Ditadura:
35 anos depois, movimentos sociais repetem esforço para salvar documentos
históricos do regime militar
A
descoberta de documentos inéditos da ditadura abandonados em sacos de lixo
e armários no Rio de Janeiro repete, mais de 30 anos depois, um roteiro já
conhecido de um dos períodos mais marcantes da história do Brasil: o contraste
entre o desinteresse e descaso de órgãos oficiais e a resistência e mobilização
de movimentos sociais para resgatar registros e preservar a memória do regime
militar.
O
recolhimento ao Arquivo Público do Estado de materiais que mostram a operação
militar na ditadura ganhou tração no início dos anos 1990 através da luta dos
movimentos sociais.
No Rio
de Janeiro, essa transferência ocorreu em 1992. Mas não abarcou a totalidade da
documentação produzida pelas polícias no período, como revelou o Intercept Brasil. O material deixado
para trás mostra, por exemplo, o vínculo entre polícia política e
delegacias comuns,
bem como as entranhas da face racista do
regime.
Ao
participar de um podcast policial em 2023, o fundador do Bope, coronel Paulo César
Amendola, revelou os bastidores de como os arquivos do antigo Departamento de
Ordem Política e Social, o DOPS, foram parar na sede da Polícia Federal no
começo dos anos 1980.
Segundo
Amendola, o responsável pela transferência ilegal foi o inspetor da Polícia
Civil José Paulo Boneschi, acusado por ex-presos políticos de ser torturador.
Um
documento secreto produzido pelo Centro de Informações do Exército, CIE,
detalha o contexto. “Em consequência da eleição de governadores filiados a
partidos oposicionistas em diversos Estados da federal”, cita o relatório, “é
de esperar-se que funções estaduais de cúpula sejam ocupadas por elementos
interessados em promover perseguições políticas, de cunho revanchistas”.
Diante
disso, o CIE solicitou aos comandantes militares que indicassem nomes para
garantir “a passagem desses funcionários à disposição da área Federal”. Dentre
os nomes de agentes do Rio de Janeiro listados está o de Boneschi.
A
narrativa de Amendola e o documento do CIE ilustram bem o modo pelo qual os
arquivos dos órgãos repressivos foram tratados durante a transição
política.
Tomados
como propriedade dos agentes e das instituições responsáveis pelas violações de
direitos humanos, e não como documentos públicos sujeitos ao escrutínio da
sociedade, eles foram objeto de diversas tentativas de limpeza, ocultamento e
destruição, com o intuito de apagar as provas da violência.
Essa
estratégia de ocultar parte da história do Brasil se consolidou no Rio de
Janeiro a partir da vitória de Leonel Brizola para o governo do estado, em 1982
– o que fez o inspetor Boneschi buscar proteção na Polícia Federal, levando os
arquivos do DOPS consigo.
Brizola
encerrou seu mandato e não foi reeleito. Mas voltou ao cargo na eleição
posterior, realizada em 1990, desta vez não mais sob um regime
autoritário.
Naquele
novo momento, familiares de mortos e desaparecidos políticos e movimentos
sociais como o Grupo Tortura Nunca Mais intensificavam a luta para que o estado
brasileiro reconhecesse sua responsabilidade sobre as violações aos direitos
humanos. Para tanto, seria imprescindível acessar os arquivos do regime.
Aos
poucos, em alguns estados da federação, houve a recuperação dos documentos dos
respectivos DOPS. Em janeiro de 1992, por pressão da sociedade civil, em
especial do Grupo Tortura Nunca Mais, que já vinha pesquisando na documentação
do Instituto Médico Legal, IML, o então secretário de Justiça de Brizola no RJ,
Nilo Batista, iniciou as tratativas para que o Ministério da Justiça
transferisse a documentação da sede da Polícia Federal para o Arquivo Público
do Estado.
Uma vez
formalizado o acordo de transferência, teve início um trabalho coordenado por
historiadores e arquivistas para retirar a documentação do prédio da PF e, em
seguida, higienizar e catalogar o material.
Em
2014, a historiadora Luciana Lombardo escreveu um artigo sobre o tema. No
texto, ela afirma que os depoimentos de militantes e pesquisadores destacavam
“as condições desfavoráveis criadas pela Polícia Federal”, o “mau estado geral
de conservação em que se encontravam as caixas de documentos” e a “existência
de um amontoado indistinto de papéis e publicações apelidado de ‘lixão’”.
“Foi um
negócio muito braçal, com cara de mutirão”, contou ela, em entrevista ao
Intercept. Lombardo compara o que ocorreu nos anos 1990 com o que está se dando
hoje, quando um novo esforço capitaneado pelos movimentos sociais busca
organizar a documentação abandonada em prédios da Polícia Civil. O protagonismo
da sociedade civil, diz ela, “aproxima esses dois processos mais de 30 anos
depois”.
Fernanda
Pradal, integrante do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação,
entidade que provocou o Ministério Público Federal, MPF, para que fosse aberto
o inquérito civil público sobre o prédio do DOPS, concorda. “Temos visto que os
movimentos de familiares vítimas da violência de estado têm sido protagonistas
em investigar mortes e desaparecimentos cometidas por agentes de estado, seja
na ditadura ou na democracia que temos”, ressalta.
Uma das
hipóteses de por que os documentos recém-descobertos não desapareceram de vez
ainda durante a ditadura é que tanto os arquivos sobre a trajetória dos
próprios policiais quanto os documentos relativos aos presos comuns fogem
àquilo que se costuma entender por “arquivos da repressão” – ou seja, na época
estes documentos podem ter sido interpretados como sem potencial de risco para
o regime militar.
Mas
Rafael Maul, historiador do Grupo Tortura Nunca Mais que tem participado da
força-tarefa, pontua que esses documentos acabaram ficando “num limbo”, o que
demonstra que não houve qualquer interesse em preservá-los.
“Mesmo
que a destruição da documentação não seja direta”, ela vai sendo realizada
homeopaticamente. E essa destruição da documentação é uma destruição da própria
história nacional”, analisa.
Pradal
destaca como, na contramão dessa destruição, a sociedade civil tem reiterado a
necessidade de que o conjunto de novos documentos recém-descobertos seja
tratado, “na perspectiva de que o Estado cumpra a função de guarda adequada de
documentação relevante”.
“Sobretudo”,
complementa ela, “porque esta é uma condição para a investigação de casos,
a revelação de padrões e a reparação de violências históricas e sistemáticas de
diferentes períodos e contra sujeitos e grupos diversos”.
·
Registros
desde Getúlio Vargas até Castor de Andrade
As
fichas de presos comuns reveladas pelo Intercept são uma parcela ínfima de um
volume impressionante de documentos, espalhados por dezenas de salas em um
prédio labiríntico. Em cada uma das três visitas já realizadas no local, o
grupo de trabalho localizou novos espaços – e mais documentos.
Em uma
das salas, foram localizados gaveteiros com prontuários da Delegacia Especial
de Segurança Pública e Social, a DESPS. Instituída em 1933 por Getúlio Vargas,
a delegacia foi uma das antecessoras do DOPS e exerceu o papel primordial de
polícia política durante a ditadura do Estado Novo até sua transformação em
Divisão de Polícia Política e Social, o DPPS, em 1944.
Já em
outro espaço, os documentos contam histórias de quando o Brasil vivia em um
regime democrático, mas que não deixam de ser de relevante valor histórico. É o
caso de uma pasta azul datada de 1996, cuja capa indica se tratar de um habeas
corpus do bicheiro Castor de Andrade.
·
Primeira
etapa de trabalhos vai até fim de maio
Apesar
das dificuldades de um esforço voluntário, a força-tarefa que lida com as
fichas policiais que estão no antigo prédio do DOPS estima que o trabalho será
encerrado até o final de maio.
No
entanto, esta é apenas a primeira fase de um longo processo, já que os
pesquisadores ainda não conseguiram fazer um diagnóstico definitivo do tamanho
do material que está no prédio do IML.
No dia
27 de março, uma nova diligência foi feita no prédio, seguida de uma reunião no
Ministério Público Federal, em que foi estabelecido um calendário de visitas ao
local para que a força-tarefa consiga finalizar a estimativa de tempo e
recursos humanos necessários para analisar o material.
Mas um
dos compromissos mais importantes buscados pelos movimentos sociais já foi
obtido, segundo a ata da reunião. “O representante da Procuradoria Geral do
Estado do Rio de Janeiro afirma inicialmente que o Estado não quer cercear o
acesso à documentação que se encontra no antigo DOPS e no antigo IML”, cita o
documento.
Apesar
de mencionar o argumento da necessidade de proteção de dados pessoais, a
Polícia Civil reconheceu durante a reunião que é preciso encontrar um destino
para a documentação.
Em
nota, o MPF informou que foi discutido, “em conjunto com a Sepol”, a
necessidade de uma “estratégia para organização do acervo” e, em um segundo
momento, a definição de “um local adequado para a guarda provisória dos
documentos”.
Procurada
pelo Intercept, a Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou que entende ser
“relevante a preservação de documentos de valor histórico, razão pela qual está
colaborando com a catalogação”. Também confirmou que, “sobrevindo algum
documento de efetivo interesse histórico, poderá ser encaminhado ao Arquivo
Público para o devido tratamento”.
·
Movimentos
sociais buscam apoio institucional
Ainda
que o conteúdo da maior parte da documentação ainda siga desconhecido, a
relevância do material que vem sendo encontrado já é atestada pelo procurador
Júlio Araújo, que preside o inquérito civil público sobre o antigo prédio do
DOPS.
“Existe
um interesse histórico por si só na compreensão das instituições que
organizavam a repressão, de modo a entender o período”, afirma Araújo. “Além
disso, há elementos que compõem um quebra-cabeça de violências do passado”,
complementa.
Nesse
sentido, o procurador avalia positivamente o trabalho dos voluntários. “O grupo
de trabalho tem prestado uma grande contribuição ao inquérito, pois oferece uma
avaliação do cenário encontrado e, ao mesmo tempo, constrói a solução,
garantindo a preservação da documentação”, pontua.
O
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, APERJ, futuro destinatário da
documentação e que tem fornecido orientações técnicas e suporte material desde
o início dos trabalhos, também reconhece o interesse público na
documentação.
“A
documentação localizada no prédio da rua da Relação já cumpriu o seu valor
primário, seu valor administrativo”, disse o órgão ao Intercept, em nota. “Ao
reconhecê-la como um conjunto documental complementar à documentação recolhida
ao APERJ, reconhecemos também, agora, o seu valor histórico”, acrescenta.
O texto
ainda cita que os documentos produzidos entre 1907 e 1983 “integram o conjunto
de documentos custodiados no APERJ e devem ser recolhidos à instituição”.
A
iniciativa ainda angariou apoio na esfera federal. O Ministério dos Direitos
Humanos e Cidadania, MDHC, por meio da Assessoria Especial de Memória, Verdade
e Defesa da Democracia, tem acompanhado o desenrolar do inquérito. O ministério
está buscando formas de apoiar as próximas etapas do trabalho com a
documentação.
O
esforço do MDHC converge com o do Arquivo Nacional, explica Luciana Lombardo,
que hoje chefia o Centro de Referência Memórias Reveladas. “O Arquivo Nacional
se dispôs a apoiar com capacitação, treinamentos e oficinas”, destaca.
Ela
ressalta que, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, o Arquivo
foi fundamental para apoiar pesquisadores e consultores do órgão. Também avalia
que essa expertise no trato de documentos da ditadura deve ser colocada à
disposição da nova força-tarefa.
Fonte:
Por Lucas Pedretti, em The Intercept