quinta-feira, 27 de março de 2025

Giorgio Ferrari: A paz é apenas uma miragem. O retorno do genocídio em Gaza

"O epicentro do novo caótico retumbar dos tambores da guerra ainda é o Oriente Médio. Mas, apesar da importância crucial de Israel e de seu difícil papel em um tabuleiro paralisado por vetos cruzados, que vê se afastar aquele projeto conhecido como 'Acordos de Abraão', que antes do fatídico 7 de outubro parecia ser capaz de abrir um futuro diferente, trata-se apenas de uma peça no mosaico maior daquele Grande Jogo que nunca parece ter fim", escreve Giorgio Ferrari, jornalista italiano, correspondente internacional de Avvenire.

<><> Eis o artigo.

Si vis pacem, para bellum. Para além do lema atribuído ora a Platão ora a Cornélio Nepos, a paz é um bom negócio, mas a guerra é ainda mais. Isso é bem conhecido por todos os sátrapas e autocratas do mundo, mas também é conhecido pelos líderes das desnorteadas democracias ocidentais, que em atendimento a tal preceito estão se armando. Porque a guerra e o caos são ingredientes milenares que tendem a fortalecer o imobilismo de quem detém o poder, especialmente quando esse poder não é sustentado pelo consenso. Nesse sentido, podemos ler com desolada apreensão a retomada do conflito em Gaza e a nova pilha de mortos inocentes, a retaliação estadunidense no Iêmen, a recusa caprichosa da liderança do Hamas em entregar um refém israelense-americano aos Estados Unidos e os corpos de onze americanos-israelenses que morreram em cativeiro após o sequestro de 7 de outubro, o fracasso da segunda fase da trégua laboriosamente acordada em Doha e o consequente endurecimento do eixo Moscou-Pequim, que imediatamente estendeu seu guarda-chuva protetor sobre o Irã e seu programa nuclear civil.

O epicentro do novo caótico retumbar dos tambores da guerra ainda é o Oriente Médio. Mas, apesar da importância crucial de Israel e de seu difícil papel em um tabuleiro paralisado por vetos cruzados, que vê se afastar aquele projeto conhecido como “Acordos de Abraão”, que antes do fatídico 7 de outubro parecia ser capaz de abrir um futuro diferente, trata-se apenas de uma peça no mosaico maior daquele Grande Jogo que nunca parece ter fim.

Um Grande Jogo que envolve a todos, porque o que está em jogo é o Novus Ordo que está lentamente tomando forma e que, junto com o rugido do canhão, hoje percorre o fio das conversas telefônicas entre Donald Trump e Vladimir Putin. Dois campeões do poder absoluto, o que Thomas Hobbes, no Leviatã, proclamava como necessário para circunscrever o instinto de sobrevivência e domínio que é inerente ao homem.

Todos nós estamos envolvidos nesse jogo.

Desde a Alemanha, que está se apressando para converter a achacada indústria automobilística em uma industriosa manufatura de armamentos (mas não foi isso que aconteceu há quase um século, depois de Versalhes?), até os nacionalistas-soberanistas europeus que aplaudem uma América neo-rooseveltiana, tomadora de decisões, impiedosa e pragmática, devotada ao culto da força. E quando dizemos neo-rooseveltiana, fazemos alusão não ao mais conhecido Franklin Delano, mas ao seu antecessor Theodore, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 1906 (sic!), retratado no granito do Monte Rushmore na companhia de Washington, Jefferson e Lincoln.

Bem ou o mal, da perspectiva de uma paz duradoura voltamos mais uma vez para a arte das armas e da força, as ferramentas favoritas daqueles que governam o mundo, cada um com seu próprio estilo, alguns com soft power, outros com gélida e elaborada astúcia, outros com veemência rude de um vendedor de trapos.

O resultado é idêntico: é a ameaça de guerra que move as peças do jogo de tabuleiro. No meio disso, há dezenas, centenas de mortes todos os dias. Ontem, novamente em Gaza, onde a frágil trégua foi quebrada e já há mais de 400 mortos, mais de 100 crianças, e sabe-se lá por quanto tempo mais nas exaustas trincheiras ucranianas.

Agora será difícil juntar as peças do mosaico que, por algum tempo, brilhava como uma miragem de paz a partir das várias mesas de conciliação do Egito, do Catar e de Pequim. Agora as conciliações são feitas para compor coalizões armadas. Por outro lado, além do tilintar dos sabres, é possível ouvir o estalar frenético do ábaco que já está prometendo aos fabricantes de armas vendas recordes, lucros sem precedentes e aumentos bilionários nos pedidos que o rearmamento global impõe. “Precisamos desarmar as palavras para desarmar as mentes e desarmar a Terra”. Essas são as palavras do Papa, contidas na carta enviada ao diretor do Corriere della Sera, Luciano Fontana.

Mais uma vez e por três vezes o Santo Padre usou um verbo que ninguém mais tem a coragem ou a intenção de pronunciar: desarmar. E é aí que reside a vergonha de todos nós.

¨      Washington abençoa a matança

Com o total apoio de Donald Trump e com o substancial desinteresse da Europa, focada apenas na questão ucraniana, Netanyahu lança o plano final contra o Hamas. Em Gaza e na Cisjordânia. Um plano que, em essência, soa assim: mísseis do céu e ofensivas terrestres até que os militantes devolvam os 59 reféns israelenses, 24 dos quais se acredita estarem vivos. O custo humano dos bombardeios, desde a quebra do cessar-fogo, já é assustador: 710 palestinos mortos na Faixa de Gaza e 900 feridos em 48 horas, segundo o porta-voz do hospital Shuhada al-Aqsa. Ele acrescentou: "70% dos feridos são mulheres e crianças, muitos deles gravemente feridos".

Os detalhes táticos da operação militar foram aprovados ontem em uma reunião entre o ministro da Defesa, Israel Katz, e o novo chefe do Estado-Maior, general Eyal Zamir. “A pressão já está afetando as posições do Hamas”, diz o ministro. Zamir especificou até onde pretendem ir: "Quando falamos sobre a derrota do Hamas, também nos referimos à Judeia e Samaria." Que é o nome bíblico para a Cisjordânia, onde as incursões das FDI nos campos de Jenin e Tulkarem continuam.

A libertação dos reféns deveria ser o assunto da discussão do Gabinete de Segurança ontem, mas a sessão foi dedicada à votação da demissão do chefe dos serviços de inteligência domésticos de Israel, Ronen Bar, que está investigando o dinheiro do Catar que foi parar nas mãos de três assessores de Netanyahu. Não é por acaso que o Primeiro-Ministro quer a sua cabeça.

Milhares protestaram pelo segundo dia consecutivo em Jerusalém contra as manobras políticas do chefe de governo e contra a decisão de quebrar a trégua em Gaza. Houve momentos de tensão, a multidão foi dispersada com canhões de água, um dos líderes da oposição, Yair Golan, foi empurrado e caiu no chão. O presidente do estado judeu, Isaac Herzog, diz estar "muito preocupado" e ataca diretamente Netanyahu: "Ele está seguindo políticas divisivas, controversas e unilaterais, é impossível retomar os combates e ao mesmo tempo não ouvir as famílias dos reféns".

Em Gaza, castigada por chuvas congelantes, as tropas israelenses já retomaram o controle do corredor Netzarim, que divide a Faixa em duas, e bloquearam o trânsito na Salah-al-Din, a artéria de ligação entre o norte e o sul . As ordens de evacuação dizem respeito a áreas onde se estima que pelo menos 200.000 palestinos estejam presentes, metade dos quais já retomou sua jornada em meio aos escombros e lama. As operações terrestres estão se expandindo no norte e no centro de Gaza, com veículos blindados das IDF também avistados nos bairros ao sul de Rafah. Cinco funcionários da UNRWA e um cidadão búlgaro que estava no complexo da ONU na Cidade de Gaza foram mortos nos ataques aéreos.

"O presidente Trump apoia totalmente a retomada da ofensiva israelense em Gaza", declarou a porta-voz da Casa Branca, Caroline Levitt, reiterando o que está claro para todos. "Foi o Hamas que escolheu brincar com vidas humanas através da mídia. Se eles não libertarem todos os reféns, pagarão um alto preço." A guerra, portanto, recomeçou como era antes do cessar-fogo declarado em 19 de janeiro. “Os comandantes e a liderança política do Hamas”, relata uma fonte qualificada das IDF, “serão caçados casa por casa, nós os eliminaremos um por um”.

Também está claro para o Hamas, que de fato ontem, pela primeira vez desde outubro passado, lançou três foguetes M90 de Khan Yunis contra Israel, na área de Tel Aviv. Um foi destruído pelo sistema de defesa Iron Dome, dois caíram em áreas desabitadas. No entanto, dois mísseis balísticos iemenitas Houthi foram interceptados fora do território israelense, disparando sirenes de ataque aéreo em Tel Aviv e Jerusalém.

A delegação do movimento islâmico palestino, no entanto, não interrompeu os contatos com os mediadores egípcios e catarianos envolvidos nas negociações de Doha. Formalmente, elas ainda estão aberts, embora paradas.

¨      Israel e Hamas, a guerra das narrativas prosseguem e os civis pagam a conta

A diretora do Serviço Mundial da Federação Luterana Mundial (FLM), Maria Immonen, veio a público: “As crianças da Palestina e de Israel merecem crescer em paz, não com medo e ódio. Como pessoas de fé, recusamo-nos a aceitar que a violência é inevitável. A paz não é apenas possível: é o único caminho a seguir”.

Em declaração pública, a FLM expressou consternação e condenou o rompimento do cessar-fogo em Gaza e a retomada dos ataques aéreos israelenses. Condenou, também, o bloqueio de ajuda humanitária à população desalojada de seus lares. Civis devem ser protegidos, assegura o organismo ecumênico, assim como todas a infraestrutura civil de Gaza.

Mas no espectro religioso, há quem não enxergue os acontecimentos em Gaza dessa perspectiva. Ex-professor de Direito na Harvard Law School, o Dr. Alan Dershowitz lançou um manual de 64 páginas dirigido a um público-alvo – a atual geração de estudantes universitários e do ensino médio dos Estados Unidos –, sob o título The Ten Big Anti-Israel Lies and How to Refute them with Truth (As dez grandes mentiras anti-Israel e como refutá-las com a verdade).

O manual foi elogiado e recomendado pelo ex-presidente do Seminário Evangélico do Sul e ex-presidente da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da Convenção Batista do Sul, Dr. Richard Lang, em matéria para o portal The Christian Post.

“Este livro – escreveu Lang – foi criado para ser, e é, uma ferramenta poderosa para divulgar a verdade a uma geração mais jovem de americanos que muitas vezes foram gravemente desinformados sobre o Oriente Médio em geral e Israel em particular”.

Dershowitz diz no manual que os terroristas palestinos têm usado civis como escudos humanos, até mesmo colocando quartéis militares e esconderijos de armas em escolas e mesquitas. E destaca que em Gaza, “as Forças de Defesa de Israel mataram menos civis em relação aos combatentes do que qualquer nação na história que lutou contra terroristas que usam civis como escudos humanos”. A comprovar!

Mas Dershowitz omite, ou esqueceu de mencionar, por exemplo, que o terrorismo também foi o método usado por quem lutava pela implantação de um Estado de Israel.

Assim, em 22 de julho de 1946, terroristas da organização sionista Irgun (Organização Militar Nacional), em ataque elaborado por Menachem Begin, implodiu sete andares da ala sul do Hotel King David, em Jerusalém, matando 91 pessoas – 28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e cinco de outras nacionalidades –, e ferindo mais de 100 pessoas.

No Hotel King David funcionava a administração do mandato da Palestina, atribuído pela Sociedade das Nações ao Reino Unido. O ataque foi uma represália à ação dos ingleses, que em 29 de junho de 1946 ocuparam as oficinas da Agência Judaica, o que levou o Irgun a atacar o hotel.

Indagado pelo jornalista Russell Warren Howe se poderia ser considerado o pai do terrorismo no Oriente Médio, Menachem Begin, já primeiro-ministro, respondeu: “Não só [no Oriente Médio], mas em todo o mundo!” Então está!

No esclarecedor manual, Dershowitz poderia ter mencionado a controversa política de Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro israelense mais longevo, que apoiou o Hamas em determinado momento para embaralhar o poder palestino, entre o Hamas e a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), por entender que ele era justamente a chave para impedir o surgimento de um Estado palestino.

De acordo com o site conservador israelense Mida, citado por Felix Tamsut, da Deutsche Welle, Netanyahu disse ao seu partido, o Likud, em 2019, que permitir que o dinheiro do Catar chegasse ao Hamas era fundamental para impedir um Estado palestino. “É parte de nossa estratégia: criar uma separação entre os palestinos em Gaza e na Cisjordânia”. Seria mais honesto que o manual de Dershowitz também contasse esses “detalhes”.

Israel reclama a libertação imediata de 59 pessoas, que seguem em cativeiro, vivas ou mortas, de um total de 251 sequestrados em 7 de outubro de 2023 pelo Hamas. São dois cabeçudos medindo forças às custas da população civil palestina.

 

Fonte: Avvenire/La Repubblica/IHU

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário