças Armadas.
No
Congresso, a governabilidade de Lula é desafiada pela força do Centrão e de
setores da extrema direita, que impõem uma agenda conservadora e dificultam a
aprovação de pautas progressistas. Porém, todas as matérias econômicas
neoliberais enviadas pelo Executivo foram aprovadas com facilidade,
evidenciando a assimetria na correlação de forças. A necessidade de constantes
negociações resultou na distribuição de ministérios e cargos a partidos
aliados, muitas vezes em detrimento da unidade programática do governo. O “toma
lá, dá cá” da política tradicional brasileira tornou-se ainda mais evidente na
gestão das emendas parlamentares, que agora representam um instrumento crucial
para garantir apoio legislativo. Isso limita o avanço de reformas estruturais e
obriga o governo a calibrar suas propostas para evitar derrotas políticas, como
ocorreu na reformulação do arcabouço fiscal.
No
campo econômico, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, busca equilibrar a
responsabilidade fiscal com as demandas sociais, em um contexto de alta
volatilidade nos mercados e pressões de diferentes grupos de interesse. A meta
de déficit zero estabelecida pelo governo gerou atritos com alas mais
desenvolvimentistas da administração, que defendem maior investimento público
como motor do crescimento. Em 2024, o PIB brasileiro cresceu 3,4%, um desempenho acima
das expectativas iniciais, enquanto a taxa de juros permaneceu elevada,
inibindo o consumo e o investimento produtivo. Como enfatizava a
economista Maria da Conceição Tavares, “ninguém come PIB,
come alimentos”, ressaltando a importância de políticas que atendam às
necessidades básicas da população, especialmente diante da alta inflação dos
alimentos, que continua pressionando os mais pobres. O avanço de pautas como a
reforma tributária e a ampliação de programas sociais, como o Bolsa Família,
enfrenta resistência tanto de setores empresariais quanto de políticos ligados
ao agronegócio e ao rentismo financeiro.
O
governo Lula também enfrenta desafios significativos em sua estratégia de
comunicação, impactando diretamente sua relação com a população e sua imagem
pública. É evidente que há uma falta de identidade na comunicação
governamental, o que contribui para a queda na aprovação do presidente. O
ministro da Casa Civil, Rui Costa, reconheceu que o governo se comunica
mal,
mas expressou confiança de que o ministro da Secretaria de Comunicação Social
(Secom), Sidônio Palmeira, conseguirá reverter esse cenário até meados do ano.
Paralelamente,
a extrema direita tem utilizado as redes sociais como ferramentas eficazes para
disseminar suas ideias, frequentemente se beneficiando de algoritmos que
priorizam conteúdos com alto potencial de engajamento, como discursos
polarizadores e sensacionalistas. Um exemplo notório desse desafio
comunicacional foi a polêmica em torno da suposta taxação de transações via
Pix. Informações falsas circularam nas redes sociais, sugerindo que o governo
implementaria impostos sobre o uso do Pix, gerando confusão e preocupação entre
os usuários. Estudos indicam que essas
plataformas se tornaram espaços de criação e fortalecimento de “bolhas
informativas”, onde usuários interagem predominantemente com conteúdos que
reforçam suas convicções, limitando o debate plural e favorecendo narrativas
alinhadas à extrema direita.
No
cenário internacional, a relação do governo brasileiro com as big
techs também tem sido conturbada. Em setembro de 2024, o Supremo
Tribunal Federal (STF) determinou a suspensão da rede social X no país devido
ao descumprimento de ordens judiciais relacionadas à disseminação de notícias
falsas e ataques à democracia. O proprietário da plataforma, Elon Musk, retirou
seus representantes legais no Brasil, intensificando a polarização política no
país.
Esses
fatores combinados – a crise na comunicação governamental, o fortalecimento da
extrema direita nas redes sociais e as tensões com as big techs –
criam um ambiente desafiador para o governo Lula. A administração precisa
urgentemente reformular sua estratégia de comunicação para reconectar-se com a
população e enfrentar as influências externas que moldam o debate público no
país. Mas não basta. Problemas na comunicação quase sempre revelam
insuficiências mais profundas no terreno político. Só se comunica bem se há um
conteúdo de forte apelo público a se propagar.
Na
política externa, Lula tem tentado reposicionar o Brasil como um ator relevante
no cenário internacional, apostando na reaproximação com o BRICS e na
construção de uma diplomacia ativa no Sul Global. Seus discursos em fóruns
internacionais enfatizam a necessidade de uma governança global mais equitativa
rumo ao fortalecimento de uma multilateralidade global. No entanto, a prática
diplomática do governo revela contradições.
O
Brasil condenou a violência em Gaza e tem uma posição histórica em favor da
criação de um Estado palestino, mas hesita em adotar medidas concretas contra
Israel, como sanções ou o rompimento de acordos comerciais. Da mesma forma,
Lula criticou as sanções econômicas impostas à Venezuela e reafirmou o apoio ao
diálogo político no país vizinho, mas evitou um confronto mais direto com os
Estados Unidos e a União Europeia sobre o tema. Contudo, também apresentou
contradições em relação ao pleito presidencial venezuelano realizado ano
passado, chegando a “exigir” as atas das eleições para garantir maior
transparência, ato que fere o princípio da não-intervenção, ao mesmo tempo que
vetou a entrada da Venezuela no BRICS Plus. A atitude gerou dúvidas sobre a
coerência de sua postura. Essa estratégia cautelosa levanta questionamentos
sobre até que ponto o governo conseguirá imprimir uma marca transformadora na
política externa, especialmente diante das pressões do agronegócio e de setores
empresariais que dependem do comércio com países do Norte Global.
Com
isso, o terceiro mandato de Lula se desenha como um constante jogo de
equilíbrios, no qual cada decisão exige cálculos cuidadosos para evitar
desgastes excessivos. A correlação de forças adversa impõe limites concretos à
capacidade do governo de implementar sua agenda, tanto no plano interno quanto
no cenário internacional, devido à política de não enfrentamento. No campo
econômico, a política monetária segue como fator de tensão. Embora Roberto
Campos Neto tenha deixado a presidência do Banco Central, sua gestão legou
marcas na condução da política monetária, com a manutenção de juros elevados
que restringiram o crescimento e aumentaram o custo da dívida pública. Seu
sucessor, Gabriel Galípolo, enfrenta o desafio de equilibrar os interesses do
governo e do mercado financeiro, que continua pressionando por um ajuste fiscal
rigoroso.
No
cenário internacional, a dependência econômica do Brasil em relação a mercados
como China, Estados Unidos e União Europeia limita a margem de manobra da
política externa, tornando mais desafiador o esforço de projetar o país como
líder do Sul Global. A dúvida que permanece é se essa abordagem pragmática,
diante dessas forças em disputa, será suficiente para consolidar um legado de
mudanças substanciais ou se resultará em um governo marcado por avanços
pontuais, mas sem grandes transformações estruturais.
·
O enfrentamento de Petro e Sheinbaum
Enquanto
Lula busca equilíbrio e evita confrontos, alguns de seus colegas
latino-americanos adotam posturas mais firmes contra as pressões externas.
Gustavo Petro, presidente da Colômbia, desafiou abertamente os Estados Unidos
ao revogar a permissão para que duas aeronaves militares americanas,
transportando colombianos deportados, pousassem em território colombiano. Essa
decisão gerou uma crise diplomática significativa, levando o presidente dos
EUA, Donald Trump, a anunciar tarifas de 25% sobre produtos colombianos e a
suspender a emissão de vistos para cidadãos colombianos. No entanto, após
uma carta aberta de Petro no X e intensas negociações, o
presidente colombiano recuou, permitindo a entrada dos voos e disponibilizando
o avião presidencial para repatriar os cidadãos deportados, o que suscitou
críticas internas sobre sua gestão da crise. Trump, por sua vez, também recuou,
suspendendo as tarifas e restabelecendo as condições anteriores.
No
cenário interno, Petro obteve uma vitória significativa ao conseguir a
aprovação, pela Câmara dos Representantes, de sua reforma do sistema de saúde, algo nos moldes do
Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. A reforma, que visa transformar o
sistema médico colombiano eliminando intermediários financeiros e garantindo
acesso equitativo à saúde, foi aprovada por 90 votos favoráveis e 28
contrários. Este avanço legislativo é marcante para o governo Petro, que
enfrenta desafios devido à minoria no Congresso. A proposta agora segue para o
Senado, onde passará por dois turnos de votação.
Já
Claudia Sheinbaum, presidente do México e sucessora de Andrés Manuel López
Obrador, se contrapôs diretamente às ameaças de Donald Trump de impor tarifas
sobre exportações mexicanas. Em resposta, Sheinbaum adotou uma postura firme,
convocando uma mobilização nacional contra a interferência dos EUA e declarando
que “uma tarifa será seguida por outra em
resposta”,
rejeitando as ameaças do republicano.
Sua
resposta enérgica conquistou apoio popular e a fortaleceu internamente como uma
líder independente. Além disso, Sheinbaum manteve uma abordagem diplomática,
enfatizando a importância do diálogo e do respeito mútuo entre as nações, o que
resultou na suspensão temporária das tarifas e em uma manifestação de unidade
nacional no Zócalo, a praça central da Cidade do México, com a participação
de dezenas de milhares de pessoas.
Esses
exemplos ilustram como líderes latino-americanos estão adotando diferentes
estratégias para lidar com as pressões externas, variando entre confrontos
diretos e negociações diplomáticas, conforme buscam preservar a soberania
nacional e atender às expectativas de seus respectivos eleitorados.
·
Entre a moderação e o confronto
A
correlação de forças é um fator determinante na definição das ações e
estratégias de qualquer governo, especialmente para aqueles de viés
progressista. No Brasil, o governo de Lula tem optado por uma abordagem
moderada, priorizando o diálogo e o não enfrentamento como formas de garantir a
governabilidade. Essa estratégia visa evitar confrontos diretos com setores
conservadores, como o Centrão e os aliados da extrema direita, bem como com
potências internacionais que, muitas vezes, impõem desafios ao Brasil. Ao
adotar essa postura, Lula tenta equilibrar as pressões internas com a
necessidade de manter a estabilidade política e econômica do país. No entanto,
essa abordagem, embora eficaz em termos de evitar rupturas drásticas, também
implica a renúncia a enfrentamentos mais diretos que poderiam resultar em
mudanças mais rápidas ou profundas.
Em
contraste, como vimos, líderes como Petro e Sheinbaum têm mostrado que é
possível adotar uma postura mais firme e assertiva, sem comprometer a
estabilidade interna. Seus exemplos indicam que, em alguns contextos, uma
estratégia de confronto controlado pode não apenas manter a estabilidade, mas
também fortalecer a liderança interna e a posição internacional de um governo
progressista.
O
desafio para Lula, portanto, reside em encontrar um equilíbrio delicado entre
pragmatismo e assertividade. Ao evitar confrontos diretos, o mandatário
assegura a governabilidade e mantém a coalizão que sustenta seu governo, mas
corre o risco de que essa lógica conciliatória limite sua margem de ação,
comprometendo até mesmo medidas emergenciais para reverter o quadro econômico
atual. Mais do que a construção de um projeto estratégico de longo prazo, o que
está em xeque é a capacidade de manter a iniciativa política até as próximas
eleições.
Nesse
cenário, as mobilizações do último domingo (30), convocadas por frentes como a
Povo sem Medo e a Brasil Popular, além de centrais sindicais como a CUT e a
UGT, demonstram a pressão crescente sobre o governo para não ceder diante da
ofensiva bolsonarista em torno da anistia aos envolvidos no 8 de janeiro. Com
sua maior concentração em São Paulo, onde os manifestantes passaram pelo antigo
DOI-CODI para reforçar a memória da repressão ditatorial, os
atos simbolizaram não apenas a defesa da democracia, mas também um
alerta contra a reincidência de forças golpistas.
Enquanto
isso, o bolsonarismo segue mobilizado, testando os limites da
institucionalidade e buscando consolidar sua narrativa sobre o 8 de janeiro. A
crescente adesão de setores do Centrão à discussão sobre anistia mostra que o
curto prazo não apenas define a correlação de forças, mas pode ter impactos
duradouros sobre a estabilidade do governo e a solidez das instituições
democráticas. O jogo está sendo jogado — e a disputa por sua condução está nas
ruas tanto quanto nos corredores do Congresso.
Fonte:
Por Bruno Fabrici Alcebino de Souza, em Outras Palavras

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