A participação social nas redes digitais
A democracia digital exige não apenas
conectividade, mas também regulação, educação crítica, soberania tecnológica e
capacidade de organização coletiva.
• Introdução
A participação social é um dos pilares de
qualquer democracia viva e ativa. Tradicionalmente articulada por meio da
militância partidária, dos movimentos sociais, das organizações da sociedade
civil e da ocupação dos espaços públicos, essa participação tem assumido, nas
últimas décadas, novas formas impulsionadas pelas transformações tecnológicas e
culturais. Em especial, com o advento das redes sociais digitais, observamos
uma mutação nos modos de engajamento e mobilização social, que coloca em
questão os modelos clássicos de ação política.
Neste cenário, emerge um novo sujeito
político, conectado, instantâneo e multifacetado, representado sobretudo pelas
camadas mais jovens da população – a chamada Geração Z. Esse grupo, formado por
nativos digitais, compreende as redes sociais não apenas como plataformas de
entretenimento, mas também como arenas de debate, formação de opinião,
contestação e, em muitos casos, de articulação de ações coletivas. Assim, o
artigo busca refletir sobre como a participação social tem sido ressignificada
a partir do uso das redes sociais, problematizando os efeitos dessa
transformação sobre a democracia, a cidadania e o papel das instituições
políticas.
Para tanto, o presente texto dialoga com
referenciais das ciências sociais, da ciência política, das ciências humanas e
da geografia política, buscando articular a teoria à prática concreta da
mobilização digital. Parte-se da premissa de que compreender as transformações
na cultura política contemporânea exige atenção tanto aos mecanismos clássicos
de participação quanto às novas dinâmicas mediadas por tecnologias digitais.
• Cidadania
e participação
A participação social, em seu sentido mais
amplo, pode ser entendida como a atuação dos indivíduos na esfera pública com o
objetivo de influenciar decisões coletivas e promover transformações sociais.
T.H. Marshall (1967), ao discutir o conceito de cidadania, propõe sua divisão
em três dimensões fundamentais: a cidadania civil (direitos individuais, como
liberdade de expressão), a cidadania política (direito à participação política,
como votar e ser votado) e a cidadania social (direito ao bem-estar, como saúde,
educação e trabalho). A efetivação dessas três dimensões é condição para a
realização plena da democracia.
Entretanto, autores como Pierre Bourdieu
(1990) e Boaventura de Sousa Santos (2002) nos alertam para o caráter desigual
dessa participação. Para Pierre Bourdieu, o capital cultural e o capital social
influenciam diretamente a capacidade dos sujeitos de acessar os espaços
legítimos de participação. Já Boaventura propõe a ideia de “democracia de alta
intensidade”, que depende da ampliação dos canais participativos para além dos
mecanismos representativos tradicionais, como eleições.
No campo da geografia política, Milton Santos
(1996) destaca a relação entre território, técnica e informação, e como os
fluxos informacionais moldam a vida social. Nesse sentido, o espaço digital
aparece como um novo território de disputa política, no qual as redes sociais
funcionam como ferramentas de territorialização simbólica e de articulação de
ações. Esse espaço, por ser menos institucionalizado, tende a ser mais
acessível para grupos historicamente excluídos dos canais tradicionais de poder
– embora também possa ser colonizado por interesses econômicos e políticos
hegemônicos.
Assim, discutir a participação hoje implica
revisitar os fundamentos clássicos da cidadania e da ação coletiva, mas também
reconhecer que vivemos uma era de reconfiguração desses conceitos. A internet
e, particularmente, as redes sociais, surgem como um novo campo de
possibilidades e contradições, onde se manifesta uma forma emergente de
engajamento: a participação em rede.
• A
emergência das redes sociais como ferramenta de mobilização
Com o avanço das tecnologias de informação e
comunicação, especialmente após a popularização dos smartphones e o acesso
massivo à internet, as redes sociais passaram a desempenhar um papel central na
vida cotidiana e, consequentemente, na organização social. Plataformas como
Instagram, X (antigo Twitter), TikTok, Facebook e WhatsApp se tornaram, além de
espaços de sociabilidade, arenas de disputa política e mobilização social.
A socióloga Zeynep Tufekci (2017), em sua
análise sobre os protestos do século XXI, destaca que as redes sociais permitem
uma mobilização “sem organização”, ou seja, sem a mediação de instituições
tradicionais como sindicatos ou partidos políticos. Essa característica permite
que causas diversas ganhem visibilidade de maneira rápida e descentralizada. No
entanto, Tufekci também alerta que essa facilidade de articulação não substitui
a construção de estratégias de longo prazo e a consolidação de lideranças políticas,
o que pode comprometer a sustentabilidade das lutas.
Na mesma direção, Manuel Castells (2013)
argumenta que vivemos a era das “redes de indignação e esperança”, onde as
redes digitais têm a capacidade de catalisar sentimentos difusos em ações
concretas. Exemplo disso foi o movimento Occupy Wall Street (2011), a Primavera
Árabe (2010–2012), e as Jornadas de Junho no Brasil (2013), que se organizaram
em grande medida pelas redes sociais, evidenciando seu potencial de
mobilização.
Contudo, o espaço digital é também marcado
pela dispersão, pela superficialidade e pela lógica algorítmica que favorece a
viralização de conteúdos sensacionalistas. A efemeridade das pautas, a
fragmentação do discurso político e o fenômeno das fake news são sintomas de
uma nova ecologia informacional que impacta diretamente a qualidade do debate
público e a formação da opinião política.
• A
disputa política nas redes – o caso brasileiro
O caso brasileiro oferece um exemplo
emblemático do poder das redes sociais na disputa política. A eleição de Jair
Bolsonaro em 2018 representou uma virada na forma de fazer política no país,
com uma campanha baseada majoritariamente em estratégias digitais,
desintermediação da mídia tradicional e uso intensivo de mensagens direcionadas
por meio do WhatsApp e do Facebook.
Pesquisadores como Esther Solano e Pablo
Ortellado demonstram que a base bolsonarista soube explorar com eficiência as
brechas dos sistemas algorítmicos para propagar conteúdos virais, muitas vezes
baseados em desinformação. A desinstitucionalização da política tradicional foi
acompanhada por uma nova forma de comunicação direta, emocional e polarizadora,
que capturou o ressentimento de parte expressiva da população.
Enquanto isso, setores da esquerda
enfrentaram dificuldades para se adaptar às novas lógicas das redes. A
dependência dos meios tradicionais, a comunicação burocratizada e a dificuldade
de dialogar com a linguagem da cultura digital afastaram segmentos importantes,
sobretudo os mais jovens. A ausência de um “imaginário digital” progressista
permitiu que as redes fossem hegemonizadas por discursos conservadores.
Essa assimetria comunicacional revela que não
basta estar presente nas redes: é necessário compreender sua lógica, seus
códigos culturais, suas estéticas e suas gramáticas. A política digital exige
rapidez, criatividade, afetividade e capilaridade – elementos que demandam uma
renovação nas formas de atuação política e institucional.
• A
Geração Z
A chamada Geração Z, formada por jovens
nascidos a partir do final dos anos 1990, é o primeiro grupo social
verdadeiramente nativo digital. Cresceram conectados, com acesso a múltiplas
fontes de informação, expostos a discursos plurais e contraditórios. Essa
geração desenvolve formas próprias de se engajar politicamente, que muitas
vezes escapam aos formatos tradicionais da militância.
Estudos em ciências sociais aplicadas indicam
que o engajamento dessa geração está mais ligado a causas do que a ideologias.
A luta por direitos LGBTQIA+, o combate ao racismo, a pauta ambiental, o
feminismo e o anticapacitismo são temas que mobilizam jovens por meio de vídeos
curtos, memes, desafios e outras linguagens da cultura digital.
Embora essa forma de participação seja, por
vezes, criticada como “superficial” ou “instantânea”, é preciso reconhecer que
ela traduz um novo modo de ser político, que valoriza o engajamento simbólico,
a performance digital e o ativismo de rede. A filósofa Judith Butler (2004) já
apontava para a dimensão performativa da ação política, em que o corpo, a
imagem e a linguagem se tornam instrumentos de resistência.
Portanto, a questão central não é julgar a
“profundidade” da participação, mas entender os códigos dessa nova cultura
política. Ignorar isso significa perder a oportunidade de mobilizar uma geração
que, embora crítica e conectada, carece de estruturas de acolhimento político
mais horizontais e abertas à inovação.
• Considerações
finais
A participação social na era das redes
digitais não substitui as formas tradicionais de mobilização, como as
manifestações de rua, os conselhos participativos, os partidos políticos ou os
sindicatos. Ao contrário, ela se soma a essas formas, oferecendo novas
possibilidades de articulação, de visibilidade e de resistência.
No entanto, essas possibilidades trazem
também desafios: a desinformação, a polarização, a vigilância de dados e a
fragilidade das instituições diante do poder das plataformas privadas. A
democracia digital exige, portanto, não apenas conectividade, mas também
regulação, educação crítica, soberania tecnológica e capacidade de organização
coletiva.
Mobilizar a Geração Z e os novos sujeitos
digitais é tarefa urgente. Isso requer ouvir, dialogar e aprender com os modos
contemporâneos de engajamento. As redes sociais, embora capturadas muitas vezes
por lógicas mercantis, ainda são terreno fértil para a construção de uma esfera
pública mais inclusiva, diversa e potente. Entre a rua e o feed, a luta
política continua – e se reinventa.
Fonte: Por Thiago de Oliveira Machado, em A
Terra é Redonda

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