quinta-feira, 3 de abril de 2025

Fotografias históricas encontradas no prédio do IML mostram a face racista da Ditadura Militar

Se você procurar por fotografias dos presos na Ditadura Militar no Brasil, provavelmente cairá nas famosas fotos dos detidos políticos segurando as placas do antigo Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara, o DOPS – imortalizadas em uma cena de ‘Ainda Estou Aqui’. Há, no entanto, milhares de vítimas das arbitrariedades do regime cujos rostos não fazem parte da memória daquele período. Até agora. Esquecidos dentro do prédio abandonado em que funcionou o Instituto Médico Legal, dezenas de fichários fotográficos guardam, em estado surpreendentemente bom de conservação, fotos de pessoas que estiveram detidas nas delegacias policiais entre os anos 1960 e 1980.  São fichas que carregam histórias como as de Paulo Sérgio, morador de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, preso na 54ª Delegacia de Polícia em 1982. Ou de Josias Vicente, morador da Favela da Rocinha, detido na 15ª DP em 1979.  Ou, ainda, de Jotair, morador da Vila Kennedy, preso em data não identificada. Três homens negros levados à delegacia para responderem pela Contravenção Penal de vadiagem. 

Os arquivos estão na antiga sede do Instituto Médico Legal do Rio de Janeiro, edifício que está abandonado desde 2009, quando deixou de ser utilizado pela Polícia Civil. Ele fica a menos de 200 metros de distância do antigo prédio do DOPS, onde estão as fichas secretas de policiais que o Intercept Brasil revelou na primeira reportagem da série As fichas esquecidas da Ditadura Militar. Apesar de estarem desorganizadas e, em alguns casos, jogadas, as fichas fotográficas estão em um estado surpreendentemente bom de conservação. Eu entrei no prédio em 8 de agosto do ano passado, junto com representantes dos movimentos sociais e técnicos de arquivos públicos. A visita fez parte do grupo de trabalho criado pelo Ministério Público para investigar o abandono dos documentos. No último dos cinco andares do edifício, após passar por cima de entulhos que bloqueiam parcialmente um portal e adentrar um longo corredor, chegamos às salas quase totalmente tomadas por fichários do Serviço Fotográfico da Polícia Civil. As gavetas – muitas empilhadas direto no chão – guardam as fichas que registram a passagem de milhares de pessoas detidas pelas delegacias do estado. Na frente delas, a fotografia do preso. No verso, informações básicas, como nome, filiação, endereço e crime pelo qual respondia.

O tempo da visita foi curto, pois o objetivo era ter uma visão geral do que havia no interior do edifício. Mas fiz um rápido teste. Selecionei algumas dezenas de fichas referentes a pessoas que respondiam pela contravenção penal de vadiagem (artigo 59º da Lei de Contravenções Penais).  Ao virar as fichas e olhar as fotos, não foi nenhuma surpresa identificar quem eram os presos: em sua grande maioria, homens negros.  Em entrevista concedida ao Intercept, o delegado Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil, instituição na qual ingressou em 1973, explica como funcionava essa abordagem.

Segundo Luz, os policiais faziam rondas nas regiões pelas quais eram responsáveis, e, se encontrassem alguém circulando, perguntavam o que a pessoa estava fazendo no local. Caso a pessoa afirmasse ser trabalhadora, a polícia exigia ver sua mão. “A mão tinha que ter calo. Na hora que examinava, não podia ter mão lisa”, diz ele. 

Tampouco era permitido andar sem documentos de identificação, em especial carteira de trabalho. Caso contrário, a pessoa era levada para a Delegacia para averiguação. “Três averiguações, tomava uma vadiagem”, conta o ex-delegado. “Aí você já começa a ver qual é a função desde cedo da segurança da polícia. É controle social”, sintetiza.

É difícil quantificar quantas pessoas foram alvo dessas arbitrariedades. Mas, para se ter uma ideia do volume, em dezembro de 1975, o jornal O Globo noticiava que, naquele ano, em apenas seis meses, haviam sido registradas cerca de 1.300 prisões por vadiagem no estado do Rio de Janeiro. É verdade que o teste que fiz não possui valor científico, pois selecionei poucos exemplos de um universo de milhares de fichas. Mas é o suficiente para demonstrar como essa documentação pode abrir caminho para novas pesquisas históricas.

·        Vadiagem e controle social

O historiador Paulo Cruz Terra, professor da Universidade Federal Fluminense, a UFF, explica que a perseguição à chamada vadiagem existe desde o período colonial. Com o avanço da luta abolicionista, porém, o sentido racial dessa repressão se intensificou. “Em 1888, com a ideia da abolição definitiva da escravidão, ganhou força a discussão de que deveria se encontrar novos mecanismos de reprimir a vadiagem”.

Por trás desse debate, explica Terra, estava a “ideia de que haveria uma ociosidade natural na população negra e que, por isso, ela deveria ser obrigada a trabalhar”.

O pesquisador aponta que estatísticas do início do século demonstram que a maioria dos presos por vadiagem eram pessoas negras. Rafael Maul, historiador que integra o Grupo Tortura Nunca Mais e tem participado do trabalho de identificação do material, afirmacomo o material encontrado no prédio reforça a dimensão racista das prisões por vadiagem. “Ao olhar essa documentação, a gente tem ali na nossa cara a forma como o estado resolve a questão racial no pós-abolição”, dz ele. “É o controle de trabalhadores e trabalhadoras negras, a disciplinarização, o cerceamento dos indivíduos, de seu movimento, suas formas de sociabilidade e, obviamente, de sua mobilidade social e econômica”, analisa Maul.

As prisões por vadiagem às vezes também envolviam torturas. Em 19 de maio de 1973, o Jornal do Brasil noticiou: “Baleiro de 15 anos preso sem motivo como vadio é solto depois de violentado”. Segundo a reportagem, o juiz que decidiu pela soltura havia ficado “estarrecido com seu estado físico e com suas roupas manchadas de sangue”.  Em 1978, o mesmo jornal trazia a história de um homem que foi preso por vadiagem e cujo processo judicial foi extraviado. Ele ficou, então, seis anos preso, até que os autos foram localizados e ele foi absolvido. Poucos meses depois, o jornal relatava o caso de um feirante de 22 anos que, acusado de vadiagem, “ficou paralítico em consequência de tortura sofrida na 38ª Delegacia”.  Embora siga em vigor, o dispositivo da vadiagem foi aos poucos deixando de ser utilizado pelas polícias. Isso se deu especialmente em razão das críticas sobre sua natureza arbitrária e violenta que ganharam força no contexto da redemocratização. 

Outros documentos que estão no prédio podem revelar, ainda, novos aspectos da atuação da estrutura repressiva naquele período.  Para além dos fichários fotográficos com as fotografias de pessoas detidas nas delegacias comuns, há armários que guardam laudos produzidos tanto pelo próprio IML, quanto pelo Instituto de Criminalística Carlos Éboli, órgão vinculado à Polícia Civil que faz as perícias nos locais dos crimes.  Esses dois conjuntos documentais – do IML e do ICCE – já foram usados para desmontar versões oficiais mentirosas de casos que envolviam opositores políticos do regime. 

Em 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais teve o acesso franqueado a essa documentação pelo então secretário estadual de Justiça, Nilo Batista. Já no primeiro dia de trabalho, Romildo Maranhão do Valle, irmão do desaparecido político Ramires Maranhão do Valle, identificou registros de cadáveres sem identificação dando entrada no IML, enviados pelo DOPS. Valle seguiu a pista. “Pouco a pouco foi sendo levantado um quadro que identificou os cemitérios municipais, à época sob a administração da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, como o destino dos corpos ocultados pelos órgãos de repressão, tanto sob seus próprios nomes, quanto com nomes falsos ou com desconhecida identidade”, conta ele em depoimento publicado pela revista Transversos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2018.  Dali, o Grupo Tortura Nunca Mais descobriu a existência de uma vala comum no cemitério Ricardo de Albuquerque.

Mais de duas décadas depois, a Comissão Nacional da Verdade voltou a acessar os arquivos. Também partiu de laudos de necropsia do IML e de laudos de perícia de local do ICCE para atestar a responsabilidade do Estado sobre outros casos de graves violações aos direitos humanos. Tanto a iniciativa pioneira do Tortura Nunca Mais quanto o trabalho da Comissão da Verdade, contudo, foram feitos sob severas limitações, especialmente porque o arquivo segue sob guarda e responsabilidade da própria polícia.

A transferência definitiva da documentação para o Arquivo Público do Estado abrirá caminho para o aprofundamento das pesquisas. Com isso, será possível avançar para além do esclarecimento das circunstâncias de casos emblemáticos de mortos e desaparecidos políticos do regime. A mesma lógica investigativa já usada nesses casos poderia ser aplicada para outros crimes. A partir dos laudos de encontro de cadáver, por exemplo, é possível compreender melhor a dinâmica de atuação dos esquadrões da morte e grupos de extermínio naquele período. 

Rafael Maul enfatiza como esses novos documentos podem aprofundar e complexificar o modo como falamos sobre a violência política da ditadura militar. “A documentação vai mostrar pra gente que essa perseguição também é política, mesmo que não esteja enquadrada pelo estado desta forma”, aponta. 

Gabrielle Abreu, historiadora e gestora de memória do Instituto Marielle Franco, destaca a necessidade de se repensar termos até pouco tempo atrás cristalizados, como a noção de quem foram as vítimas da ditadura militar.  “Sobretudo os arquivos policiais podem nos ajudar a elaborar uma compreensão mais detalhada sobre essas violências e como brasileiros e brasileiras foram vitimados”, afirma. Abreu destaca a importância de se incluir o recorte de raça nesse esforço. “Importa uma reflexão sobre o passado ditatorial que abranja as relações raciais para que tenhamos uma visão mais completa sobre o que, de fato, caracterizou as práticas do regime”. 

¨      Precisamos abrir os arquivos da ditadura e contar os crimes cometidos pelos militares

Intercept Brasil publicou uma matéria sobre o Centro de Referência Memórias Reveladas, política pública criada em 2009, no Arquivo Nacional, para tratar dos arquivos da ditadura. A reportagem revelava o gravíssimo caso da servidora Inez Stampa, ex-coordenadora do órgão. No contexto do desmonte do Memórias Reveladas no governo de Jair Bolsonaro, Inez adoeceu e foi levada a se aposentar. 

O texto apontava, ainda, que o desmonte dessa política teria se aprofundado no governo Lula. Diante deste ponto, historiadores elaboraram uma nota, assinada por quase 250 pessoas, que reforça a gravidade do caso revelado e se solidariza com Inez, mas apresenta uma visão diferente acerca do estado atual do Memórias Reveladas. Para os signatários – e eu me incluo entre eles – está em curso um processo de reconstrução do órgão, que deve ser reconhecido e apoiado. 

É fato que a conjuntura é complexa e o cenário para a agenda da memória sobre a ditadura é muito desfavorável. Exemplar disso foi a péssima decisão de Lula de não marcar o sexagenário do golpe de 1964, a qual foi muito criticada publicamente por vários dos signatários da nota.  É exatamente por isso que acreditamos fazer pouco sentido minar e colocar em xeque, de antemão, o esforço de um setor do governo de avançar neste debate.  Chamo a atenção particularmente para o fato de que a diretora-geral do Arquivo Nacional, a professora Ana Flávia Magalhães, nomeou, para dirigir essa reconstrução do Memórias Reveladas, duas mulheres cujas trajetórias são de inequívoco compromisso político e acadêmico com a luta por memória, verdade e justiça. São elas as historiadoras Gabrielle Abreu, que chefia a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo, à qual o Memórias está vinculado, e Luciana Lombardo, que será a nova coordenadora do Centro de Referência. 

Este texto, porém, não tem o objetivo de alimentar ou aprofundar essa disputa entre visões divergentes acerca dos rumos do Arquivo Nacional em geral e do Memórias Reveladas em particular. Ele parte da premissa de que a reconstrução está em curso. Meu objetivo é propor um debate que me parece muito mais relevante neste momento: o que deve fazer uma política pública sobre os arquivos da ditadura hoje? Ou seja, dado que o Memórias Reveladas será recolocado de pé, quais são seus principais desafios e missões?

<><> Uma história pela metade

Entre importantes passos, alguns retrocessos e muitos limites, a questão dos arquivos da ditadura foi uma das que mais avançou dentro das medidas adotadas pelo estado brasileiro para lidar com o seu passado ditatorial. Hoje, o Arquivo Nacional, por meio do Memórias Reveladas, custodia e disponibiliza online um impressionante volume de documentos produzidos por agências repressivas do regime. São mais de 10 milhões de páginas.  Os avanços que existiram, porém, sempre estiveram à sombra de uma grande e incontornável questão. As Forças Armadas jamais abriram os seus arquivos. Especialmente os dos centros de informações do Exército, o Cie; da Marinha, o Cenimar; e da Aeronáutica, o Cisa. Mesmo diante desse obstáculo, esse enorme acervo hoje sob responsabilidade do Memórias Reveladas tem usos fundamentais, nos âmbitos jurídicos, acadêmicos e políticos.

Os documentos servem como material probatório tanto em processos judiciais quanto nas comissões de reparação e da verdade; como base para uma historiografia diversa e rica sobre o período; e para a construção de exposições, filmes, documentários e reportagens acerca da ditadura militar.  Não à toa, portanto, o Arquivo Nacional e o Memórias Reveladas foram alvo dos ataques bolsonaristas. No rastro de destruição das políticas públicas, o Centro de Referência foi completamente esvaziado, como mostrou o Intercept. Mas agora, neste cenário de reconstrução, o que pode e o que deve fazer uma política pública sobre os arquivos da ditadura? 

A primeira e mais evidente questão é que segue pendente a necessidade de abrir, na totalidade, os arquivos das Forças Armadas. O estado não pode seguir aceitando, sem questionamentos ou investigações mais profundas, as justificativas inverossímeis fornecidas historicamente pelos militares, segundo as quais não haveria mais arquivos a serem abertos. Ocorre que essa decisão não cabe ao restrito escopo do Memórias Reveladas ou mesmo do Arquivo Nacional. Ela demandaria a vontade e a iniciativa política de outros atores do governo, os quais não têm demonstrado interesse em avançar nesta agenda.

<><> O que fazer com os arquivos da ditadura?

Nesse sentido, penso que, sem abrir mão de fortalecer as demandas históricas não atendidas dos movimentos sociais, caberia ao Memórias Reveladas conduzir um esforço de repensar e ampliar os sentidos dessa agenda de lutas pela abertura dos arquivos da ditadura. Penso em pelo menos dois eixos que poderiam guiar uma atuação do Memórias Reveladas em novos termos, que inclusive fariam com que a importância dessa política pública para a democracia brasileira se tornasse ainda maior. 

Em primeiro lugar, trata-se de ampliar o escopo de compreensão sobre o que e quais são os documentos da ditadura. Em segundo lugar está a necessidade de enfatizar fortemente o esforço de difusão, ou seja, dos usos públicos desses arquivos, com vistas a enfrentar o negacionismo acerca daquele período. Sobre o primeiro ponto, a grande transformação nos debates acadêmicos e políticos sobre a ditadura militar na última década diz respeito à incorporação de novos sujeitos e personagens nas histórias e memórias daquele período.  Investigações e pesquisas acerca da violência perpetrada pelo regime autoritário contra os povos indígenas, as mulheres, os trabalhadores do campo e da cidade, a população LGBTQIA+, a população negra e os moradores de favelas e periferias vêm se multiplicando.

Esses novos olhares têm transformado profundamente a própria concepção acerca do que foi a ditadura militar no Brasil, quais violências caracterizaram aquele regime e quem foram as vítimas das violações de direitos humanos naquele período. 

Como exemplo mais notável, podemos citar a mudança regimental da Comissão de Anistia que abriu espaço para a apresentação de requerimentos de anistia coletiva.

Essa novidade resultou, em abril de 2024, em um primeiro julgamento em que o estado brasileiro reconheceu e pediu desculpas pelas graves violações aos direitos humanos perpetradas coletivamente contra os povos indígenas Krenak e Guarani-Kaiowá. É nesse sentido que defendo que precisamos também ampliar nossa concepção acerca do que são os arquivos da repressão no Brasil. 

Em geral, entendemos como documentos da ditadura aqueles arquivos produzidos pelos órgãos oficialmente estabelecidos para conduzir a repressão política stricto sensu, tais como aqueles oficialmente constantes do Sistema Nacional de Informações, o Sisni. Entre ele estão precisamente os Dops, o SNI, os centros de informações das Forças Armadas.  Ocorre que essas pesquisas recentes vêm demonstrando que a dinâmica das graves violações aos direitos humanos desses distintos grupos sociais variou enormemente, não sendo possível restringir a responsabilidade pela violência a essas agências estatais específicas. Para exemplificar, podemos pensar que se a violência contra a população LGBTQIA+ nas ruas das cidades e a violência contra a população negra nas favelas e periferias passava necessariamente pelas polícias militar e civil, então a íntegra dos acervos dessas instituições – e não apenas seu braço de polícia política – devem ser vistos como arquivos da ditadura. 

Um esforço coordenado de recuperação, recolhimento, tratamento e disponibilização dos arquivos das polícias relativos aos anos 1960 a 1980, portanto, poderia ampliar sobremaneira nosso conhecimento sobre as violências do regime autoritário. 

Para além das polícias, ao considerar a natureza de classe do regime, devemos pensar na necessidade de acessar os arquivos dos órgãos estatais que conduziram as políticas públicas excludentes e violentas no período.  A título de exemplo, hoje sabemos que a ditadura realizou o mais amplo programa de remoções forçadas de favelas da história, promovendo o deslocamento forçado de mais 140 mil moradores dessas áreas.

Os acervos dos órgãos públicos estruturados para conduzir essas remoções – nomeadamente o Banco Nacional de Habitação, o BNH, e a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, a Chisam, vinculada ao Ministério do Interior – certamente nos permitiriam compreender de forma muito mais aprofundada e detalhada a extensão desse processo que representou, por si só, uma profunda violência contra os moradores de favelas.  Indo ainda mais além, é preciso considerar que parte da violência do regime foi operada a partir de suas margens, e não de órgãos oficiais. Entidades paraestatais, tais como esquadrões da morte, grupos de extermínio e milícias privadas operaram sob conivência do estado e com a participação de agentes estatais para promover gravíssimas violações aos direitos humanos. É evidente que tais organizações não atuavam sob a mesma lógica das agências oficiais, e portanto não produziam documentos ou registros de qualquer natureza. Não há, nesse sentido, por óbvio, algo como um arquivo do esquadrão da morte. No entanto, se considerarmos que elas foram fundamentais para o aparato de violência do regime, torna-se necessário, então, buscar registros que possam nos auxiliar na compreensão de sua atuação.

Um caminho profícuo para atestar a dinâmica de atuação dos grupos de extermínio, por exemplo, seriam os arquivos dos Institutos Médicos Legais responsáveis pela realização de perícias nos locais de localização de cadáveres.  Outro tipo de grave violação aos direitos humanos ocorrida na ditadura foi aquela decorrente da cumplicidade entre agentes econômicos e o regime. Investigações recentes têm comprovado, a partir do mergulho nos acervos já existentes, que os vasos comunicantes entre os setores de segurança das empresas privadas com os órgãos estatais eram muitos.  Isso se desdobrava, por exemplo, na produção de “listas sujas” por parte das empresas, as quais eram enviadas para agências estatais de repressão.

Em alguns casos, mais do que vasos comunicantes, o que havia era uma verdadeira sobreposição de funções – como no caso da empresa Folha de S. Paulo, em que delegados do Dops ocupavam cargos de liderança na empresa, especialmente no seu setor de segurança.  Ora, isso significa que, se não é possível compreender a violência contra os trabalhadores sem que se leve em conta a cumplicidade de agentes econômicos com o regime, então os acervos das empresas apoiadoras da ditadura devem ser entendidos como documentos da repressão.  Ressalta-se, nesse caso, a existência de empresas públicas à época dos fatos que foram posteriormente privatizadas, como é o caso exemplar da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN. Dada a natureza pública da documentação relativa ao período da ditadura, seria fundamental que se garantisse amplo acesso a ela, nos termos da Lei de Acesso à Informação.

<><> Difundir os crimes da ditadura para o grande público

O segundo eixo que entendo ser fundamental para nortear uma política sobre o tema é a questão da difusão. Ou seja, para além de ampliar o olhar sobre quais documentos devem ser pensados como arquivos da ditadura, o Memórias Reveladas pode e deve conduzir um trabalho ativo de transformação dos documentos em instrumentos na disputa pela memória coletiva sobre o período.  O uso dos documentos em filmes, séries, documentários, exposições e salas de aula tem uma importância fundamental para a construção de uma memória crítica acerca da ditadura militar. Assim, iniciativas estatais voltadas para o fomento e o financiamento desses usos públicos e pedagógicos dos arquivos da repressão, tais como a publicação de editais e chamadas públicas, são fundamentais. 

Essa dimensão é chave no momento presente. Por muito tempo, houve uma certa crença compartilhada de que uma revelação objetiva da verdade sobre os anos de chumbo seria capaz de produzir o repúdio à tortura e ao autoritarismo. Ou seja, os depoimentos e documentos falariam por si só – quando as pessoas entrassem em contato com o horror e a barbárie perpetrada pelo estado naquele período, revelados pelas políticas públicas democráticas, elas imediatamente se colocariam contra as violações. Isso de certa forma está expresso no próprio nome do Centro de Referência.   Essa crença se mostrou completamente ingênua. Foi exatamente durante o trabalho da Comissão Nacional da Verdade que o negacionismo sobre a ditadura ganhou força no Brasil.

Não é por desconhecimento do que foi o regime autoritário que as pessoas votaram em um presidente que elogiou o maior torturador do período. Do contrário: setores da sociedade se identificam com esses valores e os reivindicam abertamente.  Nesse sentido, não se pode esperar que os arquivos falem por si. Hoje temos convicção de que muitas pessoas seriam capazes de olhar um documento do Exército sobre um crime cometido por um militar na época e tomá-lo como um monumento, como algo a ser celebrado.  Nesse sentido, na atual conjuntura, mais do que revelar memórias, o papel do Centro de Referência deve ser o de promover um trabalho, uma pedagogia e uma política em torno das memórias. Assim, esse volumoso acervo custodiado pelo Arquivo Nacional poderá cumprir um papel fundamental na construção e na difusão de um olhar crítico ao autoritarismo. Com isso, o Memórias Reveladas voltará a desempenhar o papel de órgão fundamental para o fortalecimento e a consolidação da nossa democracia.

 

Fonte: Por Lucas Pedretti, em The Intercept

 

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