sábado, 5 de abril de 2025

Ditadura: 35 anos depois, movimentos sociais repetem esforço para salvar documentos históricos do regime militar

A descoberta de documentos inéditos da ditadura abandonados em sacos de lixo e armários no Rio de Janeiro repete, mais de 30 anos depois, um roteiro já conhecido de um dos períodos mais marcantes da história do Brasil: o contraste entre o desinteresse e descaso de órgãos oficiais e a resistência e mobilização de movimentos sociais para resgatar registros e preservar a memória do regime militar. 

O recolhimento ao Arquivo Público do Estado de materiais que mostram a operação militar na ditadura ganhou tração no início dos anos 1990 através da luta dos movimentos sociais. 

No Rio de Janeiro, essa transferência ocorreu em 1992. Mas não abarcou a totalidade da documentação produzida pelas polícias no período, como revelou o Intercept Brasil. O material deixado para trás mostra, por exemplo, o vínculo entre polícia política e delegacias comuns, bem como as entranhas da face racista do regime.

Ao participar de um podcast policial em 2023, o fundador do Bope, coronel Paulo César Amendola, revelou os bastidores de como os arquivos do antigo Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, foram parar na sede da Polícia Federal no começo dos anos 1980. 

Segundo Amendola, o responsável pela transferência ilegal foi o inspetor da Polícia Civil José Paulo Boneschi, acusado por ex-presos políticos de ser torturador.

Um documento secreto produzido pelo Centro de Informações do Exército, CIE, detalha o contexto. “Em consequência da eleição de governadores filiados a partidos oposicionistas em diversos Estados da federal”, cita o relatório, “é de esperar-se que funções estaduais de cúpula sejam ocupadas por elementos interessados em promover perseguições políticas, de cunho revanchistas”. 

Diante disso, o CIE solicitou aos comandantes militares que indicassem nomes para garantir “a passagem desses funcionários à disposição da área Federal”. Dentre os nomes de agentes do Rio de Janeiro listados está o de Boneschi. 

A narrativa de Amendola e o documento do CIE ilustram bem o modo pelo qual os arquivos dos órgãos repressivos foram tratados durante a transição política. 

Tomados como propriedade dos agentes e das instituições responsáveis pelas violações de direitos humanos, e não como documentos públicos sujeitos ao escrutínio da sociedade, eles foram objeto de diversas tentativas de limpeza, ocultamento e destruição, com o intuito de apagar as provas da violência. 

Essa estratégia de ocultar parte da história do Brasil se consolidou no Rio de Janeiro a partir da vitória de Leonel Brizola para o governo do estado, em 1982 – o que fez o inspetor Boneschi buscar proteção na Polícia Federal, levando os arquivos do DOPS consigo. 

Brizola encerrou seu mandato e não foi reeleito. Mas voltou ao cargo na eleição posterior, realizada em 1990, desta vez não mais sob um regime autoritário. 

Naquele novo momento, familiares de mortos e desaparecidos políticos e movimentos sociais como o Grupo Tortura Nunca Mais intensificavam a luta para que o estado brasileiro reconhecesse sua responsabilidade sobre as violações aos direitos humanos. Para tanto, seria imprescindível acessar os arquivos do regime. 

Aos poucos, em alguns estados da federação, houve a recuperação dos documentos dos respectivos DOPS. Em janeiro de 1992, por pressão da sociedade civil, em especial do Grupo Tortura Nunca Mais, que já vinha pesquisando na documentação do Instituto Médico Legal, IML, o então secretário de Justiça de Brizola no RJ, Nilo Batista, iniciou as tratativas para que o Ministério da Justiça transferisse a documentação da sede da Polícia Federal para o Arquivo Público do Estado. 

Uma vez formalizado o acordo de transferência, teve início um trabalho coordenado por historiadores e arquivistas para retirar a documentação do prédio da PF e, em seguida, higienizar e catalogar o material.

Em 2014, a historiadora Luciana Lombardo escreveu um artigo sobre o tema. No texto, ela afirma que os depoimentos de militantes e pesquisadores destacavam “as condições desfavoráveis criadas pela Polícia Federal”, o “mau estado geral de conservação em que se encontravam as caixas de documentos” e a “existência de um amontoado indistinto de papéis e publicações apelidado de ‘lixão’”.

“Foi um negócio muito braçal, com cara de mutirão”, contou ela, em entrevista ao Intercept. Lombardo compara o que ocorreu nos anos 1990 com o que está se dando hoje, quando um novo esforço capitaneado pelos movimentos sociais busca organizar a documentação abandonada em prédios da Polícia Civil. O protagonismo da sociedade civil, diz ela, “aproxima esses dois processos mais de 30 anos depois”.

Fernanda Pradal, integrante do Coletivo RJ Memória, Verdade, Justiça e Reparação, entidade que provocou o Ministério Público Federal, MPF, para que fosse aberto o inquérito civil público sobre o prédio do DOPS, concorda. “Temos visto que os movimentos de familiares vítimas da violência de estado têm sido protagonistas em investigar mortes e desaparecimentos cometidas por agentes de estado, seja na ditadura ou na democracia que temos”, ressalta.

Uma das hipóteses de por que os documentos recém-descobertos não desapareceram de vez ainda durante a ditadura é que tanto os arquivos sobre a trajetória dos próprios policiais quanto os documentos relativos aos presos comuns fogem àquilo que se costuma entender por “arquivos da repressão” – ou seja, na época estes documentos podem ter sido interpretados como sem potencial de risco para o regime militar. 

Mas Rafael Maul, historiador do Grupo Tortura Nunca Mais que tem participado da força-tarefa, pontua que esses documentos acabaram ficando “num limbo”, o que demonstra que não houve qualquer interesse em preservá-los. 

“Mesmo que a destruição da documentação não seja direta”, ela vai sendo realizada homeopaticamente. E essa destruição da documentação é uma destruição da própria história nacional”, analisa.

Pradal destaca como, na contramão dessa destruição, a sociedade civil tem reiterado a necessidade de que o conjunto de novos documentos recém-descobertos seja tratado, “na perspectiva de que o Estado cumpra a função de guarda adequada de documentação relevante”. 

“Sobretudo”, complementa ela, “porque esta é uma condição para a investigação de casos, a revelação de padrões e a reparação de violências históricas e sistemáticas de diferentes períodos e contra sujeitos e grupos diversos”.

·        Registros desde Getúlio Vargas até Castor de Andrade

As fichas de presos comuns reveladas pelo Intercept são uma parcela ínfima de um volume impressionante de documentos, espalhados por dezenas de salas em um prédio labiríntico. Em cada uma das três visitas já realizadas no local, o grupo de trabalho localizou novos espaços – e mais documentos.

Em uma das salas, foram localizados gaveteiros com prontuários da Delegacia Especial de Segurança Pública e Social, a DESPS. Instituída em 1933 por Getúlio Vargas, a delegacia foi uma das antecessoras do DOPS e exerceu o papel primordial de polícia política durante a ditadura do Estado Novo até sua transformação em Divisão de Polícia Política e Social, o DPPS, em 1944. 

Já em outro espaço, os documentos contam histórias de quando o Brasil vivia em um regime democrático, mas que não deixam de ser de relevante valor histórico. É o caso de uma pasta azul datada de 1996, cuja capa indica se tratar de um habeas corpus do bicheiro Castor de Andrade.

·        Primeira etapa de trabalhos vai até fim de maio

Apesar das dificuldades de um esforço voluntário, a força-tarefa que lida com as fichas policiais que estão no antigo prédio do DOPS estima que o trabalho será encerrado até o final de maio. 

No entanto, esta é apenas a primeira fase de um longo processo, já que os pesquisadores ainda não conseguiram fazer um diagnóstico definitivo do tamanho do material que está no prédio do IML. 

No dia 27 de março, uma nova diligência foi feita no prédio, seguida de uma reunião no Ministério Público Federal, em que foi estabelecido um calendário de visitas ao local para que a força-tarefa consiga finalizar a estimativa de tempo e recursos humanos necessários para analisar o material. 

Mas um dos compromissos mais importantes buscados pelos movimentos sociais já foi obtido, segundo a ata da reunião. “O representante da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro afirma inicialmente que o Estado não quer cercear o acesso à documentação que se encontra no antigo DOPS e no antigo IML”, cita o documento.

Apesar de mencionar o argumento da necessidade de proteção de dados pessoais, a Polícia Civil reconheceu durante a reunião que é preciso encontrar um destino para a documentação. 

Em nota, o MPF informou que foi discutido, “em conjunto com a Sepol”, a necessidade de uma “estratégia para organização do acervo” e, em um segundo momento, a definição de “um local adequado para a guarda provisória dos documentos”.

Procurada pelo Intercept, a Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou que entende ser “relevante a preservação de documentos de valor histórico, razão pela qual está colaborando com a catalogação”. Também confirmou que, “sobrevindo algum documento de efetivo interesse histórico, poderá ser encaminhado ao Arquivo Público para o devido tratamento”.

·        Movimentos sociais buscam apoio institucional

Ainda que o conteúdo da maior parte da documentação ainda siga desconhecido, a relevância do material que vem sendo encontrado já é atestada pelo procurador Júlio Araújo, que preside o inquérito civil público sobre o antigo prédio do DOPS.

“Existe um interesse histórico por si só na compreensão das instituições que organizavam a repressão, de modo a entender o período”, afirma Araújo. “Além disso, há elementos que compõem um quebra-cabeça de violências do passado”, complementa.

Nesse sentido, o procurador avalia positivamente o trabalho dos voluntários. “O grupo de trabalho tem prestado uma grande contribuição ao inquérito, pois oferece uma avaliação do cenário encontrado e, ao mesmo tempo, constrói a solução, garantindo a preservação da documentação”, pontua.

O Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, APERJ, futuro destinatário da documentação e que tem fornecido orientações técnicas e suporte material desde o início dos trabalhos, também reconhece o interesse público na documentação. 

“A documentação localizada no prédio da rua da Relação já cumpriu o seu valor primário, seu valor administrativo”, disse o órgão ao Intercept, em nota. “Ao reconhecê-la como um conjunto documental complementar à documentação recolhida ao APERJ, reconhecemos também, agora, o seu valor histórico”, acrescenta. 

O texto ainda cita que os documentos produzidos entre 1907 e 1983 “integram o conjunto de documentos custodiados no APERJ e devem ser recolhidos à instituição”.

A iniciativa ainda angariou apoio na esfera federal. O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, MDHC, por meio da Assessoria Especial de Memória, Verdade e Defesa da Democracia, tem acompanhado o desenrolar do inquérito. O ministério está buscando formas de apoiar as próximas etapas do trabalho com a documentação. 

O esforço do MDHC converge com o do Arquivo Nacional, explica Luciana Lombardo, que hoje chefia o Centro de Referência Memórias Reveladas. “O Arquivo Nacional se dispôs a apoiar com capacitação, treinamentos e oficinas”, destaca. 

Ela ressalta que, durante os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, o Arquivo foi fundamental para apoiar pesquisadores e consultores do órgão. Também avalia que essa expertise no trato de documentos da ditadura deve ser colocada à disposição da nova força-tarefa.

 

Fonte: Por Lucas Pedretti, em The Intercept

 

A falência da profissão de professor

As evidências são claras e incontornáveis: a profissão docente caminha, a passos largos, para a falência. Em 2018, o Brasil amargou a última posição no ranking global de status do professor, segundo levantamento da Varkey Foundation, publicado no portal G1.

Desde então, o cenário não só permanece crítico como se agravou, refletindo um projeto estrutural que desvaloriza quem ensina. Professores da educação básica seguem mal remunerados, expostos à violência e sem o mínimo de reconhecimento social ou condições materiais adequadas para exercer sua função. Por que, afinal, uma das profissões mais estratégicas para o futuro coletivo é tratada como descartável?

Em 2025, mais de 79% dos professores disseram já ter pensado em abandonar a carreira, segundo reportagem da IstoÉ Dinheiro. É alarmante, mas não surpreende. Os motivos? Baixos salários, condições precárias, violência simbólica e física, invisibilidade política. De novo, não são apenas números: são sintomas de um projeto que naturaliza a desvalorização estrutural de quem educa.

Os sinais estão por toda parte. Sou obrigado mais uma vez a insistir em minhas teses. No artigo “Sem rodeios: os professores ganham muito mal”, publicado no ICL Notícias em 13 de novembro de 2024, apontei o óbvio que o discurso oficial insiste em contornar: sem valorização real do trabalho docente, qualquer discurso sobre melhoria da educação é farsa. Não há dignidade possível na profissão que obriga seus profissionais a viverem em constante estresse financeiro, emocional e físico.

É nesse contexto que ONGs como Todos pela Educação, dentre outras, se tornam protagonistas do debate público, ocupando espaços de formulação sem jamais pisarem no solo concreto das escolas públicas brasileiras e suas salas de aulas precárias. Recebem milhões, sem enfrentar o calor escaldante daqueles ambientes superlotados e nem o desprezo institucional que se tornou norma.

Em artigo recente (“A tragédia da superlotação nas escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, no ICL em 18 de março de 2025), discuti o absurdo de crianças e professores confinados em salas com altas temperaturas, típicas de nosso verão — e ainda se espera que esses corpos suados e exaustos produzam excelência pedagógica.

A falência da profissão docente não é fruto do acaso. É o desdobramento coerente de um sistema que, como bem analisou Michel Foucault, disciplina os corpos para garantir a manutenção da ordem social. Nesse modelo, a educação pública — e com ela seus principais agentes, professores e alunos — deve ser domesticada, não emancipada.

Quando um docente recusa essa lógica de submissão, ergue a voz, denuncia as contradições estruturais e propõe caminhos de transformação, torna-se alvo. Pode ser silenciado, transferido compulsoriamente para outra unidade no ano letivo seguinte ou, mais frequentemente, simplesmente ignorado pelo aparato burocrático que finge escutá-lo.

Paulo Freire perseverava na ideia de que ensinar é um ato político. A recusa em garantir salários decentes e condições básicas é, portanto, uma declaração política. Um ataque às possibilidades de emancipação que o ato educativo carrega. Ao desvalorizar o professor, desarma-se a crítica. Ao abandonar a escola, neutraliza-se o pensamento.

Insisto, é preciso dizer com todas as letras: não há reconhecimento efetivo sem aumento salarial real. Esse foi o ponto central do artigo “Valorização dos professores sem aumento real de salário, é isso mesmo?” (ICL Notícias, 15 de janeiro de 2025). As promessas de reconhecimento, planos de carreira e bonificações condicionadas a metas absurdas são migalhas travestidas de política pública. Dignidade profissional que não aparece no contracheque é só propaganda.

Gramsci alertava para o papel dos intelectuais orgânicos na transformação social. Mas no Brasil de hoje, quem ainda escuta os professores — os verdadeiros intelectuais orgânicos da educação básica? As vozes autorizadas continuam sendo as dos “especialistas” de terno, das fundações empresariais e dos influencers educacionais que jamais pisaram em sala de aula num bairro periférico. A quem serve esse silenciamento?

Pierre Bourdieu demonstrou que a escola tende a reproduzir as estruturas de dominação social. Mas o que acontece quando o professor, peça central nesse processo, entra em colapso? Quando já não suporta, já não aguenta, já não encontra forças para continuar?

Um sistema que se alimenta da precariedade só pode se sustentar pela exploração e pela culpa. Se o aluno não aprende, a responsabilidade recai sobre o docente; se é bem-sucedido, as secretarias de Educação correm para capitalizar o feito na imprensa. Mas quem responsabiliza o Estado por não oferecer sequer o mínimo necessário para o trabalho pedagógico acontecer?

Já em “Sala de aula, um lugar perigoso” (ICL Notícias, 22 de março de 2025), discutiu como a violência contra os professores se tornou banalizada. Não apenas as agressões físicas ou verbais, mas a violência institucional de ser jogado em contextos hostis, com turmas de 40 alunos, sem ventilador, sem apoio, sem reconhecimento. Isso não é acaso. É a expressão planejada de um modelo excludente.

O historiador Edward P. Thompson, que além de seus estudos sobre a formação cultural da classe operária inglesa foi também professor de trabalhadores adultos, ensinou-nos a compreender a classe a partir da experiência vivida. E a experiência dos professores brasileiros, hoje, é de angústia, esgotamento e abandono.

A cada semestre, mais docentes adoecem. A cada ano, corremos o risco de talentos se afastam da profissão. Muitos entram com licenças médicas, desgastados física e emocionalmente, o que desfalca ainda mais as escolas. A cada discurso oficial, acumula-se mais cinismo, travestido de reconhecimento.

Em pesquisa intitulada Perfil e Desafios dos Professores da Educação Básica no Brasil, divulgada em 8 de maio de 2024 pelo Instituto Semesp e publicada na reportagem “Oito em cada dez professores já pensaram em desistir da carreira”, da IstoÉ Dinheiro, revelou que 79,4% dos docentes já consideraram abandonar a profissão.

O levantamento, realizado entre os dias 18 e 31 de março com 444 professores de todas as regiões do país, aponta como principais fatores o baixo retorno financeiro, a ausência de reconhecimento, a sobrecarga de trabalho e a violência escolar. Mais da metade dos entrevistados (52,3%) relataram ter sido vítimas de agressões verbais, intimidações, assédio moral, injúria racial e ameaças — muitas vezes praticadas por alunos, responsáveis e até colegas de trabalho.

Ainda assim, a matéria tende a revestir essa tragédia com possíveis elogios à “vocação” do professor. Ao exaltar a persistência individual (talvez “resiliência”), o texto apaga o papel do Estado e reforça a lógica meritocrática que isenta os responsáveis pelas políticas públicas.

Não se trata de desconhecimento, mas de fidelidade ideológica: o capital, sobretudo o financeiro, não deseja professores pensantes, deseja técnicos obedientes. Não quer sujeitos críticos, mas “operários” silenciosos. Reduz a educação a um braço da produtividade, e a docência a um mecanismo de controle social.

É preciso compensação justa, jornada humana, espaço de escuta e reconstrução da autoridade docente. É preciso romper com o cinismo tecnocrático que fala em “inovação pedagógica” sem ouvir os profissionais que sustentam, com o próprio corpo, o frágil edifício da escola pública. Nada mudará enquanto o professor for tratado como uma peça substituível num sistema que lucra com a precarização. A crise da profissão docente não é colateral — é central. E se nada for feito com urgência, não será apenas o professor que faltará à escola. Será a própria escola que deixará de cumprir seu papel civilizatório.

¨      Novas promessas para os professores: será que agora vai?

Anunciar um programa federal para professores parece louvável — é claro. Mas diante do cenário crônico de desvalorização, isso pode soar, para a categoria, como uma medida paliativa. É como usar um balde d’água para apagar um incêndio na floresta.

Lançado com certa euforia pelo governo federal em 24 de janeiro de 2025, o programa “Mais Professores para o Brasil” é de adesão voluntária e sem força obrigatória legal — tanto para professores quanto para as redes públicas de ensino básico. Pretende alcançar cerca de 2,3 milhões de docentes da educação básica, com ações como formação inicial e continuada, bolsas de estudo, estímulo à permanência em áreas vulneráveis e parcerias com universidades públicas. Um dos destaques é a Bolsa Mais Professores: R$ 2.100 mensais, além da remuneração local, vinculada à participação em curso de pós-graduação lato sensu em áreas pedagógicas e voltada à atuação em regiões com carência docente.

Anunciou-se também, naquela ocasião, um reajuste de 6,27% no Piso Salarial Profissional Nacional do magistério público da educação básica, elevando-o para R$ 4.867,77, referente a 40 horas semanais (e, convenhamos, não é lá essas coisas). Contudo, sua efetiva aplicação ainda depende da adesão e do comprometimento de estados e municípios.

O novo programa apresenta, por exemplo, a Prova Nacional Docente, de caráter diagnóstico e voluntário, que poderá servir como referência futura para concursos públicos, a critério das redes. Mas não há exigência para que realizem seleções públicas para contratação de professores, tampouco sanções para quem descumprir o piso. Assim, tudo permanece no plano das intenções.

Falar em valorização, portanto, sem garantir o cumprimento do piso nacional torna tudo apenas discurso. Há estados e municípios que ignoram a legislação, persistindo na omissão. Nesse contexto, o Ministério Público tem o dever constitucional de agir com rigor, baseado especialmente no artigo 127 da Constituição Federal (que o define, dentre outras, na ação e na defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais) e na Lei nº 11.738/2008 (que regulamenta o Piso Nacional do Magistério), fiscalizando e cobrando judicialmente dos gestores locais o cumprimento efetivo do piso, assegurando, assim, que os direitos dos professores sejam respeitados na prática.

Piorando o quadro, em diversas escolas públicas Brasil afora falta até giz. Não raro, docentes adoecem, dobram jornadas e improvisam aulas em salas com 40 estudantes ou mais. Quando um professor ou uma professora falta, em algumas ocasiões colegas são pressionados a assumir duas turmas já superlotadas em uma só sala. O programa federal fala em valorização, mas ignora esse cotidiano precário em que nem o básico está garantido.

Em artigos anteriores publicados neste espaço, tratei de questões centrais sobre a educação pública. Apenas para citar dois exemplos: em 18 de março de 2025, no artigo “A tragédia da superlotação nas escolas públicas brasileiras e o descaso com a educação”, abordei como salas superlotadas configuram violência simbólica contra professores e estudantes. Já em 13 de novembro de 2024, no texto “Sem rodeios: os professores ganham muito mal”, denunciei a ampliação da jornada docente sem a justa compensação salarial. Esses registros permanecem acessíveis, e os problemas, infelizmente, também.

As gestões estaduais e municipais seguem terceirizando a culpa. Jogam para o governo federal a responsabilidade, mesmo quando são elas que, na maioria das vezes, reiterando, desrespeitam o piso. E aí, a estrutura federativa, nesse campo, se mostra disfuncional.

O programa federal “Mais Professores para o Brasil”, portanto, se apresenta mais como um conjunto de incentivos do que como uma política pública com força vinculante. Sem mecanismos concretos para cobrar sua execução, as propostas correm o risco de permanecer distantes da realidade concreta das escolas e da rotina exaustiva dos professores.

Ainda que bem-intencionado, o plano ignora a raiz da crise: o sistema que esgota a docência e empobrece quem sustenta nos ombros a escola pública. Não há futuro promissor com salários baixos e desrespeito institucionalizado.

Enquanto os salários forem tratados como despesa e não como investimento, qualquer projeto fracassará. Sem atacar os interesses econômicos que sustentam essa lógica, resta o vazio das solenidades.

É fácil celebrar políticas em Brasília. Difícil é garantir que cheguem às periferias de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, Altamira, no interior do Pará, ou Feira de Santana, no sertão da Bahia; aos rincões de Manacapuru, no Amazonas, Santana do Ipanema, em Alagoas, São Raimundo Nonato, no semiárido do Piauí, às salas precárias de Eldorado dos Carajás, também no Pará, ou Coronel Sapucaia, na fronteira de Mato Grosso do Sul. É lá que a profissão se desfaz diante do abandono.

Nas promessas governamentais, sempre falta algo: coragem para enfrentar as raízes estruturais. O que parece novidade muitas vezes é reaproveitamento. Iniciativas recicladas sob novas siglas e slogans.

Quando o ministro da Educação, Camilo Santana, fala em “grande pacto nacional” (como declarou em audiência pública no Senado, no dia 16 de abril de 2024, ao defender a reforma do ensino médio — que não poucos professores rejeitam), lembro-me, enquanto professor de História, de quantos pactos fracassaram. Historicamente, os únicos que deram certo foram acordos entre as “elites”, como a “política dos governadores” na República Velha, eficaz por atender aos interesses dominantes. Pactos que envolvem direitos da classe trabalhadora, como os dos professores, não prosperam sem compromisso real com a dignidade de quem ensina.

O tempo do improviso acabou. O que professores querem é salário digno, jornada justa e segurança. Isso não se resolve apenas com programas que não enfrentam a lógica que explora o trabalho docente.

As medidas recentes voltadas à educação pública merecem reconhecimento, mas é preciso ir além das boas intenções. Talvez seja hora de considerar propostas mais ousadas, como a federalização dos salários dos docentes da educação básica (sugestão que ouvi do professor carioca André Tenreiro). A medida poderia garantir equidade salarial, reduzir desigualdades regionais e conferir maior dignidade à profissão. Afinal, a educação não se transforma apenas com discursos — por melhores que sejam —, mas com coragem para mudanças estruturais efetivas.

 

Fonte: ICL Notícias

 

Cursos de medicina se tornaram um negócio no Brasil?

A crítica de que a medicina se tornou um "negócio" é antiga, mas a grande expansão de cursos da área no Brasil nos últimos anos tem gerado preocupação entre especialistas e reguladores, que temem que a qualidade do ensino possa ser comprometida.

Desde 1990, a quantidade de faculdades de medicina no país quintuplicou, grande parte dessa ampliação ocorre no setor privado. Atualmente, há 390 faculdades de medicina no Brasil. Hoje, mais de 80% do ensino na área é privado, com vagas nos cursos avaliadas em milhões diante das altas mensalidades.

Em 2013, buscando ampliar a proporção de profissionais de saúde na população, o governo federal lançou o Mais Médicos, que tinha como um dos componentes incentivos para a abertura de vagas em instituições de ensino de medicina. O programa estimulou ainda mais o setor.

A forte concorrência para o ingresso nas faculdades públicas fez com que a demanda por vagas nas faculdades privadas fosse significativa. Atualmente, 175 mil estudantes estão matriculados em cursos particulares, que movimentam cerca de R$ 26,4 bilhões por ano, o equivalente a 40% do mercado de ensino superior.

Em relatório a clientes, os analistas do BTG Pactual Samuel Alves, Yan Cesquim e Marcel Zambello apontam que, historicamente, cada vaga aberta nestes cursos esteve avaliada entre R$ 2 e 3 milhões para o mercado, com a média das mensalidades cobradas dos alunos em R$ 10 mil.

  • Gigantes do setor

As somas abriram espaço para o surgimento e a expansão de gigantes do setor como Ânima, YDUQS e Afya. A última, criada no Tocantins em 1997, abriu capital na bolsa nova-iorquina Nasdaq em 2019, e, desde então, fez aportes bilionários. Nos três anos seguintes, a companhia, hoje controlada pelo grupo alemão Bertelsmann, investiu R$ 3,2 bilhões na compra de dez faculdades de medicina, se consolidando como a maior do Brasil no ramo.

Enquanto outras áreas sofreram nos últimos anos com uma queda na demanda por cursos superiores, a medicina se manteve com forte procura. Na visão de Bruno Luciano de Oliveira, pesquisador da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e autor de uma série de estudos no tema, o status conferido pelo curso, um mercado de trabalho menos competitivo e a maior possibilidade de escolher seus rendimentos após a formação, ajudam a explicar o apelo.

  • Restrição e judicialização do ensino

Em 2018, o Ministério da Educação (MEC) suspendeu a publicação de novos editais para criação de cursos de medicina durante cinco anos e o pedido de aumento de vagas em cursos já existentes, argumentando que as metas para expansão já haviam sido atingidas. Além disso, o governo afirmou que a iniciativa visava garantir a qualidade do ensino.

Desde então, parte importante das decisões sobre a operação das faculdades passou ao âmbito judicial. Sem a autorização do Ministério, muitas instituições recorreram a tribunais para oferecer seus cursos, com liminares permitindo a atuação em uma série de casos.

Em 2024, o MEC chegou a notificar seis universidades pela oferta de cursos sem autorização, com as faculdades realizando vestibulares com base em decisões judiciais provisórias. No ano passado, 6,3 mil vagas foram criadas no país, sendo 3,5 mil por meio de liminares.

Mario Roberto Dal Poz, professor no Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), crítica a instância judicial como forma de determinar quais instituições podem operar. "Quando o tema chega à justiça, muitas vezes se acaba permitindo a abertura", aponta, sem que necessariamente os melhores critérios para a qualidade do ensino sejam observados.

Procurado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não se manifestou sobre o tema. Já a Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP) preferiu não se pronunciar devido ao fato de o julgamento da questão ainda estar em aberto.

  • Busca por melhores critérios

A expansão na rede privada no setor foi uma realidade nos últimos anos ao redor do mundo, ainda que em ritmo reduzido, apontam especialistas. A cobrança no caso brasileiro é por maior verificação na qualidade, afirma Oliveira. "Não é uma política contra o mercado, e sim por uma boa definição de critérios. Inclusive, há boas experiências na iniciativa privada no país", pontua.

A forma pela qual a operação nas faculdades é aprovada no país é fonte de grandes críticas no setor. "Falta transparência no caso do Brasil. Muitas vezes nos processos não se sabe muito sobre as tomadas de decisões", afirma Dal Poz.

Na última semana, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) informou que pretende mudar a forma como os cursos da área da saúde serão avaliados in loco. As primeiras propostas já foram finalizadas e incluem visitação de universidades por avaliadores para analisar as práticas de formação dos estudantes.

Atualmente, parte relevante da avaliação nos cursos é baseada no Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), feito após o final da graduação. Especialistas avaliam que o ideal seria um acompanhamento por etapas, o que facilitaria eventuais correções durante o ensino.

Uma proposta frequente é a de que os formados no curso tenham que prestar uma espécie de exame de ordem para exercer a profissão, assim como ocorre no caso do direito com a prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Por sua vez, Dal Poz vê a possibilidade como "muito limitante" para os que não conseguirem a aprovação.

  • Excesso de oferta?

O suposto excesso de oferta é uma questão que tem causado preocupação entre potenciais alunos e investidores do setor nos últimos anos.

Entre os futuros estudantes, a possibilidade de fazer um alto investimento, que com frequência ultrapassa os R$ 500 mil, e ter dificuldades de conseguir uma remuneração compatível vem fazendo muitos ponderarem. Em sites sobre o tema e no Youtube, há uma série de conteúdos respondendo se "ainda vale a pena fazer medicina".

Oliveira lembra que, muitas das vezes, os estudantes terminam o curso com dívidas consideráveis, algo que levanta ainda mais preocupação em um cenário de altas taxas de juros. Ele lembra que é possível que a "grande expansão na mão de obra interfira nas remunerações", algo que aconteceu em outros cursos superiores nos últimos anos.

No relatório do BTG Pactual, produzido no final de 2024, o tema já aparecia como uma potencial razão para investidores não se sentirem otimistas com o setor. Segundo a publicação, as vagas poderiam cair a uma valorização entre R$ 1 e 2 milhões, justamente com um possível aumento da oferta. No conteúdo, os autores citam as faculdades que estavam cobrando mensalidades de R$ 7 mil, uma queda em relação aos períodos anteriores, o que acende o alerta para a continuidade da expansão do negócio.

 

Fonte: DW Brasil

 

Thiago Flamé: O golpe de 1964 revisitado - não esquecemos, não perdoamos

Nesta nota queremos muito mais do que relembrar os atos heróicos e a disposição combate de marinheiros, operários, camponeses e estudantes, que tinham todas as condições de enfrentar e vencer a ofensiva militar golpista. A grande homenagem que podemos fazer a esses lutadores é aprender e tirar as lições da sua derrota.

Para enfrentar o golpismo só podemos contar com nossas próprias forças, nenhum dispositivo militar ou judicial do estado capitalista pode afastar a ameaça golpista, ou, trazendo para o nosso presente, derrotar a extrema direita. Para um balanço aprofundado dos acontecimentos que levaram ao golpe de 1964 indicamos a leitura do texto “O processo revolucionário que culmina no golpe de 64 e as bases para a construção de um partido revolucionário no Brasil”

·        Era possível derrotar o Golpe de 1964

Primeiro de abril de 1964, um destacamento de marinheiros que se reagrupam depois que Jango, já em fuga para o Uruguai, depõe as armas, vivem um impasse dramático. Morrer lutando e deixar gravada em sangue para a posteridade sua disposição de combate ou depor as armas e se entregar? Haviam passado a madrugada e os dias anteriores preparando a resistência para o golpe que se organizava à luz do dia. Se dispunham a distribuir as armas do arsenal da Marinha entre operários e estudantes e formar destacamentos de combate. As ordens esperadas nunca vieram e já não havia mais esperança de combate quando decidiram se render frente à iminência da chegada do corpo militar conduzido por Mourão, com 50 mil soldados, que teria esmagado o destacamento de alguns milhares de marinheiros e suas armas obsoletas.

Do outro lado, entre os generais, ainda no dia 31, Castelo Branco tentava retardar o avanço das tropas de Mourão que vinham de Minas Gerais. Temia-se que o seu avanço descoordenado abrisse brechas que Jango poderia aproveitar. Como se sabe hoje, a IV Frota dos EUA havia enviado um porta-aviões rumo à costa carioca, preparado para dar apoio aos golpistas, se programando para um longo conflito. A resistência legalista esperada em ambos os lados não ocorreu e, ao fim do dia 1º de abril, Jango já estava no Rio Grande do Sul, a caminho do seu exílio uruguaio.

·        O Fracasso do “dispositivo militar” de Jango e da Frente Ampla de 1966

Não foi nenhum fator surpresa ou habilidade especial das Forças Armadas brasileiras os responsáveis pelo total fracasso do governo de João Goulart na defesa da ordem constitucional. Nem, tampouco, qualquer falta de apoio popular, dado que as pesquisas mostravam um grande apoio ao seu governo e um apoio maior ainda às reformas de base. O que explica então a derrota vergonhosa do trabalhismo e do nacional-desenvolvimentismo em 1964?

O governo de João Goulart ficou paralisado frente ao avanço das tropas golpistas em função das suas próprias contradições. Seu governo buscava se apoiar em setores da burguesia supostamente nacionalista e nas alas militares varguistas, o chamado “dispositivo militar”, articulado em torno do general Amaury Kruel, comandante do II Exército em São Paulo. As condições para um contra-ataque que deixaria os golpistas numa situação difícil estavam colocadas. Só que o dispositivo militar não somente falhou, como passou inteiro para o lado do golpe e a burguesia nacionalista, a favor de quem o governo acreditava estar, na verdade não passava de uma ilusão.

As únicas forças efetivas para barrar o avanço da contrarrevolução eram as forças das massas, do processo revolucionário em curso desde 1961. A revolta dos marinheiros em 25 de março mostrou um amplo apoio popular. Inclusive colocou em questão a disciplina militar das tropas chamadas a reprimi-la e fez os generais temerem as consequências de um conflito aberto. A solução conciliatória permitiu ao Almirantado restabelecer seu comando que havia sido abalado e a revolta que assustou as cúpulas militares terminou por convencer o alto oficialato de que era o momento de agir.

Depois de consolidado o golpe, desmantelado brutalmente o movimento das ligas operárias, com os sindicatos sob intervenção e as bases das Forças Armadas expurgadas dos setores mais rebeldes, em 1966, as forças burguesas depostas em 1964 ainda tentaram a organização de uma frente ampla, com Jango, JK, Brizola e… Carlos Lacerda. Seu peso foi nulo e caiu no esquecimento. O grande movimento de resistência contra ditadura, que entrou para a história e inspira as novas gerações, foi o movimento estudantil, desmantelado somente em 1968.

·        A falência da conciliação de classes do PCB e as lições da derrota

balanço de Caio Prado Júnior sobre o golpe é sintomático da bancarrota do velho partidão e do beco sem saída em que entrou a estratégia etapista do PC em 1964. Apesar de não reconhecer nenhuma burguesia nacionalista, como fazia o PCB, Caio Prado se mantinha nos marcos da concepção etapista. Segundo essa visão - tributária do stalinismo e mais aproximada a do velho menchevismo do que da atuação de Lenin e do Partido Bolchevique na Revolução Russa - nos países atrasados e de origem colonial a primeira etapa da revolução seria democrática, baseada na aliança entre a classe trabalhadora e a burguesia nacionalista. A derrota não levou à revisão dessa teoria equivocada, mas a jogar a culpa na radicalização das massas, que teria sido um obstáculo à aliança com a burguesia e provocado a contrarrevolução.

Já na época, o PCB passou por grandes rupturas, especialmente na juventude, que seguiram o caminho da luta armada. Porém, sem tirar todas as conclusões da derrota, enveredaram pelo caminho da guerrilha, pelo voluntarismo do foco guerrilheiro, abandonando a luta de massas. Foi uma geração corajosa e determinada, mas seus esforços esbarram nos limites de uma estratégia equivocada, vanguardista e voluntarista. A guerra é, e continua sendo, a continuação da política por outros meios. Não era possível superar apenas o pacifismo partidão sem ir até o fim na crítica à sua ilusão numa burguesia progressista

·        É preciso trilhar um novo caminho

Voltando aos dias de hoje, é preciso reconhecer que resta pouco das velhas ilusões do partidão. O próprio surgimento do PT no fim dos anos setenta era resultado da busca da classe trabalhadora por uma organização de classe própria, independente de qualquer fração das classes dominantes. A ideia de uma burguesia nacionalista só sobrevive nos livros de história, como um trágico erro.

Hoje a ideologia da conciliação de classes não é mais a do nacionalismo burguês e da revolução por etapas, primeiro democrática e popular e depois socialista e operária. O petismo, que nasceu do esforço da classe operária em superar o velho partidão e sua subordinação à burguesia, reproduz por outros caminhos a velha política de conciliação de classes.

O partidão apoiava sua política de conciliação de classes no otimismo em relação a frações da burguesia, esperando que pudessem se aliar com o movimento de massas contra o imperialismo. Já o PT apoia completamente sua capitulação no ceticismo em relação à capacidade da classe operária. Sem prometer nenhum futuro redentor, a confiança no STF e outras instituições do Estado para combater o golpismo e o bolsonarismo se apóia simplesmente no “é o que tem pra hoje”, o chamado menos pior. Nisso não inventam nada novo, por caminhos diferentes chegam na mesma estratégia derrotista.

O stalinismo em decomposição nos anos setenta - do PCB, PCdoB - condenou as greves operárias e chamava a apoiar o ditador Geisel e sua abertura controlada, como um mal menor frente à linha dura militar, que teve como líder ninguém menos que o irmão mais velho de Ernesto, o também general Orlando Geisel. Hoje são os dirigentes da CUT, que surgiram desafiando o discurso derrotista, quem impulsiona esse discurso, sufocando a luta de classes em nome da governabilidade e confiando no “dispositivo judicial” do STF como o grande dique de contenção contra a extrema direita bolsonarista e militar. A direção do PT segue integralmente o conselho de não assustar a burguesia e toma em suas mãos a tarefa de aplicar os ajustes e os ataques que ela demanda. Dessa forma, como dizemos e não cansamos de repetir, enfraquece a classe trabalhadora e abre caminho para a extrema direita.

A classe trabalhadora foi além dessa estratégia da passividade em 1964, foi além dela ao retomar o caminho da luta de classes para enfrentar a ditadura nos setenta e oitenta e ao fundar o PT. Hoje mais uma vez começa a mostrar que não conterá suas mobilizações no estreito limite da estratégia eleitoral do mal menor. As lições do golpe de 1964 e do fracasso da Frente Ampla de 1966 são parte do arsenal de experiências da classe operária no Brasil, que precisam ser retomados na luta pela construção de uma alternativa política à esquerda do PT, que não repita os erros do passado.

¨      Os escândalos de corrupção do general que promoveu almoço para comemorar o golpe

No último dia 31 de março, o Clube Militar do Rio de Janeiro, presidido pelo general da reserva Sérgio Tavares Carneiro, promoveu um almoço para “rememoração” do golpe militar de 1964, ato que gerou forte repúdio por sua natureza antidemocrática.

A escolha da data e a realização do evento em um local de grande simbolismo militar causaram indignação, especialmente considerando o histórico de Carneiro. O general ocupou cargos de alta relevância e chegou a ser o presidente da Fundação Marechal Roberto Trompowsky Leitão de Almeida, ligada ao Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), que esteve no centro de escândalos de corrupção que vieram à tona na última década.

Investigações conduzidas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pelo Ministério Público Federal (MPF) revelaram que a Fundação Trompowsky desviou sua finalidade original para obter contratos milionários com o governo federal, estados, municípios e instituições privadas.

Levantamentos da Agência Sportlight, baseados em dados do Portal da Transparência, apontam que a Fundação Trompowsky firmou contratos que somam mais de R$ 35 milhões apenas com o governo federal, no período entre 1999 e 2017.

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Em 2021, a má gestão dos militares levou a entidade à beira da extinção, com dívidas acumuladas que ultrapassaram os R$ 51 milhões. Na época, bens da organização, como computadores e móveis, chegaram a ser penhorados para o pagamento de dívidas trabalhistas. O GGN relembra os escândalos da Fundação Trompowsky, com base nos dados do Sportlight. 

  • R$ 600 milhões em licitação fraudada 

Um dos casos mais emblemáticos sobre a Fundação Trompowsky envolve uma licitação de R$ 600 milhões da Secretaria de Meio Ambiente do Pará (SEMA-PA), que a instituição vendeu em 2010. 

Para isso, os generais da reserva manipularam o estatuto da fundação, permitindo que ela atuasse na área ambiental. No entanto, o contrato foi anulado pela própria SEMA-PA um ano depois, devido a evidências de fraudes.

A Justiça Federal, após denúncia do MPF, identificou diversas irregularidades na gestão da Fundação Trompowsky, desde desvio de finalidade, desvio de recursos, prática de atos ilícitos e falta de prestação de contas. Em 2014, a fundação foi descredenciada como entidade de apoio ao Exército.

Após as irregularidades serem descobertas, os generais da fundação ainda tentaram transferir o contrato da SEMA-PA para uma empresa recém-criada, a “Ambiente Natural Inspeção Veicular SPE Ltda“, que tinha como sócios ex-diretores da Fundação Trompowsky. 

  • Fraude em concurso em Rio das Ostras escancara impunidade 

Em 2011, a Prefeitura de Rio das Ostras também contratou a Fundação Trompowsky, desta vez para organizar um concurso público, mesmo sem a organização ter participado da licitação. A decisão gerou estranheza, com a justificativa de que a fundação apresentava a “melhor proposta técnica e financeira“.

A Fundação Trompowsky recebeu mais de R$6 milhões (90% do valor arrecadado com as inscrições) pelo serviço. No entanto, o concurso foi anulado após denúncia do MPF, que apontou diversas irregularidades, como dispensa de licitação ilegal, fraudes durante as provas e favorecimento pessoal na divulgação dos resultados.

Há um padrão nos casos de corrupção envolvendo as  fundações ligadas ao Exército: enquanto outros envolvidos são punidos, os generais escapam de responsabilização direta. No caso do concurso público fraudulento em Rio das Ostras, servidores municipais e a Fundação Trompowsky foram condenados, mas os generais que comandavam a organização não foram responsabilizados individualmente.

A Justiça justificou a ausência de punição aos generais com a alegação de que não havia provas de que eles tivessem participado diretamente das fraudes, induzido outros a cometê-las ou se beneficiado financeiramente do esquema. Assim, a condenação recaiu sobre a fundação como pessoa jurídica e sobre os servidores municipais como pessoas físicas, enquanto os generais ficaram impunes.

  • Atuação conjunta fraudulenta 

Os processos da Fundação Trompowsky também envolvem a Fundação Ricardo Franco, que prestou apoio ao Instituto Militar de Engenharia (IME) e firmou convênios com o Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (DNIT), quando Tarcísio de Freitas (Republicanos) era ministro da Infraestrutura – caso já exposto pelo jornalista Luís Nassif

Ainda em 2011, as entidades uniram forças para cometer fraudes em contratos relacionados aos 5º Jogos Mundiais Militares (JMM) no Rio de Janeiro, que custaram R$ 1,27 bilhão aos cofres públicos e  serviram como um “laboratório de testes” para os Jogos Olímpicos de 2016, com a participação de empresas e indivíduos envolvidos em ambos os eventos, incluindo membros da “República de Mangaratiba”, grupo ligado ao ex-governador Sérgio Cabral.

Neste caso, o TCU identificou irregularidades como superfaturamento, licitações fraudulentas e desvio de recursos públicos nas obras de reforma e construção de instalações esportivas para o evento.

Dois protagonistas do governo de Jair Bolsonaro (PL), os generais Augusto Heleno e Joaquim Luna e Silva, também foram considerados culpados pelo TCU por irregularidades em convênios com as fundações, embora as multas tenham sido posteriormente anuladas. 

Na esfera da Justiça Militar, um Inquérito Policial Militar (IPM) não encontrou indícios de crimes, e o caso foi arquivado.

¨      STF antecipa julgamento do “núcleo 2” da trama golpista

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) agendou para os dias 22 e 23 de abril o julgamento da denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o chamado “núcleo dois” acusado de tentativa de golpe de Estado em 2022. As sessões foram antecipadas em uma semana em relação à data inicialmente prevista.

Segundo a PGR, este núcleo teria atuado de forma coordenada para impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vitorioso nas eleições que derrotaram o então presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL). 

São apontados como membros do grupo ex-assessores do ex-presidente, ex-secretários, militares e o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF). São eles:

  • Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais de Bolsonaro);
  • Marcelo Câmara, ex-assessor de Bolsonaro;
  • Silvinei Vasques, ex-diretor da PRF;
  • Mário Fernandes, general do Exército;
  • Marília de Alencar, ex-subsecretária de Segurança do Distrito Federal;
  • Fernando de Sousa Oliveira, ex-secretário-adjunto da Secretaria de Segurança do Distrito Federal.

Os seis denunciados são acusados pelos crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, envolvimento em organização criminosa armada, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

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A análise da denúncia caberá à Primeira Turma do STF, composta pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, pelo presidente do colegiado, ministro Cristiano Zanin, e pelos ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Flávio Dino. Nesta etapa, os ministros irão deliberar sobre o recebimento ou não da denúncia, decidindo se abrem uma ação penal contra os acusados.

Ao todo, foram convocadas três sessões de julgamento. A discussão terá início na terça-feira, 22 de abril, com uma sessão extraordinária marcada para às 9h30. No mesmo dia, haverá uma segunda sessão no horário regimental das 14h. Uma terceira sessão extraordinária está agendada para a quarta-feira, 23 de abril, também às 9h30.

É importante ressaltar que, caso a Primeira Turma decida receber a denúncia, os acusados se tornarão réus, e terá início a fase de instrução processual. Nesta etapa, serão coletadas provas, e serão ouvidas testemunhas de defesa e acusação. 

A partir da decisão, cabe recurso à própria Turma. Posteriormente, o STF ainda realizará o julgamento no qual decidirá pela condenação ou absolvição dos réus, sem um prazo definido para ocorrer. Em caso de condenação, as penas serão estabelecidas individualmente, considerando o grau de participação de cada um nos crimes imputados.

 

Fonte: Esquerda Diário/Jornal GGN