A
estratégia econômica do segundo governo Trump
A
decisão do presidente Donald Trump de iniciar uma guerra comercial e impor
tarifas que impactam a economia global provocou diversas acusações de
"políticas econômicas irracionais", que seria resultado de um
autocrata imprudente que impunha tarifas por pura ignorância, loucura ou
simples reflexo de estupidez. Isso, naturalmente, representa uma narrativa
superficial. As estratégias do governo Trump estão sintetizadas em alguns
documentos, como o Projeto 2025. Nele estão diversas pistas sobre a direção
futura da política, indicando que diversos esforços para combater o chamado
"deep state" ainda precisam ser feitos. Além do desmantelamento da
USAID, do Departamento de Educação e de várias outras agências, o Projeto 2025
sugere que cortes profundos também podem ocorrer no Departamento de Segurança
Interna, entre outras organizações.
No
documento, existe um ensaio sobre "comércio justo", de Peter Navarro,
conhecido pelas posições anti-China que foi indicado como conselheiro sênior
para Comércio e Manufatura de Trump. Ele aconselha o presidente desde antes da
eleição presidencial de 2016, quando o candidato Trump prometeu reprimir
práticas comerciais desleais que, segundo ele, destruíram empregos americanos e
deixaram cidades americanas, antes poderosas, apenas uma sombra do que eram no
passado. No relatório, Navarro sugere que os objetivos da política dos EUA
poderiam se estender à reforma ou mesmo à abolição dos princípios comerciais
que sustentam o sistema de comércio global. Ele insta Trump a mirar
"aqueles países que têm déficits comerciais relativamente grandes com os
EUA e aplicam tarifas relativamente altas", sendo eles China, Índia, União
Europeia, Vietnã, Tailândia, Taiwan, Japão e Malásia. Estes países deveriam ser
alvos de grandes impostos. Navarro enfatizou a importância de focar na China e
alcançar a grandeza americana, e criticou duramente a Organização Mundial do
Comércio: "os EUA são explorados diariamente no mercado global, tanto por
uma China comunista predatória quanto por uma OMC institucionalmente injusta e
não recíproca. Enfrentar esses dois desafios contribuiria significativamente
para restaurar a grandeza americana, tanto econômica quanto militarmente",
escreveu Navarro.
Porém,
a visão mais consistente é elaborada por Stephen Miran. Ele é autor de um
documento de 41 páginas escrito em novembro, após a vitória de Trump, e
acessível online, intitulado Um Guia do Usuário para Reestruturar o Sistema
Global de Comércio. Ele é agora o presidente do Conselho de Assessores
Econômicos da Casa Branca, uma espécie de think tank do poder executivo dos
EUA. A trajetória de Miran até a Casa Branca começou muito antes de seu serviço
público. Após se formar na Universidade de Boston com foco triplo em economia,
filosofia e matemática em 2005, fez doutorado na Universidade Harvard, onde
estudou com o economista Martin Feldstein que trabalhou mandato do presidente
Reagan. Antes de ingressar no governo, Miran foi estrategista sênior na Hudson
Bay Capital, uma empresa de gestão de investimentos, e posteriormente cofundou
a Amberwave Partners, uma empresa de gestão de ativos. Ele também atuou
brevemente no Tesouro dos EUA como consultor de política econômica para o
Secretário Steven Mnuchin, em 2020-2021. Longe de ser um nome conhecido, Miran
está rapidamente se tornando uma figura-chave na reformulação da postura
econômica dos EUA no cenário mundial, especialmente no que diz respeito ao
comércio. Em grande medida, as tarifas de Trump foram uma implementação
política direta das ideias de Miran — concebidas para servir como uma
ferramenta de dupla função: pressionar rivais comerciais e, ao mesmo tempo,
revitalizar a receita interna. Mais importante ainda, visam obrigar grandes
corporações a realocar suas operações e investimentos de volta para solo
americano. O ponto de partida de Miran desafia premissas fundamentais sobre a
posição econômica dos EUA. Ele argumenta que, embora o status de moeda de
reserva do dólar confira aos Estados Unidos um enorme poder geopolítico (como a
capacidade de congelar ativos ou excluir países do SWIFT), ele traz
desvantagens significativas: 1) Moeda supervalorizada: demanda global excessiva
por dólares torna exportações dos EUA menos competitivas; 2) Declínio da indústria:
esta sobrevalorização da moeda "esvaziou" a indústria
norte-americana; 3) Aumento do déficit comercial: o dólar sobrevalorizado
contribui para um déficit persistente e crescente na balança de transações
correntes. Essa perspectiva representa uma grande mudança.
A
maioria dos economistas há muito considera o papel global do dólar vantajoso,
permitindo que os Estados Unidos tomem empréstimos baratos e gastem além de
suas possibilidades. Miran inverte essa situação, sugerindo que esse
"privilégio" na verdade minou a base industrial e a segurança
nacional dos Estados Unidos. Embora esse status conceda aos Estados Unidos o
privilégio de fornecer liquidez global por meio de déficits comerciais, também
inflaciona o valor do dólar. O resultado: diminuição da competitividade das
exportações americanas, enfraquecimento dos setores industriais e crescentes
vazios socioeconômicos no coração industrial dos Estados Unidos. Para Miran,
Trump deve proteger a produção nacional e manter o papel global do dólar.
Portanto, a política monetária precisa atingir ambos os objetivos. Para que o
dólar sirva aos mercados globais, os EUA precisam continuar a apresentar
déficits comerciais. No entanto, esse mesmo mecanismo corrói sua base
industrial, inflaciona a dívida e enfraquece o crescimento orgânico. O que
antes era considerado um "privilégio" da liderança econômica global,
argumenta Miran, tornou-se um fardo insustentável. Ele compara isso a uma forma
tipicamente americana de "doença holandesa", em que a demanda avassaladora
pelo dólar reflete o impacto negativo de ganhos inesperados repentinos em
recursos — como o petróleo em outras economias — que inflacionam
artificialmente o valor da moeda e dizimam as exportações industriais. Nos EUA,
essa dinâmica levou a um modelo centrado na exportação de ativos financeiros e
na importação de bens, enriquecendo Wall Street e esvaziando cidades
industriais como Detroit.
Para
explicar esse paradoxo, Miran recorre ao "Dilema de Triffin" — um
conceito econômico de longa data que destaca a contradição entre manter uma
moeda global e garantir a estabilidade econômica interna. Se trata de uma
proposição feita pelo economista belga Robert Triffin no início da década de
1960, que argumentou que a crescente demanda por dólares como ativo de reserva
só poderia ser suprida pelos persistentes déficits em conta corrente dos EUA.
Isso, por sua vez, significava que o dólar estava persistentemente
supervalorizado em relação às exigências de equilíbrio na balança de
pagamentos. Com o tempo, argumentou ele, esse fraco desempenho comercial
minaria a confiança no preço fixo do ouro em dólar. E, de fato, isso se provou.
Em agosto de 1971, em resposta à desvalorização do dólar, o presidente Richard
Nixon suspendeu a conversibilidade do ouro. Após duras negociações, chegou-se a
um acordo sobre novas paridades do dólar em relação a outras moedas
importantes. Essas paridades não duraram e o antigo sistema de Bretton Woods,
com taxas de câmbio fixas, porém ajustáveis, foi substituído pelas atuais taxas
de câmbio flutuantes.
A
teoria de Miran pode ser resumida da seguinte forma. O dólar está
supervalorizado, o que prejudica as exportações dos EUA. Mas, como o dólar é a
moeda de reserva mundial, e os títulos do Tesouro — conhecidos como T-bills —
são o instrumento financeiro dominante na Terra (ter T-bills é praticamente
como ter dinheiro), é quase impossível que o dólar caia. Por isso, Miran aponta
que "podemos estar à beira de uma mudança geracional nos sistemas
financeiros e de comércio internacional". Para ele, "a raiz dos desequilíbrios
econômicos reside na persistente supervalorização do dólar, que impede o
equilíbrio do comércio internacional, e essa supervalorização é impulsionada
pela demanda inelástica por ativos de reserva". No cerne da estratégia
econômica de Miran está uma reformulação radical de como as tarifas podem
servir aos interesses dos EUA não apenas como ferramentas de geração de
receita, mas também como instrumentos de alavancagem estratégica. Miran
acredita que o dólar está supervalorizado. Então, para desvalorizá-lo, ele
propõe o seguinte. Primeiro, as tarifas. Então, forçar os países do G-7 a
concordarem em valorizar suas moedas em relação ao dólar. É o que ele chama de
Acordos de Mar-a-Lago, uma referência aos Acordos do Plaza, uma referência ao
hotel de Nova York onde Ronald Reagan conseguiu exatamente isso em 1985, embora
naquela ocasião o dólar tenha caído muito e dois anos depois os Acordos do
Louvre, outro hotel, desta vez em Paris, tiveram que ser parcialmente
revertidos. O problema é que, se o dólar se desvalorizar, os mais de trinta
trilhões de euros em letras do Tesouro perdem valor em relação a outras moedas.
Isso poderia levar a uma crise financeira global e, no processo, forçar os
Estados Unidos a reverter todo o processo.
Então
qual é a solução de Miran? Muito simples: que os Estados e bancos centrais do
resto do mundo troquem seus atuais títulos do Tesouro dos EUA por novos. Esses
novos títulos não seriam de no máximo 30 anos, mas sim cem ou perpétuos. Para
Miran, também haveria outra opção: o título não pagaria juros. Seria
literalmente um presente para os Estados Unidos. Em troca de quê? Miran não é
tímido: em troca de acesso ao mercado americano e, também, proteção militar.
Sua abordagem às tarifas não visa apenas gerar receita — é um esforço
estratégico para reavivar a capacidade industrial dos Estados Unidos, que tem
se deteriorado constantemente diante da ascensão de potências econômicas como a
China. As ambições de Miran não se limitam a tarifas ou acordos comerciais de
curto prazo. Sua visão se estende a uma reengenharia completa das relações
econômicas dos Estados Unidos — exigindo que os parceiros comerciais reavaliem
suas moedas, aumentem os investimentos industriais nos EUA e, em alguns casos,
apoiem a saúde fiscal americana comprando títulos do Tesouro com rendimento
zero. Ele considera esses mecanismos essenciais para restaurar o equilíbrio
econômico e garantir a prosperidade nacional a longo prazo.
O
discurso que Miran proferiu em 7 de abril, na qualidade de presidente do
Conselho de Consultores Econômicos dos EUA, ecoou muitos dos pontos que ele
levantou em seu relatório de novembro de 2023. Em seu discurso, Miran se
referiu repetidamente a Pequim como "nosso maior adversário". Ele
deixou claro que os Estados Unidos buscam a dissociação econômica e gostariam
de criar novas cadeias de suprimentos que excluíssem a China. Assume que
Washington está usando tarifas como alavanca para tentar forçar os países a
pagar aos Estados Unidos para ajudá-los a manter seu império global. Ele
argumentou ainda que essas tarifas não visam punir, mas sim combater
comportamentos comerciais desleais, como dumping, subsídios estrangeiros e
manipulação cambial, que prejudicam trabalhadores e empresas americanas. Se as
receitas tarifárias puderem ser redirecionadas para a redução de impostos
internos, afirma Miran, o resultado será um impulso competitivo para as
indústrias americanas. Para Miran, "a maioria dos economistas e alguns
investidores" que "descartam as tarifas como contraproducentes, na
melhor das hipóteses, e devastadoramente prejudiciais, na pior. Eles estão
errados. Uma das razões pelas quais o consenso econômico sobre tarifas é tão
equivocado é que quase todos os modelos que os economistas usam para estudar o
comércio internacional pressupõem a ausência total de déficits comerciais ou
pressupõem que os déficits são de curta duração e se autocorrigem rapidamente
por meio de ajustes cambiais". Miran diz que, de acordo com os modelos
padrão, os déficits comerciais causarão o enfraquecimento do dólar, o que
reduzirá as importações e impulsionará as exportações, eventualmente eliminando
o déficit comercial. Se isso acontecer, as tarifas podem ser desnecessárias,
pois o comércio se equilibrará ao longo do tempo e, nessa visão, intervir com
tarifas só pode piorar a situação. Na estrutura de Miran, as tarifas não servem
apenas para proteger as indústrias nacionais; elas desempenham diversas funções
estratégicas. As tarifas poderiam ajudar a gerar os quase US$ 5 trilhões
necessários para estender esses cortes sem aumentar o déficit. A proposta para
a China é particularmente agressiva: um aumento mensal perpétuo nas tarifas até
que as demandas dos EUA sejam atendidas. Essa tática de pressão crescente seria
acompanhada de esforços para convencer outras nações a aderir ao regime
tarifário contra a China.
Miran
afirmou que os Estados Unidos fornecem dois principais "bens públicos
globais": um, um "guarda-chuva de segurança" supervisionado
pelos militares dos EUA; e dois, o dólar e os títulos do Tesouro, que são
usados como o principal ativo de reserva no sistema financeiro internacional.
"Ambas são custosas para nós", reclamou. Miran insistiu que "é
necessário melhorar a divisão de encargos em nível global", acrescentando
que "se outras nações quiserem se beneficiar do guarda-chuva geopolítico e
financeiro dos EUA, então elas precisam fazer a sua parte e pagar a sua parte
justa". Em suma, os países estrangeiros devem ajudar a "arcar com os
custos" da administração do império americano. Em suas palavras: "O
presidente Trump deixou claro que não tolerará mais que outras nações se
aproveitem do nosso sangue, suor e lágrimas, seja na segurança nacional ou no
comércio. Para continuar a fornecer esses dois bens públicos globais, é
necessário melhorar a repartição dos encargos a nível global. Se outras nações
quiserem beneficiar-se do guarda-chuva geopolítico e financeiro dos EUA,
precisam de contribuir e pagar a sua quota-parte. Os custos não podem ser
suportados apenas pelos americanos comuns, que já doaram tanto". Para
Miran, um dólar mais fraco restaurará a grandeza industrial dos Estados Unidos.
Um influxo de investimento estrangeiro turbinará a economia americana. O
financiamento sem juros ajudará a domar a dívida nacional e a distribuir a
responsabilidade pelo financiamento da segurança global. Em sua narrativa, a
enxurrada de novas barreiras comerciais de Trump não visa alcançar uma
concessão estratégica específica ou benefício econômico de curto prazo. O
objetivo é, em vez disso, forçar outros países a se sentarem à mesa para um
grande acordo. Pode haver alguns solavancos ao longo do caminho, à medida que
consumidores e empresas lutam para se ajustar às novas restrições; o tumulto
resultante pode até desencadear uma recessão global. Mas isso é intencional.
Quanto mais Trump puder se retratar como um louco disposto a afundar a economia
mundial, mais temerosos e desesperados outros países ficarão por qualquer tipo
de alívio. Assim que os líderes estrangeiros estiverem praticamente implorando
pelo fim da loucura induzida por tarifas, Trump os convocará para seu complexo
na Flórida, onde apresentará uma série de exigências.
Primeiro,
os parceiros comerciais dos Estados Unidos devem se engajar em um esforço
coordenado para elevar o valor de suas próprias moedas em relação ao dólar, uma
medida destinada a tornar os produtos americanos mais baratos para vender no
exterior. Países que têm grandes superávits comerciais com os Estados Unidos,
como Alemanha e China, também podem ser obrigados a fazer grandes investimentos
para construir fábricas no coração dos Estados Unidos. Bancos centrais
estrangeiros concordarão em trocar seus atuais títulos da dívida americana por
"títulos do século" que não pagam juros por 100 anos, na prática
fornecendo financiamento gratuito aos Estados Unidos. A lógica é que Washington
ameaça impor tarifas elevadas aos países, a menos que eles concordem em fazer
concessões significativas que beneficiem a economia americana em detrimento da
sua própria, como parte de um hipotético "Acordo de Mar-a-Lago". Em
sua visão, linhas claramente traçadas entre os aliados e os adversários dos
Estados Unidos inaugurarão a estabilidade global. "Tal arquitetura
marcaria uma mudança nos mercados globais tão grande quanto Bretton Woods ou
seu fim", escreve Miran, referindo-se ao acordo de 1944 que deu origem ao
regime comercial moderno e à decisão de 1971 de retirar o mundo do padrão-ouro.
Para Miran, o Acordo de Mar-a-Lago entrará para os anais da história como o
acordo do século.
<><>
Os limites da economia política de Miran
Para
Miran, o governo Trump não está tentando desmantelar o império americano; pelo
contrário, quer fortalecê-lo. "Nosso domínio militar e financeiro não pode
ser considerado garantido, e o governo Trump está determinado a
preservá-los", disse ele. Quando Miran propôs que os países
"simplesmente assinassem cheques para o Tesouro", ele se refere à
ideia de que governos estrangeiros deveriam comprar títulos do Tesouro
americano de prazo muito longo, como títulos de 100 anos, com baixos
rendimentos. Estes se desvalorizariam com o tempo, com a inflação, subsidiando
Washington. O plano de Miran é uma forma direta de impor uma dominação da
economia mundial na qual o resto do mundo paga aos Estados Unidos em troca de
poder vender-lhe coisas e ter seu guarda-chuva defensivo. Um plano tão
arriscado quanto ousado. E algo que Wall Street e a City de Londres elevaram ao
status de um texto sagrado que orienta o que Trump quer fazer. Na mente de
Miran, a manipulação cambial de governos estrangeiros é em grande parte responsável
pelo declínio da indústria americana. A "supervalorização" do dólar
americano é a razão do grande déficit comercial dos Estados Unidos. Essa
supervalorização torna as exportações dos EUA menos competitivas, as
importações dos EUA mais baratas e prejudica a indústria americana. É uma visão
curiosa, porque até agora a visão dominante tem sido a de que o dólar é um
"privilégio exorbitante", como disse Valerie Giscard d'Estaing, então
Ministra da Economia francesa e futura Presidente francesa, na década de 1960.
Dada a
demanda global por dólares, os Estados Unidos podem tomar emprestado muito mais
do que qualquer outro país sem sofrer uma crise de dívida, e podem produzir
muito mais dólares do que seria inicialmente saudável para sua economia, porque
sempre haverá demanda por letras do Tesouro e dólares americanos fora de suas
fronteiras. A teoria econômica – como Miran e outros do círculo trumpista
explicam – está cheia de furos. A análise empírica dessa nova visão sobre o
comércio é limitada e, com as poucas evidências disponíveis, encontra pouco ou
nenhum suporte para as hipóteses. Primeiro que as ligações entre o papel do
dólar como moeda de reserva, o déficit crônico em conta corrente dos EUA e a
fraqueza do emprego e da produção industrial estão erradas. Os EUA estão longe
de ser o único país de alta renda com queda na participação do emprego na
indústria. Segundo que o novo acordo monetário proposto permitiria, de fato,
que os EUA combinassem a emissão de uma moeda de reserva com seus objetivos
setoriais melhor do que quaisquer alternativas plausíveis. Terceiro que não
está tão claro que Trump será capaz de manter qualquer acordo que tenha
alcançado. Afinal, ele abandonou a Ucrânia, colocou em dúvida o compromisso com
a OTAN e lançou um ataque ao Canadá e outros aliados. O tratamento dado por
Trump aos aliados dificilmente dará garantias de que o cumprimento de tal
acordo trará estabilidade. Mesmo que alguns países o cumpram, isso não
resolverá o problema do déficit dos EUA. Não é possível resolver simultaneamente
o problema do déficit e manter o dólar americano desvalorizado como moeda
mundial.
Diversos
países ao redor do mundo não concordariam com coisas que não fossem do seu
interesse econômico porque os EUA queriam. E os estrategistas de Trump parecem
não ter percebido que, depois das tarifas, do Afeganistão e agora da Ucrânia,
ninguém confia nos Estados Unidos para fornecer acesso ao mercado ou proteção
militar. Neste cenário, Trump e suas políticas podem ser um verdadeiro tiro de
bazuca nos pés. As medidas adotadas por Trump podem provocar o efeito inverso
que o esperado. Isso porque o crescente déficit norte-americano em transações
correntes não decorre da falta de tarifas, mas reflete a deterioração da
posição competitiva das empresas norte-americanas em termos nacionais e
internacionais. Essa deterioração foi enfrentada especializando-se na
intermediação financeira global. As multinacionais norte-americanas viram
receitas e lucros crescerem, mas esse crescimento ocorreu principalmente no
exterior e essas empresas só podem manter sua participação no mercado global se
reinvestirem o lucro no exterior. Assim, as causas de longo prazo da redução de
competitividade não foram enfrentadas, fazendo os EUA perderem competitividade
de pouca tecnologia e uso intensivo de mão de obra, como também nas atividades
de alta tecnologia e uso intensivo de conhecimento, que são a espinha dorsal da
vantagem comparativa dos EUA. A questão de fundo é que a China tem grande
superávit comercial porque são competitivos. E, por isso, os EUA querem fazer
com o resto do mundo o que fizeram com o Japão em 1985 (os acordos Plaza, que
levaram à valorização do iene), matando a expansão japonesa. Simplificando, o
plano é essencialmente fazer com que outras economias importantes concordem em
valorizar suas próprias moedas e ajudar a desvalorizar o dólar americano.
Espera-se que isso alcance as metas declaradas pelo governo dos EUA de tornar
os produtos produzidos nos Estados Unidos mais competitivos e impulsionar sua
indústria de manufatura. No entanto, isso também tornaria as exportações dos
participantes menos competitivas.
A
ex-economista-chefe do Departamento de Relações Exteriores e Comércio Jenny
Gordon apontou que as ideias delineadas por Miran dificilmente resultariam na
redução dos déficits e no retorno dos bons empregos - que eram a motivação
principal. Para ela, a lógica era falha por uma série de razões: 1) Os EUA
precisariam tomar dinheiro emprestado para reinvestir em seu setor
manufatureiro, o que aumentaria o valor do dólar americano — o oposto do que o
acordo pretende fazer; 2) A mudança nos padrões de consumo, a tecnologia e o
envelhecimento da população contribuíram tanto, se não mais, do que o comércio
global para afastar os empregos bem remunerados do coração industrial dos
Estados Unidos; e 3) O plano faria com que os países abandonassem o dólar
americano como moeda de reserva, e o Trump disse que não quer isso. Para Michel
Hudson, em vez de apoiar o crescimento da indústria americana, o efeito das
tarifas e outras políticas fiscais de Trump será proteger e subsidiar a
obsolescência e a desindustrialização financeirizada. Sem reestruturar a
economia rentista e financeirizada para levá-la de volta ao plano de negócios
original do capitalismo industrial, com mercados livres da renda rentista, como
defendido pelos economistas clássicos e suas distinções entre valor e preço e,
portanto, entre aluguel e lucro industrial, seu programa não conseguirá
reindustrializar os Estados Unidos. De fato, ameaça empurrar a economia
americana para uma depressão – para 90% da população, pelo menos. Trump não tem
planos de recriar tal economia industrial. Em vez disso, ele defende a
filosofia econômica oposta: enxugamento do governo, enfraquecimento da
regulamentação pública, privatização da infraestrutura pública e abolição do
imposto de renda progressivo. Este é o programa neoliberal que aumentou a
estrutura de custos da indústria e polarizou riqueza e renda entre credores e
devedores. Donald Trump deturpa este programa como sendo favorável à indústria,
e não à sua antítese.
Hudson
critica a crença de que as tarifas, por si só, podem reanimar a indústria
americana. Na realidade, esconde a inexistência de planos para lidar com os
problemas que causaram a desindustrialização dos Estados Unidos. Não há
reconhecimento do que tornou o programa industrial original dos EUA e da
maioria das outras nações tão bem-sucedido. Esse programa baseava-se em
infraestrutura pública, aumento do investimento industrial privado e salários
protegidos por tarifas, além de forte regulamentação governamental. A
política de corte e queima de Trump é o inverso – reduzir o tamanho do governo,
enfraquecer a regulamentação pública e vender a infraestrutura pública para
ajudar a pagar os cortes de imposto de renda de sua classe de doadores. Isto é
apenas o programa neoliberal sob outra roupagem. Trump o apresenta de forma
equivocada como um apoio à indústria, não à sua antítese. Sua iniciativa não é
um plano industrial, mas sim um jogo de poder para extrair concessões
econômicas de outros países, enquanto reduz os impostos de renda dos ricos. O
resultado imediato será demissões generalizadas, fechamento de empresas e
inflação dos preços ao consumidor. Trump está, portanto, promovendo uma
narrativa simplista e descaradamente falsa sobre o que tornou a política de
industrialização americana do século XIX tão bem-sucedida. Para ele, o que é
grandioso é a parte "dourada" da Era Dourada, não sua decolagem
industrial e social-democrata liderada pelo Estado. Sua panaceia é que tarifas
substituam o imposto de renda, juntamente com a privatização do que resta das
funções governamentais. Isso daria a um novo grupo de barões ladrões carta
branca para enriquecer ainda mais, reduzindo a tributação e a regulamentação
governamental sobre eles, ao mesmo tempo em que reduz o déficit orçamentário
com a venda do domínio público restante, desde terras de parques nacionais até
os correios e laboratórios de pesquisa.
Em
nítido contraste com a desindustrialização ocidental, destaca-se a bem-sucedida
decolagem industrial da China. Hoje, o padrão de vida na China é, para grande
parte da população, tão alto quanto o dos Estados Unidos. Isso é resultado da
política do governo chinês de fornecer apoio público aos empregadores
industriais, subsidiando necessidades básicas (por exemplo, educação e
assistência médica), trens públicos de alta velocidade, metrô local e outros
transportes, melhores comunicações de alta tecnologia e outros bens de consumo,
além de seus sistemas de pagamento. Mais importante ainda, a China manteve o
setor bancário e a criação de crédito no domínio público, como um serviço
público. Essa é a política fundamental que lhe permitiu evitar a financeirização
que desindustrializou os EUA e outras economias ocidentais. Como diz Milton
Pomar, a diferença fundamental entre a China e as demais grandes economias é
que o sistema financeiro chinês não manda na China.A China é que manda em seu
sistema financeiro. A postura agressiva de Trump minou ainda mais a
confiança no dólar no exterior e está causando sérias interrupções na cadeia de
suprimentos da indústria americana, interrompendo a produção e causando
demissões no país. Embora as tarifas possam levar a um dólar mais forte no
curto prazo, se Trump as mantiver perpetuamente, isso provavelmente levará a um
crescimento estruturalmente menor, e o valor de equilíbrio do dólar a longo
prazo provavelmente será menor do que seria de outra forma. A erosão estrutural
das instituições e a renúncia dos EUA à sua posição dominante no cenário
mundial enfraquecem a posição de reserva do dólar. Embora no curto prazo
o dólar provavelmente esteja seguro devido à falta de alternativas, no médio
prazo, a pressão para o fim de sua dominância aumentará e, com isso, de parte
de seu valor. Significaria um período de caos econômico internacional, enquanto
os países lutam para encontrar alternativas ao dólar. Poderia até mesmo
desencadear uma crise financeira global, minando a confiança no mercado do
Tesouro dos EUA, assim como a desvalorização dos empréstimos subprime minou a
confiança no mercado hipotecário em 2008. Como disse o economista Mark Sobel:
"O dólar pode de fato cair, mas não da maneira que Trump
gostaria".
Fonte:
Por Fernando Marcelino, em Brasil 247

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