Os
carrascos nazistas que fugiram para o Brasil
Quando soube que Franz Stangl tinha sido
preso, em 28 de fevereiro de 1967, pouco depois das 18h30, por agentes do Dops
em São Paulo, o órgão de repressão da ditadura militar, o austríaco Wolfgang
Gerhard planejou a fuga do carrasco nazista. A ideia era usar uma kombi para resgatá-lo da prisão.
"O plano era tão
mirabolante que, provavelmente, não daria certo", acredita a jornalista
Betina Anton, autora de Baviera Tropical – A história de Josef Mengele, o médico nazista mais
procurado do mundo, que viveu quase 20 anos no Brasil sem nunca ser pego (Todavia, 2023).
Gerhard era um simpatizante
do nazismo que vivia no Brasil desde 1948. Foi ele quem, a pedido do coronel
Hans-Ulrich Rudel, ajudou Josef Mengele a
encontrar refúgio no país, em 1960. Ao ouvir o plano para libertar Stangl,
Mengele não quis participar. O nazista, que ficou conhecido como o "Anjo
da Morte de Auschwitz", não
queria chamar a atenção da polícia ou colocar seu anonimato em risco.
Já Stangl ao ser capturado
não esboçou reação ou tentou fugir. Pelo contrário. Suspirou aliviado.
"Seu maior temor era ser pego pelo Mossad", prossegue Anton,
referindo-se ao serviço secreto israelense.
As histórias de Stangl e
Mengele são contadas no livro Os Nomes
do Terceiro Reich – A História dos Principais Personagens do Nazismo e da
Alemanha na Segunda Guerra Mundial (Difel, 2024). A obra retrata ainda mais dois nazistas que fugiram
para o Brasil: Gustav Wagner, a "Besta de Sobibor", e Herberts
Cukurs, o "Açougueiro de Riga". "Houve outros, sim. Muitos
fugiram para o Brasil. Mas nem todos tinham importância no alto escalão do
Terceiro Reich", justifica o historiador Rodrigo Trespach, autor do livro.
Stangl comandou os campos de
extermínio de Sobibor e Treblinka, e Mengele fez
experimentos no de Auschwitz, todos na Polônia.
Embora quatro dos mais
procurados nazistas tenham fugido para o Brasil, o país não era o destino
favorito deles. Na América Latina, grande parte deles fugiu para a Argentina e
o Paraguai. Ou porque seus governantes tinham simpatia por regimes autoritários
ou porque suas cidades estavam repletas de imigrantes alemães.
"O Brasil era
miscigenado demais para os padrões europeus", explica o historiador Marcos
Guterman, autor de Nazistas Entre Nós –
A Trajetória dos Oficiais de Hitler Depois da Guerra (Contexto,
2024). "Além de ser um país quente, era tido como atrasado e
inóspito", acrescenta.
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Passado a limpo
Dois desses carrascos
ganharam biografias: Cukurs e Mengele. A de Cukurs, O Homem dos Pedalinhos – A História de Um Alegado
Criminoso Nazista no Brasil do Pós-Guerra (FGV, 2021), foi
escrita pelo historiador Bruno Leal. O aviador letão chegou ao Brasil no dia 4
de março de 1946 a bordo do navio espanhol Cabo da Boa Esperança. Estava
acompanhado da mulher, dos três filhos e de uma judia, Miriam Kaicners, de 23
anos. "Algo que me surpreendeu foi o fato de Cukurs ter salvado essa
jovem", admite Leal. "Os motivos não são conhecidos. Talvez nunca
sejam."
A de Mengele, Baviera Tropical, ganhou o Jabuti na
categoria Biografia e Reportagem, será publicada em 15 países (o mais recente é
o Reino Unido) e já recebeu propostas para o cinema. No livro, Anton conta a
história, entre outros sobreviventes de Auschwitz, da tcheca Ruth Elias. Pouco
depois de dar à luz, ela teve seus seios enfaixados por Mengele. O médico
queria saber por quanto tempo seu bebê sobreviveria sem ser amamentado pela
mãe. "Qual é o resultado prático dessas pesquisas? Nenhum!", responde
a autora. "Não era ciência, era sadismo."
Os dois nazistas tiveram
desfechos diferentes. Mengele morreu afogado durante um mergulho em Bertioga,
no dia 7 de fevereiro de 1979. Quando o cabo da Polícia Militar Espedito Dias
Romão chegou à Praia da Enseada para atender a uma chamada, já encontrou o
banhista morto. "Não havia nada que eu pudesse fazer", explica.
Uma curiosidade: o documento
apresentado pelo casal Wolfram e Liselotte Bossert, que estava com Mengele na
hora de sua morte, identificava o corpo como sendo de Wolfgang Gerhard, o mesmo
que, 12 anos antes, planejara a fuga de Stangl. Sua verdadeira identidade só
foi descoberta em 1985.
Já Cukurs morreu em uma
emboscada no Uruguai. No dia 12 de setembro de 1964, Yaakov Meidad, o agente do
Mossad responsável pela captura de Adolf Eichmann na Argentina, desembarcou no
Brasil. Dias depois, se apresentou a Cukurs como Anton Kuenzle, empresário
austríaco em busca de um parceiro comercial. Depois de conquistar sua
confiança, convenceu Cukurs a viajar para Montevidéu. Quando Cukurs descobriu
que tinha caído numa armadilha, era tarde demais. "Deixem-me falar!",
foram suas últimas palavras em alemão.
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Nas telas do cinema
Cukurs morreu no dia 23 de
fevereiro de 1965, com dois tiros à queima-roupa. Seu corpo foi encontrado, 11
dias depois, em um baú de madeira. Sobre o corpo, um bilhete: "Aqueles que
não esquecerão". A operação do Mossad para localizar Cukurs no Brasil e
executá-lo no Uruguai é um dos motes do filme Cisne
Manchado de Sangue.
O título faz alusão aos
pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos principais cartões-postais do
Rio. No finalzinho dos anos 1950, Cukurs criou o badalado passeio turístico – à
época, o pedalinho ainda não tinha o formato de cisne.
A principal fonte de
pesquisa é O Homem dos Pedalinhos,
de Bruno Leal. Mas, o cineasta Alex Levy-Heller leu outros títulos, como The Execution of the Hangman of Riga (2004),
de Anton Kuenzle e Gad Shimron; e The
Good Assassin (2020), de Stephan Talty. "A parte mais
difícil é também a mais prazerosa. É como montar um quebra-cabeça",
compara. "Por que Cukurs foi assassinado em vez de ser levado a
julgamento? Por que a ditadura militar se recusou a deportá-lo? Havia certeza
de que Cukurs era, de fato, um criminoso de guerra?", indaga o diretor e
roteirista.
A história de Cukurs não é a
única a virar filme. Os oito anos em que Stangl trabalhou na Volkswagen, no ABC
Paulista, serão contados no documentário The
Factory's Basement (O Porão da Fábrica). A ideia é do
jornalista e escritor Fernando Moraes e está sendo desenvolvida pelos diretores
Gustavo Ribeiro e Ricardo Calil.
"O documentário
pretende desvendar o mistério sobre as atividades do Stangl na Volkswagen e a
participação da montadora na delação de trabalhadores para a ditadura",
adianta Ribeiro. "Ele delatou ou não os operários da Volks para o
Dops?", questiona.
Por ironia, o próprio Stangl
foi preso, por agentes do Dops, em 28 de fevereiro de 1967. Quase quatro meses
depois, no dia 22 de junho, foi extraditado para a Alemanha. "Estou
tranquilo porque nunca mandei matar ninguém. Minha função não me permitia dar
tais ordens. Retornarei ao Brasil como homem livre", declarou aos jornais
da época.
Condenado à prisão perpétua
em 22 de outubro de 1970 por um tribunal alemão, Stangl morreu de insuficiência
cardíaca numa cela em Düsseldorf no dia 28 de junho de 1971.
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"Castelo da Morte"
Antes de chegarem ao Brasil,
Stangl e Wagner passaram pelo Castelo de Hartheim, na Áustria. Foi no
"Castelo da Morte" que, no dia 6 de junho de 1941, morreu, numa
câmara de gás disfarçada de banheiro, a princesa brasileira Maria Carolina de
Saxe-Coburgo e Bragança. Dos chuveiros, não saía água, mas gás. Da inalação ao
óbito, a vítima não durava mais do que 20 minutos...
"Não há documento que
vincule a morte da princesa a Stangl ou a Wagner. Mas é improvável que eles não
soubessem dela e do que aconteceu com ela", afirma o historiador Marcos
Guterman.
A princesa Maria Carolina é
bisneta do imperador Dom Pedro 2º. Ao todo, o príncipe Augusto Leopoldo e sua
mulher, Carolina da Áustria-Toscana, tiveram oito filhos. Desses, três nasceram
com problemas mentais: Augusto, Maria Carolina e Leopoldina. No caso de Maria
Carolina, além da deficiência mental, ela teria poliomielite.
O Castelo de Hartheim era um
dos seis centros de extermínio existentes na época. Estima-se que, entre maio
de 1940 e agosto de 1941, 18,2 mil deficientes físicos e mentais tenham sido
executados em Hartheim: uma média de 40 por dia.
Caseiro em um sítio de
Atibaia, Gustav Wagner se entregou à polícia em 30 de maio de 1978. Tinha medo
de ser capturado por Simon Wiesenthal, o famoso "caçador de
nazistas". Na prisão, tentou o suicídio algumas vezes. Fora dela, outras
mais. Tirou a própria vida, com uma facada no peito, no dia 3 de outubro de
1980.
"Era o estereótipo do
nazista: violento e desumano", resume o historiador Felipe Cittolin Abal,
de Nazistas no Brasil e Extradição: Os
Pedidos de Extradição de Franz Stangl e Gustav Wagner em Uma Análise
Histórico-Jurídica (Juruá, 2014).
Dos quatro nazistas do alto
escalão que fugiram para o Brasil, Gustav Wagner foi o último a morrer.
¨ Os judeus forçados a trabalhar nas câmaras de gás no
Holocausto: 'Perguntei a mim mesmo: onde está Deus?'
Eles eram chamados
de Sonderkommandos — membros de
uma unidade especial criada pelos nazistas para trabalhar em campos de
extermínio como Auschwitz-Birkenau durante o Holocausto.
Mas eles não eram
soldados alemães, nem sequer aliados.
As unidades
dos Sonderkommando consistiam em prisioneiros judeus deportados para
Auschwitz de 16 países diferentes, e o seu trabalho alimentava a máquina de
matar.
"Trabalhei nos
crematórios. Levava pessoas [corpos] das câmaras de gás para os fornos",
contou Dario Gabbai.
O ex-prisioneiro do
campo de concentração de Auschwitz foi uma das últimas testemunhas oculares da
chamada "solução final" — o plano nazista para erradicar o povo judeu
da Europa, que culminou no assassinato de seis milhões de judeus.
O complexo de
Auschwitz-Birkenau é o local do maior assassinato em massa da história da
humanidade — estima-se que 1,1 milhão de pessoas foram mortas, das quais mais
de 90% eram judeus. Este número é maior do que as perdas sofridas pelo Reino
Unido e pelos EUA durante toda a guerra.
Auschwitz-Birkenau
foi finalmente libertado pelas tropas soviéticas em 27 de janeiro de 1947. Esta
data é agora lembrada como o Dia da Memória do Holocausto.
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Corte
de cabelo
Os membros
do Sonderkommando eram forçados a ajudar no processo dos
assassinatos. As unidades paramilitares de elite de Hitler, conhecidas como SS,
eram responsáveis pela execução
propriamente dita.
Antes de os corpos
serem cremados, os sonderkommandos tinham que realizar uma busca nas
cavidades das vítimas à procura de implantes, como dentes de ouro, e objetos de
valor escondidos.
Gabbai tinha a
tarefa específica de cortar e recolher os cabelos das mulheres assassinadas.
Décadas depois, ele
relembrou como se sentia ao conversar com uma organização americana dedicada a
entrevistar sobreviventes do Holocausto, a USC Shoah Foundation.
"Perguntei a
mim mesmo: Como posso sobreviver? Onde está Deus?", contou Gabbai.
Um polonês disse a
ele para se manter forte, e ele levou esse conselho a sério.
"Eu disse a mim
mesmo: eu sou um robô... feche os olhos, e faça o que tiver que ser feito sem
perguntar muito", acrescentou.
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Depoimentos
Na década de 1980,
o historiador do Holocausto baseado em Israel, Gideon Greif, começou a
pesquisar sobre os sonderkommandos.
Greif documentou a
experiência de 31 sonderkommandos em seu primeiro livro sobre
eles, We Wept Without Tears (Choramos Sem Lágrimas, em tradução
livre).
Um
dos sonderkommandos documentados por Greif foi Ya'akov, irmão de
Dario Gabbai.
Ya'akov viu dois de
seus primos chegando à câmara de gás. Ele os instruiu a se sentarem perto de
onde o gás era liberado para que tivessem uma morte rápida e indolor.
"Por que eles
deveriam sofrer tanto?", explicou ele mais tarde a Greif.
Josef Sackar foi o
primeiro sonderkommando que Greif conheceu, em 1986. Sackar era
frequentemente destacado para trabalhar no local onde as mulheres eram
obrigadas a se despir.
"Virava minha
cabeça para outra direção, e me certificava de que elas não ficassem muito
constrangidas", disse Sackar a ele.
Shaul Chasan
revelou, por sua vez, que tinha que retirar os corpos dos mortos das câmaras de
gás e colocá-los nos elevadores que os levariam para os crematórios.
Ele contou a Greif
como sempre se esforçava para garantir que os corpos não fossem arrastados
sobre a sujeira e os detritos no chão das câmaras de gás.
Outro sonderkommando testemunhou
como um grupo de crianças polonesas nuas começou a cantar Shema Yisrael,
uma oração judaica, e entrou na câmara de gás com perfeita disciplina.
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Valas
em chamas
O memorial do
Holocausto de Israel, Yad Vashem, observa como os assassinatos aumentaram após
o início da deportação dos judeus húngaros em maio de 1944.
"Em apenas
oito semanas, cerca de 424 mil judeus foram deportados para
Auschwitz-Birkenau."
O número de mortes
excedeu em muito a capacidade dos crematórios. Mas o oficial alemão encarregado
dos crematórios, Otto Moll, foi implacável, e ordenou
aos sonderkommandos que cavassem valas para queimar os corpos.
Uma foto
clandestina tirada por um sonderkommando mostra claramente corpos
sendo incinerados numa vala a céu aberto — mais tarde, a imagem serviu de
evidência sobre o que havia acontecido no campo.
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Rebelião
fracassada
Os sonderkommandos recebiam
comparativamente mais comida e melhores condições de vida do que o restante dos
presos, que se alimentavam apenas de sopa aguada.
No entanto, o
trabalho oferecia pouca proteção. Os nazistas costumavam matar os membros do
sonderkommando a cada seis meses, e convocar novos recrutas.
Os nazistas
aplicavam uma série de punições para provocar medo. Isso incluía fuzilamento,
jogá-los em fogueiras, tortura, espancamento e ser rolado nu sobre cascalho.
"Eles estavam
em estado de choque constante. Viam milhares de judeus serem assassinados todos
os dias. Foi um grande desafio permanecer vivo", diz Greif.
Eles também eram
alojados separadamente e monitorados o tempo todo. No entanto, em um
determinado momento, eles reagiram em um evento conhecido como rebelião do
sonderkommando.
"Dois irmãos
estavam envolvidos no planejamento do levante de 7 de outubro de 1944. Foi uma
revolta judaica. Uma história de coragem. Deveria ser escrita em letras
douradas", afirma Greif.
Naquele dia, alguns
prisioneiros do sonderkommando atacaram seus guardas da SS com pedras e
incendiaram um crematório. O ataque foi rapidamente reprimido, e
451 sonderkommandos foram mortos a tiros.
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Documentando
as atrocidades
Outros sonderkommandos,
como Marcel Nadjari, registraram sua raiva em pedaços de papel.
"Não estou
triste por morrer, mas estou triste por não ser capaz de me vingar como
gostaria", escreveu Nadjari, em novembro de 1944.
As cinzas de cada
vítima adulta pesavam cerca de 640 gramas, segundo suas anotações.
O judeu grego
escondeu seu manuscrito de 13 páginas em uma garrafa térmica, que ele fechou
com uma tampa de plástico. Em seguida, colocou a garrafa em uma bolsa de couro
e a enterrou.
As anotações
deixadas por Nadjari e outros foram recuperadas anos mais tarde, e
cuidadosamente decifradas. Elas agora são conhecidas como os Pergaminhos de
Auschwitz.
Elas fornecem
informações valiosas sobre a dimensão dos crimes.
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Em
busca de justiça
Apenas cerca de
100 sonderkommandos conseguiram sobreviver à guerra. Alguns
desempenharam um papel ativo nos julgamentos dos crimes de guerra.
Henryk Tauber
testemunhou contra o comandante da SS, Otto Moll.
"Em diversas
ocasiões, Moll jogou pessoas vivas nas valas em chamas", lembrou Tauber
durante o julgamento perante um tribunal militar americano.
Moll acabou sendo
condenado e enforcado por seu papel em uma "marcha da morte".
No entanto, muitos
criminosos nunca foram punidos. De um total de cerca de 7 mil funcionários em
Auschwitz, apenas cerca de 800 enfrentaram o poder da lei, de acordo
com Auschwitz, uma série de documentários da BBC/PBS.
Greif testemunhou
contra supostos criminosos nazistas nos tribunais europeus, onde nazistas
suspeitos ainda estão sendo julgados.
Gabbai acabou se
mudando para Los Angeles, nos EUA, e morreu lá em 2020. Em 2015, ele fez uma
visita a Auschwitz para marcar o 70º aniversário da libertação do campo. Ele
contou à BBC o que o fez seguir adiante.
"Eu disse (a
mim mesmo) que essa guerra iria acabar um dia e, quando ela acabasse, eu
poderia sobreviver e contar as histórias para o mundo."
Fonte: BBC Word
Service
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