Brasil: Como tornar o Cuidado um trabalho
valorizado?
Cuidar é um ato essencial. É garantir o
bem-estar e sustentar a vida de outra pessoa, o que envolve, entre tantas
tarefas, atividades como preparar a comida, dar o banho. Durante a pandemia de
Covid-19, essa dimensão do cotidiano ganhou visibilidade e urgência. Mas,
passado o momento crítico, o cuidado rapidamente voltou a ser tratado como algo
natural, quase instintivo, e próprio das relações familiares — quando, na
verdade, é trabalho. Um trabalho fundamental, mas historicamente
invisibilizado, desvalorizado e profundamente marcado por hierarquias de
gênero, classe e raça.
A partir da premissa de que o cuidado é
trabalho, colegas e eu conduzimos uma ampla pesquisa internacional sobre seu
provimento, marcado por custos elevados e profundas desigualdades. O objetivo
foi entender como diferentes sociedades organizam a oferta de cuidado
remunerado, como a pandemia afetou essa ordem e de que modo, sob distintos
regimes de bem-estar, as formas de organização social do cuidado no
pós-pandemia se reconfiguraram. Buscamos mapear quem cuida, em que condições e
com quais vínculos, revelando os contornos deste campo de trabalho.
No centro da nossa análise esteve o
reconhecimento da heterogeneidade das formas que o trabalho de cuidar pode
assumir. Foi essa diversidade que nos levou à necessidade de construir uma
tipologia capaz de organizar esse campo múltiplo, marcado por diferentes
arranjos e intensidades. Chamamos essa proposta de “halos do cuidado” — uma
imagem que remete à ideia de camadas concêntricas, nas quais variam a
intensidade, a pessoalidade e a domesticidade do cuidado prestado.
A tipologia permite classificar as ocupações
segundo três critérios fundamentais: o tipo de interação (direta ou indireta),
a frequência (recorrente ou eventual) e o espaço em que o cuidado se realiza
(doméstico ou não doméstico). De acordo com esses parâmetros, identificamos
cinco grandes grupos ocupacionais, organizados segundo o grau de proximidade
com quem recebe cuidado — do mais próximo ao mais distante da relação pessoal e
cotidiana.
<><> Modelo brasileiro aprofunda
desigualdades
A aplicação dessa metodologia ao caso
brasileiro trouxe informações contundentes. Em 2023, o trabalho de cuidado
remunerado mobilizava cerca de 25 milhões de pessoas — o equivalente a um
quarto da força de trabalho do país. No núcleo mais íntimo, denso e cotidiano
desse mercado — o cuidado doméstico, direto e recorrente — predominavam, de
forma marcante, as mulheres negras. Segundo dados da PNAD Contínua (Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios – IBGE), elas representavam 62% das
trabalhadoras do cuidado direto e 61% do cuidado indireto realizados no
domicílio. E são justamente essas trabalhadoras que enfrentam as condições mais
adversas: remunerações baixas (menos de sete dólares por hora, em média),
jornadas extensas e escassa proteção social. A formalização é mínima. Apenas
21% das mulheres que prestam cuidado direto no domicílio estão inscritas na
Previdência. No caso do cuidado indireto doméstico, esse percentual é similar:
meros 25%.
A comparação com outros países torna ainda
mais evidente o caráter estruturante dessas desigualdades. Na França, por
exemplo, o provimento do cuidado externalizou-se largamente em relação ao
domicílio, deslocando as atividades de cuidado do âmbito doméstico para
instituições ou serviços organizados fora das residências. Esse processo
implica a transferência, parcial ou total, do cuidado familiar para arranjos
públicos ou mercantis, mediado por políticas, organizações e vínculos formais
de trabalho. Neste país europeu, o Estado desempenha papel central no
financiamento e regulamentação do cuidado, sobretudo nas áreas de saúde e
educação infantil. Ali, o mercado é intermediado por empresas e associações,
mas o trabalho é regulado, há exigência de certificações e a ele se associam
direitos e proteções. Na Colômbia, diferentemente, destaca-se o peso do
mercado, onde é forte a presença de contratos por tarefa em um contexto de
baixa participação estatal.
O Brasil parece configurar um outro arranjo:
entre nós, chama a atenção o papel das famílias na contratação direta de
cuidadoras e trabalhadoras domésticas. Ao mesmo tempo, assistimos ao avanço
rápido de intermediadores do trabalho domiciliar, como empresas-plataforma e
serviços de homecare. É um crescimento que ainda escapa às estatísticas
oficiais, mas reconfigura silenciosamente o campo do cuidado.
Isso cria uma situação ambígua: se é certo
que somos um país onde os valores “familistas” são muito fortes, e estão
sublinhados na própria Constituição, os dados também indicam a presença
significativa do Estado nas áreas institucionalizadas do cuidado. Ainda assim,
persiste a contratação direta de mulheres, majoritariamente negras e pobres,
mobilizadas no cuidado cotidiano que se faz nas residências. Em outras
palavras, vivemos um processo em que a mercantilização do cuidado parece não
ter a equivalente externalização das tarefas em relação ao domicílio, um modelo
que não apenas mantém, mas aprofunda as desigualdades de classe, raça e gênero.
O estudo também mostra que há uma forte
polarização nas condições de trabalho nos diferentes “halos” do cuidado. À
medida que nos afastamos do cuidado direto e doméstico, e nos aproximamos de
funções exercidas no espaço público, em instituições governamentais ou privadas
(como enfermeiras, professoras, médicas), aumentam os salários, a escolaridade
média e a proporção de vínculos formais. Também há maior presença de homens e
de pessoas brancas. Isso revela um mercado segmentado, que atribui menos valor (simbólico
e monetário) ao cuidado mais íntimo, repetitivo e invisibilizado — justamente
aquele que mantém o cotidiano de milhões de famílias.
Reconhecer o cuidado como trabalho é o
primeiro passo para enfrentar as desigualdades. Mas isso não basta. É preciso
ampliar e qualificar as políticas públicas direcionadas aos que cuidam:
garantir formação adequada, remuneração digna, contratos protegidos,
reconhecimento social. É urgente tratar o cuidado como bem público e como uma
responsabilidade coletiva — não apenas restrita às mulheres e nem confinada às
famílias. Nosso estudo não buscou apenas responder à pergunta “quem cuida de
quem cuida?”, mas propõe que essa pergunta seja recorrentemente feita e
reiterada. E que ela oriente a construção de políticas mais justas, mais
eficazes e, sobretudo, mais humanas.
Fonte: Por Nadya Araujo Guimarães, no The
Conversation

Nenhum comentário:
Postar um comentário