Fotografias
históricas encontradas no prédio do IML mostram a face racista da Ditadura
Militar
Se você
procurar por fotografias dos presos na Ditadura Militar no Brasil,
provavelmente cairá nas famosas fotos dos detidos políticos segurando as placas
do antigo Departamento de Ordem Política e Social da Guanabara, o DOPS –
imortalizadas em uma cena de ‘Ainda Estou Aqui’. Há, no entanto, milhares de
vítimas das arbitrariedades do
regime cujos rostos não fazem parte da memória daquele período. Até agora. Esquecidos
dentro do prédio abandonado em que funcionou o Instituto Médico Legal, dezenas
de fichários fotográficos guardam, em estado surpreendentemente bom de conservação,
fotos de pessoas que estiveram detidas nas delegacias policiais entre os anos
1960 e 1980. São fichas que carregam histórias como as de Paulo Sérgio,
morador de Belford Roxo, município da Baixada Fluminense, preso na 54ª
Delegacia de Polícia em 1982. Ou de Josias Vicente, morador da Favela da
Rocinha, detido na 15ª DP em 1979. Ou, ainda, de Jotair, morador da Vila
Kennedy, preso em data não identificada. Três homens negros levados à delegacia
para responderem pela Contravenção Penal de vadiagem.
Os arquivos estão na antiga sede do Instituto
Médico Legal do Rio de Janeiro, edifício que está abandonado desde 2009, quando
deixou de ser utilizado pela Polícia Civil. Ele fica a menos de 200 metros de
distância do antigo prédio do DOPS, onde estão as fichas secretas de policiais
que o Intercept Brasil revelou na primeira reportagem da série As
fichas esquecidas da Ditadura Militar. Apesar de estarem desorganizadas e, em
alguns casos, jogadas, as fichas fotográficas estão em um estado
surpreendentemente bom de conservação. Eu entrei no prédio em 8 de agosto do
ano passado, junto com representantes dos movimentos sociais e técnicos de
arquivos públicos. A visita fez parte do grupo de trabalho criado pelo
Ministério Público para investigar o abandono dos documentos. No último dos
cinco andares do edifício, após passar por cima de entulhos que bloqueiam
parcialmente um portal e adentrar um longo corredor, chegamos às salas quase
totalmente tomadas por fichários do Serviço Fotográfico da Polícia Civil. As
gavetas – muitas empilhadas direto no chão – guardam as fichas que registram a
passagem de milhares de pessoas detidas pelas delegacias do estado. Na frente
delas, a fotografia do preso. No verso, informações básicas, como nome,
filiação, endereço e crime pelo qual respondia.
O tempo da visita foi curto, pois o objetivo
era ter uma visão geral do que havia no interior do edifício. Mas fiz um rápido
teste. Selecionei algumas dezenas de fichas referentes a pessoas que respondiam
pela contravenção penal de vadiagem (artigo 59º da Lei de Contravenções
Penais). Ao virar as fichas e olhar as fotos, não foi nenhuma surpresa
identificar quem eram os presos: em sua grande maioria, homens negros. Em
entrevista concedida ao Intercept, o delegado Hélio Luz, ex-chefe da Polícia
Civil, instituição na qual ingressou em 1973, explica como funcionava essa
abordagem.
Segundo Luz, os policiais faziam rondas nas
regiões pelas quais eram responsáveis, e, se encontrassem alguém circulando,
perguntavam o que a pessoa estava fazendo no local. Caso a pessoa afirmasse ser
trabalhadora, a polícia exigia ver sua mão. “A mão tinha que ter calo. Na hora
que examinava, não podia ter mão lisa”, diz ele.
Tampouco era permitido andar sem documentos
de identificação, em especial carteira de trabalho. Caso contrário, a pessoa
era levada para a Delegacia para averiguação. “Três averiguações, tomava uma
vadiagem”, conta o ex-delegado. “Aí você já começa a ver qual é a função desde
cedo da segurança da polícia. É controle social”, sintetiza.
É difícil quantificar quantas pessoas foram
alvo dessas arbitrariedades. Mas, para se ter uma ideia do volume, em dezembro
de 1975, o jornal O Globo noticiava que, naquele ano, em
apenas seis meses, haviam sido registradas cerca de 1.300 prisões por vadiagem
no estado do Rio de Janeiro. É verdade que o teste que fiz não possui valor
científico, pois selecionei poucos exemplos de um universo de milhares de
fichas. Mas é o suficiente para demonstrar como essa documentação pode abrir
caminho para novas pesquisas históricas.
·
Vadiagem e controle
social
O historiador Paulo Cruz Terra, professor da
Universidade Federal Fluminense, a UFF, explica que a perseguição à chamada
vadiagem existe desde o período colonial. Com o avanço da luta abolicionista,
porém, o sentido racial dessa repressão se intensificou. “Em 1888, com a ideia
da abolição definitiva da escravidão, ganhou força a discussão de que deveria
se encontrar novos mecanismos de reprimir a vadiagem”.
Por trás desse debate, explica Terra, estava
a “ideia de que haveria uma ociosidade natural na população negra e que, por
isso, ela deveria ser obrigada a trabalhar”.
O pesquisador aponta que estatísticas do
início do século demonstram que a maioria dos presos por vadiagem eram pessoas
negras. Rafael Maul, historiador que integra o Grupo Tortura Nunca Mais e tem
participado do trabalho de identificação do material, afirmacomo o material
encontrado no prédio reforça a dimensão racista das prisões por vadiagem. “Ao
olhar essa documentação, a gente tem ali na nossa cara a forma como o estado
resolve a questão racial no pós-abolição”, dz ele. “É o controle de
trabalhadores e trabalhadoras negras, a disciplinarização, o cerceamento dos
indivíduos, de seu movimento, suas formas de sociabilidade e, obviamente, de
sua mobilidade social e econômica”, analisa Maul.
As prisões por vadiagem às vezes também
envolviam torturas. Em 19 de maio de 1973, o Jornal do Brasil noticiou:
“Baleiro de 15 anos preso sem motivo como vadio é solto depois de violentado”.
Segundo a reportagem, o juiz que decidiu pela soltura havia ficado “estarrecido
com seu estado físico e com suas roupas manchadas de sangue”. Em 1978, o
mesmo jornal trazia a história de um homem que foi preso por
vadiagem e cujo processo judicial foi extraviado. Ele ficou, então, seis anos
preso, até que os autos foram localizados e ele foi absolvido. Poucos meses
depois, o jornal relatava o caso de um feirante de 22 anos que, acusado de
vadiagem, “ficou paralítico em consequência de tortura sofrida na 38ª
Delegacia”. Embora siga em vigor, o dispositivo da vadiagem foi aos
poucos deixando de ser utilizado pelas polícias. Isso se deu especialmente em
razão das críticas sobre sua natureza arbitrária e violenta que ganharam força
no contexto da redemocratização.
Outros documentos que estão no prédio podem
revelar, ainda, novos aspectos da atuação da estrutura repressiva naquele
período. Para além dos fichários fotográficos com as fotografias de
pessoas detidas nas delegacias comuns, há armários que guardam laudos
produzidos tanto pelo próprio IML, quanto pelo Instituto de Criminalística
Carlos Éboli, órgão vinculado à Polícia Civil que faz as perícias nos locais
dos crimes. Esses dois conjuntos documentais – do IML e do ICCE – já
foram usados para desmontar versões oficiais mentirosas de casos que envolviam
opositores políticos do regime.
Em 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais teve o
acesso franqueado a essa documentação pelo então secretário estadual de
Justiça, Nilo Batista. Já no primeiro dia de trabalho, Romildo Maranhão do
Valle, irmão do desaparecido político Ramires Maranhão do Valle, identificou
registros de cadáveres sem identificação dando entrada no IML, enviados pelo
DOPS. Valle seguiu a pista. “Pouco a pouco foi sendo levantado um quadro que
identificou os cemitérios municipais, à época sob a administração da Santa Casa
de Misericórdia do Rio de Janeiro, como o destino dos corpos ocultados pelos
órgãos de repressão, tanto sob seus próprios nomes, quanto com nomes falsos ou
com desconhecida identidade”, conta ele em depoimento publicado pela revista
Transversos, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2018. Dali, o
Grupo Tortura Nunca Mais descobriu a existência de uma vala comum no cemitério
Ricardo de Albuquerque.
Mais de duas décadas depois, a Comissão
Nacional da Verdade voltou a acessar os arquivos. Também partiu de laudos de
necropsia do IML e de laudos de perícia de local do ICCE para atestar a
responsabilidade do Estado sobre outros casos de graves violações aos direitos
humanos. Tanto a iniciativa pioneira do Tortura Nunca Mais quanto o trabalho da
Comissão da Verdade, contudo, foram feitos sob severas limitações,
especialmente porque o arquivo segue sob guarda e responsabilidade da própria
polícia.
A transferência definitiva da documentação
para o Arquivo Público do Estado abrirá caminho para o aprofundamento das
pesquisas. Com isso, será possível avançar para além do esclarecimento das
circunstâncias de casos emblemáticos de mortos e desaparecidos políticos do
regime. A mesma lógica investigativa já usada nesses casos poderia ser aplicada
para outros crimes. A partir dos laudos de encontro de cadáver, por exemplo, é
possível compreender melhor a dinâmica de atuação dos esquadrões da morte e
grupos de extermínio naquele período.
Rafael Maul enfatiza como esses novos
documentos podem aprofundar e complexificar o modo como falamos sobre a
violência política da ditadura militar. “A documentação vai mostrar pra gente
que essa perseguição também é política, mesmo que não esteja enquadrada pelo
estado desta forma”, aponta.
Gabrielle Abreu, historiadora e gestora de
memória do Instituto Marielle Franco, destaca a necessidade de se repensar
termos até pouco tempo atrás cristalizados, como a noção de quem foram as
vítimas da ditadura militar. “Sobretudo os arquivos policiais podem nos
ajudar a elaborar uma compreensão mais detalhada sobre essas violências e como
brasileiros e brasileiras foram vitimados”, afirma. Abreu destaca a importância
de se incluir o recorte de raça nesse esforço. “Importa uma reflexão sobre o
passado ditatorial que abranja as relações raciais para que tenhamos uma visão
mais completa sobre o que, de fato, caracterizou as práticas do
regime”.
¨
Precisamos abrir os
arquivos da ditadura e contar os crimes cometidos pelos militares
Intercept
Brasil publicou uma matéria sobre o Centro de Referência Memórias
Reveladas, política pública criada em 2009, no Arquivo Nacional, para tratar
dos arquivos da ditadura. A reportagem revelava o
gravíssimo caso da servidora Inez Stampa, ex-coordenadora do órgão. No contexto
do desmonte do Memórias Reveladas no governo de Jair Bolsonaro, Inez adoeceu e
foi levada a se aposentar.
O texto
apontava, ainda, que o desmonte dessa política teria se aprofundado no governo
Lula. Diante deste ponto, historiadores elaboraram uma nota, assinada por quase
250 pessoas, que reforça a gravidade do caso revelado e se solidariza com Inez,
mas apresenta uma visão diferente acerca do estado atual do Memórias Reveladas.
Para os signatários – e eu me incluo entre eles – está em curso um processo de
reconstrução do órgão, que deve ser reconhecido e apoiado.
É fato
que a conjuntura é complexa e o cenário para a agenda da memória sobre a
ditadura é muito desfavorável. Exemplar disso foi a péssima decisão de
Lula de não marcar o sexagenário
do golpe de 1964, a qual foi muito criticada publicamente por vários dos
signatários da nota. É exatamente por isso que acreditamos fazer pouco
sentido minar e colocar em xeque, de antemão, o esforço de um setor do governo
de avançar neste debate. Chamo a atenção particularmente para o fato de
que a diretora-geral do Arquivo Nacional, a professora Ana Flávia Magalhães,
nomeou, para dirigir essa reconstrução do Memórias Reveladas, duas mulheres
cujas trajetórias são de inequívoco compromisso político e acadêmico com a luta
por memória, verdade e justiça. São elas as historiadoras Gabrielle Abreu, que
chefia a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo, à
qual o Memórias está vinculado, e Luciana Lombardo, que será a nova
coordenadora do Centro de Referência.
Este
texto, porém, não tem o objetivo de alimentar ou aprofundar essa disputa entre
visões divergentes acerca dos rumos do Arquivo Nacional em geral e do Memórias
Reveladas em particular. Ele parte da premissa de que a reconstrução está em
curso. Meu objetivo é propor um debate que me parece muito mais relevante neste
momento: o que deve fazer uma política pública sobre os arquivos da ditadura
hoje? Ou seja, dado que o Memórias Reveladas será recolocado de pé, quais são
seus principais desafios e missões?
<><> Uma história pela metade
Entre importantes passos, alguns retrocessos
e muitos limites, a questão dos arquivos da ditadura foi uma das que mais
avançou dentro das medidas adotadas pelo estado brasileiro para lidar com o seu
passado ditatorial. Hoje, o Arquivo Nacional, por meio do Memórias Reveladas,
custodia e disponibiliza online um impressionante volume de
documentos produzidos por agências repressivas do regime. São mais de 10
milhões de páginas. Os avanços que existiram, porém, sempre estiveram à
sombra de uma grande e incontornável questão. As Forças Armadas jamais abriram
os seus arquivos. Especialmente os dos centros de informações do Exército, o
Cie; da Marinha, o Cenimar; e da Aeronáutica, o Cisa. Mesmo diante desse
obstáculo, esse enorme acervo hoje sob responsabilidade do Memórias Reveladas
tem usos fundamentais, nos âmbitos jurídicos, acadêmicos e políticos.
Os documentos servem como material probatório
tanto em processos judiciais quanto nas comissões de reparação e da verdade;
como base para uma historiografia diversa e rica sobre o período; e para a
construção de exposições, filmes, documentários e reportagens acerca da
ditadura militar. Não à toa, portanto, o Arquivo Nacional e o Memórias
Reveladas foram alvo dos ataques bolsonaristas. No rastro de destruição das
políticas públicas, o Centro de Referência foi completamente esvaziado,
como mostrou o Intercept. Mas agora, neste cenário de
reconstrução, o que pode e o que deve fazer uma política pública sobre os
arquivos da ditadura?
A primeira e mais evidente questão é que
segue pendente a necessidade de abrir, na totalidade, os arquivos das Forças
Armadas. O estado não pode seguir aceitando, sem questionamentos ou
investigações mais profundas, as justificativas inverossímeis fornecidas
historicamente pelos militares, segundo as quais não haveria mais arquivos a
serem abertos. Ocorre que essa decisão não cabe ao restrito escopo do Memórias
Reveladas ou mesmo do Arquivo Nacional. Ela demandaria a vontade e a iniciativa
política de outros atores do governo, os quais não têm demonstrado interesse em
avançar nesta agenda.
<><> O que fazer com os arquivos
da ditadura?
Nesse sentido, penso que, sem abrir mão de
fortalecer as demandas históricas não atendidas dos movimentos sociais, caberia
ao Memórias Reveladas conduzir um esforço de repensar e ampliar os sentidos
dessa agenda de lutas pela abertura dos arquivos da ditadura. Penso em pelo
menos dois eixos que poderiam guiar uma atuação do Memórias Reveladas em novos
termos, que inclusive fariam com que a importância dessa política pública para
a democracia brasileira se tornasse ainda maior.
Em primeiro lugar, trata-se de ampliar o
escopo de compreensão sobre o que e quais são os documentos da ditadura. Em
segundo lugar está a necessidade de enfatizar fortemente o esforço de difusão,
ou seja, dos usos públicos desses arquivos, com vistas a enfrentar o
negacionismo acerca daquele período. Sobre o primeiro ponto, a grande
transformação nos debates acadêmicos e políticos sobre a ditadura militar na
última década diz respeito à incorporação de novos sujeitos e personagens nas
histórias e memórias daquele período. Investigações e pesquisas acerca da
violência perpetrada pelo regime autoritário contra os povos indígenas, as
mulheres, os trabalhadores do campo e da cidade, a população LGBTQIA+, a
população negra e os moradores de favelas e periferias vêm se multiplicando.
Esses novos olhares têm transformado
profundamente a própria concepção acerca do que foi a ditadura militar no
Brasil, quais violências caracterizaram aquele regime e quem foram as vítimas
das violações de direitos humanos naquele período.
Como exemplo mais notável, podemos citar a
mudança regimental da Comissão de Anistia que abriu espaço para a apresentação
de requerimentos de anistia coletiva.
Essa
novidade resultou, em abril de 2024, em um primeiro julgamento em que o estado
brasileiro reconheceu e pediu desculpas pelas graves
violações aos direitos humanos perpetradas coletivamente contra os povos
indígenas Krenak e Guarani-Kaiowá.
É nesse sentido que defendo que precisamos também ampliar nossa concepção
acerca do que são os arquivos da repressão no Brasil.
Em geral, entendemos como documentos da
ditadura aqueles arquivos produzidos pelos órgãos oficialmente estabelecidos
para conduzir a repressão política stricto sensu, tais como aqueles
oficialmente constantes do Sistema Nacional de Informações, o Sisni. Entre ele
estão precisamente os Dops, o SNI, os centros de informações das Forças
Armadas. Ocorre que essas pesquisas recentes vêm demonstrando que a
dinâmica das graves violações aos direitos humanos desses distintos grupos
sociais variou enormemente, não sendo possível restringir a responsabilidade
pela violência a essas agências estatais específicas. Para exemplificar,
podemos pensar que se a violência contra a população LGBTQIA+ nas ruas das
cidades e a violência contra a população negra nas favelas e periferias passava
necessariamente pelas polícias militar e civil, então a íntegra dos acervos
dessas instituições – e não apenas seu braço de polícia política – devem ser
vistos como arquivos da ditadura.
Um esforço coordenado de recuperação,
recolhimento, tratamento e disponibilização dos arquivos das polícias relativos
aos anos 1960 a 1980, portanto, poderia ampliar sobremaneira nosso conhecimento
sobre as violências do regime autoritário.
Para além das polícias, ao considerar a
natureza de classe do regime, devemos pensar na necessidade de acessar os
arquivos dos órgãos estatais que conduziram as políticas públicas excludentes e
violentas no período. A título de exemplo, hoje sabemos que a ditadura
realizou o mais amplo programa de remoções forçadas de favelas da história,
promovendo o deslocamento forçado de mais 140 mil moradores dessas áreas.
Os acervos dos órgãos públicos estruturados
para conduzir essas remoções – nomeadamente o Banco Nacional de Habitação, o
BNH, e a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, a
Chisam, vinculada ao Ministério do Interior – certamente nos permitiriam
compreender de forma muito mais aprofundada e detalhada a extensão desse
processo que representou, por si só, uma profunda violência contra os moradores
de favelas. Indo ainda mais além, é preciso considerar que parte da
violência do regime foi operada a partir de suas margens, e não de órgãos
oficiais. Entidades paraestatais, tais como esquadrões da morte, grupos de
extermínio e milícias privadas operaram sob conivência do estado e com a
participação de agentes estatais para promover gravíssimas violações aos
direitos humanos. É evidente que tais organizações não atuavam sob a mesma
lógica das agências oficiais, e portanto não produziam documentos ou registros
de qualquer natureza. Não há, nesse sentido, por óbvio, algo como um arquivo do
esquadrão da morte. No entanto, se considerarmos que elas foram fundamentais
para o aparato de violência do regime, torna-se necessário, então, buscar
registros que possam nos auxiliar na compreensão de sua atuação.
Um caminho profícuo para atestar a dinâmica
de atuação dos grupos de extermínio, por exemplo, seriam os arquivos dos
Institutos Médicos Legais responsáveis pela realização de perícias nos locais
de localização de cadáveres. Outro tipo de grave violação aos direitos
humanos ocorrida na ditadura foi aquela decorrente da cumplicidade entre
agentes econômicos e o regime. Investigações recentes têm comprovado, a partir
do mergulho nos acervos já existentes, que os vasos comunicantes entre os
setores de segurança das empresas privadas com os órgãos estatais eram
muitos. Isso se desdobrava, por exemplo, na produção de “listas sujas”
por parte das empresas, as quais eram enviadas para agências estatais de
repressão.
Em alguns casos, mais do que vasos
comunicantes, o que havia era uma verdadeira sobreposição de funções – como no
caso da empresa Folha de S. Paulo, em que delegados do Dops ocupavam cargos de
liderança na empresa, especialmente no seu setor de segurança. Ora, isso
significa que, se não é possível compreender a violência contra os
trabalhadores sem que se leve em conta a cumplicidade de agentes econômicos com
o regime, então os acervos das empresas apoiadoras da ditadura devem ser
entendidos como documentos da repressão. Ressalta-se, nesse caso, a
existência de empresas públicas à época dos fatos que foram posteriormente
privatizadas, como é o caso exemplar da Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN.
Dada a natureza pública da documentação relativa ao período da ditadura, seria
fundamental que se garantisse amplo acesso a ela, nos termos da Lei de Acesso à
Informação.
<><> Difundir os crimes da
ditadura para o grande público
O segundo eixo que entendo ser fundamental
para nortear uma política sobre o tema é a questão da difusão. Ou seja, para
além de ampliar o olhar sobre quais documentos devem ser pensados como arquivos
da ditadura, o Memórias Reveladas pode e deve conduzir um trabalho ativo de
transformação dos documentos em instrumentos na disputa pela memória coletiva
sobre o período. O uso dos documentos em filmes, séries, documentários,
exposições e salas de aula tem uma importância fundamental para a construção de
uma memória crítica acerca da ditadura militar. Assim, iniciativas estatais
voltadas para o fomento e o financiamento desses usos públicos e pedagógicos
dos arquivos da repressão, tais como a publicação de editais e chamadas
públicas, são fundamentais.
Essa dimensão é chave no momento presente.
Por muito tempo, houve uma certa crença compartilhada de que uma revelação
objetiva da verdade sobre os anos de chumbo seria capaz de produzir o repúdio à
tortura e ao autoritarismo. Ou seja, os depoimentos e documentos falariam por
si só – quando as pessoas entrassem em contato com o horror e a barbárie
perpetrada pelo estado naquele período, revelados pelas políticas públicas
democráticas, elas imediatamente se colocariam contra as violações. Isso de
certa forma está expresso no próprio nome do Centro de Referência. Essa
crença se mostrou completamente ingênua. Foi exatamente durante o trabalho da
Comissão Nacional da Verdade que o negacionismo sobre a ditadura ganhou força
no Brasil.
Não é por desconhecimento do que foi o regime
autoritário que as pessoas votaram em um presidente que elogiou o maior
torturador do período. Do contrário: setores da sociedade se identificam com
esses valores e os reivindicam abertamente. Nesse sentido, não se pode
esperar que os arquivos falem por si. Hoje temos convicção de que muitas
pessoas seriam capazes de olhar um documento do Exército sobre um crime
cometido por um militar na época e tomá-lo como um monumento, como algo a ser
celebrado. Nesse sentido, na atual conjuntura, mais do que revelar memórias,
o papel do Centro de Referência deve ser o de promover um trabalho, uma
pedagogia e uma política em torno das memórias. Assim, esse volumoso acervo
custodiado pelo Arquivo Nacional poderá cumprir um papel fundamental na
construção e na difusão de um olhar crítico ao autoritarismo. Com isso, o
Memórias Reveladas voltará a desempenhar o papel de órgão fundamental para o
fortalecimento e a consolidação da nossa democracia.
Fonte: Por Lucas Pedretti, em The Intercept

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