Giorgio
Ferrari: A paz é apenas uma miragem. O retorno do genocídio em Gaza
"O
epicentro do novo caótico retumbar dos tambores da guerra ainda é
o Oriente Médio. Mas, apesar da importância crucial de Israel e
de seu difícil papel em um tabuleiro paralisado por vetos cruzados, que vê se
afastar aquele projeto conhecido como 'Acordos de Abraão', que antes do
fatídico 7 de outubro parecia ser capaz de abrir um futuro diferente, trata-se
apenas de uma peça no mosaico maior daquele Grande Jogo que nunca
parece ter fim", escreve Giorgio Ferrari, jornalista
italiano, correspondente internacional de Avvenire.
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Eis o artigo.
Si
vis pacem, para bellum. Para além do lema atribuído ora a Platão ora a Cornélio Nepos, a paz é um bom
negócio, mas a guerra é ainda mais. Isso é bem conhecido por todos os sátrapas
e autocratas do mundo, mas também é conhecido pelos líderes das desnorteadas
democracias ocidentais, que em atendimento a tal preceito estão se armando.
Porque a guerra e o caos são ingredientes milenares que tendem a fortalecer o
imobilismo de quem detém o poder, especialmente quando esse poder não é
sustentado pelo consenso. Nesse sentido, podemos ler com desolada apreensão a
retomada do conflito em Gaza e a nova pilha de mortos inocentes, a
retaliação estadunidense no Iêmen, a recusa caprichosa da liderança do Hamas em entregar um
refém israelense-americano aos Estados Unidos e os corpos de onze
americanos-israelenses que morreram em cativeiro após o sequestro de 7 de
outubro, o fracasso da segunda fase da trégua laboriosamente acordada
em Doha e o consequente endurecimento do
eixo Moscou-Pequim,
que imediatamente estendeu seu guarda-chuva protetor sobre o Irã e
seu programa nuclear civil.
O
epicentro do novo caótico retumbar dos tambores da guerra ainda é
o Oriente Médio. Mas, apesar da importância crucial de Israel e
de seu difícil papel em um tabuleiro paralisado por vetos cruzados, que vê se
afastar aquele projeto conhecido como “Acordos de Abraão”, que antes do
fatídico 7 de outubro parecia ser capaz de abrir um futuro diferente, trata-se
apenas de uma peça no mosaico maior daquele Grande Jogo que nunca
parece ter fim.
Um Grande
Jogo que envolve a todos, porque o que está em jogo é o Novus
Ordo que está lentamente tomando forma e que, junto com o rugido do
canhão, hoje percorre o fio das conversas telefônicas entre Donald Trump e Vladimir Putin. Dois campeões do
poder absoluto, o que Thomas Hobbes, no Leviatã,
proclamava como necessário para circunscrever o instinto de sobrevivência e
domínio que é inerente ao homem.
Todos
nós estamos envolvidos nesse jogo.
Desde
a Alemanha, que está se apressando para converter a achacada indústria
automobilística em uma industriosa manufatura de armamentos (mas não foi isso
que aconteceu há quase um século, depois de Versalhes?), até os
nacionalistas-soberanistas europeus que aplaudem
uma América neo-rooseveltiana, tomadora de decisões, impiedosa e
pragmática, devotada ao culto da força. E quando dizemos neo-rooseveltiana,
fazemos alusão não ao mais conhecido Franklin Delano, mas ao seu antecessor Theodore,
ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1906 (sic!), retratado no granito
do Monte Rushmore na companhia
de Washington,
Jefferson e Lincoln.
Bem ou
o mal, da perspectiva de uma paz duradoura voltamos mais uma vez para a arte
das armas e da força, as ferramentas favoritas daqueles que governam o mundo,
cada um com seu próprio estilo, alguns com soft power, outros com
gélida e elaborada astúcia, outros com veemência rude de um vendedor de trapos.
O
resultado é idêntico: é a ameaça de guerra que move as peças do jogo de
tabuleiro. No meio disso, há dezenas, centenas de mortes todos os dias. Ontem,
novamente em Gaza, onde a frágil trégua foi quebrada e já há mais de 400
mortos, mais de 100 crianças, e sabe-se lá por quanto tempo mais nas exaustas
trincheiras ucranianas.
Agora
será difícil juntar as peças do mosaico que, por algum tempo, brilhava como uma
miragem de paz a partir das várias mesas de conciliação do Egito,
do Catar e de Pequim. Agora as conciliações são feitas para compor
coalizões armadas. Por outro lado, além do tilintar dos sabres, é possível
ouvir o estalar frenético do ábaco que já está prometendo aos fabricantes de
armas vendas recordes, lucros sem precedentes e aumentos bilionários nos
pedidos que o rearmamento global impõe. “Precisamos desarmar as palavras para
desarmar as mentes e desarmar a Terra”. Essas são as palavras do Papa,
contidas na carta enviada ao diretor do Corriere della Sera, Luciano Fontana.
Mais
uma vez e por três vezes o Santo Padre usou um verbo que ninguém mais tem a
coragem ou a intenção de pronunciar: desarmar. E é aí que reside a vergonha de
todos nós.
¨
Washington abençoa a matança
Com o
total apoio de Donald Trump e com o substancial desinteresse da
Europa, focada apenas na questão ucraniana, Netanyahu lança o plano
final contra o Hamas. Em Gaza e na Cisjordânia. Um plano
que, em essência, soa assim: mísseis do céu e ofensivas terrestres até que os
militantes devolvam os 59 reféns israelenses, 24 dos quais se acredita estarem
vivos. O custo humano dos bombardeios, desde a quebra do cessar-fogo, já é
assustador: 710 palestinos mortos na Faixa de Gaza e 900 feridos em
48 horas, segundo o porta-voz do hospital Shuhada al-Aqsa. Ele acrescentou: "70% dos feridos são
mulheres e crianças, muitos deles gravemente feridos".
Os
detalhes táticos da operação militar foram aprovados ontem em uma reunião entre
o ministro da Defesa, Israel Katz, e o novo chefe do Estado-Maior,
general Eyal Zamir. “A pressão já está
afetando as posições do Hamas”, diz o
ministro. Zamir especificou até onde pretendem ir: "Quando
falamos sobre a derrota do Hamas, também nos referimos
à Judeia e Samaria." Que é o nome bíblico para
a Cisjordânia, onde as incursões das FDI nos campos
de Jenin e Tulkarem continuam.
A
libertação dos reféns deveria ser o assunto da discussão do Gabinete de
Segurança ontem, mas a sessão foi dedicada à votação da demissão do chefe dos
serviços de inteligência domésticos de Israel, Ronen Bar, que está investigando o dinheiro
do Catar que foi parar nas mãos de três assessores de Netanyahu.
Não é por acaso que o Primeiro-Ministro quer a sua cabeça.
Milhares
protestaram pelo segundo dia consecutivo em Jerusalém contra as
manobras políticas do chefe de governo e contra a decisão de quebrar a trégua
em Gaza. Houve momentos de tensão, a multidão foi dispersada com canhões
de água, um dos líderes da oposição, Yair Golan,
foi empurrado e caiu no chão. O presidente do estado judeu, Isaac Herzog,
diz estar "muito preocupado" e ataca diretamente Netanyahu:
"Ele está seguindo políticas divisivas, controversas e unilaterais, é
impossível retomar os combates e ao mesmo tempo não ouvir as famílias dos
reféns".
Em Gaza,
castigada por chuvas congelantes, as tropas israelenses já retomaram o controle
do corredor Netzarim, que divide a Faixa em duas, e bloquearam o
trânsito na Salah-al-Din, a artéria de ligação entre o norte e o sul . As
ordens de evacuação dizem respeito a áreas onde se estima que pelo menos
200.000 palestinos estejam presentes, metade dos quais já retomou sua jornada
em meio aos escombros e lama. As operações terrestres estão se expandindo no
norte e no centro de Gaza, com veículos blindados das IDF também
avistados nos bairros ao sul de Rafah. Cinco funcionários
da UNRWA e um cidadão búlgaro que estava no complexo
da ONU na Cidade de Gaza foram mortos nos ataques aéreos.
"O
presidente Trump apoia totalmente a retomada da ofensiva israelense
em Gaza", declarou a porta-voz da Casa Branca, Caroline Levitt,
reiterando o que está claro para todos. "Foi o Hamas que
escolheu brincar com vidas humanas através da mídia. Se eles não libertarem
todos os reféns, pagarão um alto preço." A guerra, portanto, recomeçou
como era antes do cessar-fogo declarado em 19 de janeiro. “Os comandantes e a
liderança política do Hamas”, relata uma fonte qualificada das IDF,
“serão caçados casa por casa, nós os eliminaremos um por um”.
Também
está claro para o Hamas, que de fato ontem, pela primeira vez desde
outubro passado, lançou três foguetes M90 de Khan Yunis contra Israel,
na área de Tel Aviv. Um foi destruído pelo sistema de defesa Iron Dome, dois caíram em
áreas desabitadas. No entanto, dois mísseis balísticos
iemenitas Houthi foram interceptados fora do território israelense,
disparando sirenes de ataque aéreo em Tel Aviv e Jerusalém.
A
delegação do movimento islâmico palestino, no entanto, não interrompeu os
contatos com os mediadores egípcios e catarianos envolvidos nas negociações
de Doha. Formalmente, elas ainda estão aberts, embora paradas.
¨
Israel e Hamas, a guerra das narrativas prosseguem e os
civis pagam a conta
A diretora
do Serviço Mundial da Federação Luterana Mundial (FLM), Maria Immonen, veio a público:
“As crianças da
Palestina e de Israel merecem
crescer em paz, não com medo e ódio. Como pessoas de fé, recusamo-nos a aceitar
que a violência é inevitável. A paz não é apenas possível: é o único caminho a
seguir”.
Em
declaração pública, a FLM expressou consternação e condenou o
rompimento do cessar-fogo em Gaza e a retomada dos ataques aéreos
israelenses. Condenou, também, o bloqueio de ajuda
humanitária à
população desalojada de seus lares. Civis devem ser protegidos, assegura o
organismo ecumênico, assim como todas a infraestrutura civil de Gaza.
Mas no
espectro religioso, há quem não enxergue os acontecimentos em Gaza dessa
perspectiva. Ex-professor de Direito na Harvard Law School, o Dr. Alan
Dershowitz lançou um manual de 64 páginas dirigido a um público-alvo – a
atual geração de estudantes universitários e do ensino médio dos Estados Unidos
–, sob o título The Ten Big Anti-Israel Lies and How to Refute them
with Truth (As dez grandes mentiras anti-Israel e como refutá-las
com a verdade).
O
manual foi elogiado e recomendado pelo ex-presidente do Seminário Evangélico do
Sul e ex-presidente da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da Convenção
Batista do Sul, Dr. Richard Lang, em matéria para o portal The
Christian Post.
“Este
livro – escreveu Lang – foi criado para ser, e é, uma ferramenta
poderosa para divulgar a verdade a uma geração mais jovem de americanos que
muitas vezes foram gravemente desinformados sobre o Oriente Médio em
geral e Israel em particular”.
Dershowitz diz
no manual que os terroristas
palestinos têm
usado civis como escudos humanos, até mesmo colocando quartéis militares e
esconderijos de armas em escolas e mesquitas. E destaca que em Gaza, “as
Forças de Defesa de Israel mataram menos civis em relação aos combatentes do
que qualquer nação na história que lutou contra terroristas que usam civis como
escudos humanos”. A comprovar!
Mas Dershowitz omite,
ou esqueceu de mencionar, por exemplo, que o terrorismo também foi o método
usado por quem lutava pela implantação de um Estado de Israel.
Assim,
em 22 de julho de 1946, terroristas da organização
sionista Irgun (Organização Militar Nacional), em ataque elaborado
por Menachem Begin, implodiu sete
andares da ala sul do Hotel King David, em Jerusalém, matando 91 pessoas –
28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e cinco de outras nacionalidades –, e
ferindo mais de 100 pessoas.
No
Hotel King David funcionava a administração do mandato da Palestina, atribuído pela
Sociedade das Nações ao Reino Unido. O ataque foi uma represália à ação
dos ingleses, que em 29 de junho de 1946 ocuparam as oficinas da Agência
Judaica, o que levou o Irgun a atacar o hotel.
Indagado
pelo jornalista Russell Warren Howe se poderia ser considerado o pai
do terrorismo no Oriente Médio, Menachem Begin, já primeiro-ministro,
respondeu: “Não só [no Oriente Médio], mas em todo o
mundo!” Então está!
No
esclarecedor manual, Dershowitz poderia ter mencionado a controversa
política de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro
israelense mais longevo, que apoiou o Hamas em determinado
momento para embaralhar o poder palestino, entre o Hamas e a
Organização para a Libertação da Palestina (OLP), por entender que ele era
justamente a chave para impedir o surgimento de um Estado palestino.
De
acordo com o site conservador israelense Mida, citado
por Felix Tamsut, da Deutsche Welle, Netanyahu disse ao seu
partido, o Likud, em 2019, que permitir que o dinheiro
do Catar chegasse ao Hamas era fundamental para impedir um Estado palestino.
“É parte de nossa estratégia: criar uma separação entre os palestinos em Gaza e na
Cisjordânia”.
Seria mais honesto que o manual de Dershowitz também contasse esses
“detalhes”.
Israel reclama
a libertação imediata de 59 pessoas, que seguem em cativeiro, vivas ou mortas,
de um total de 251 sequestrados em 7 de outubro de 2023 pelo Hamas. São
dois cabeçudos medindo forças às custas da população civil palestina.
Fonte: Avvenire/La Repubblica/IHU
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