sábado, 8 de fevereiro de 2025

Gabriela Leite: Escola e SUS diante da epidemia de transtornos mentais

Como os adultos, também as crianças e adolescentes enfrentam um mau momento no que diz respeito a sua saúde mental. Em levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, divulgado na semana passada, constatou-se, em 10 anos, um aumento de 1.575% no atendimento, no SUS, de crianças entre 10 e 14 anos por sofrerem de ansiedade. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, o aumento foi de 4.423% – alcançando o número de 53.514 atendimentos em 2024, mais de seis por hora. 

Mas o sistema de saúde está pronto para atender a essa demanda? Um grupo de pesquisadores foi atrás de respostas, e sintetizou suas conclusões em artigo recém-publicado na revista Cadernos de Saúde Pública (CSP), parceira editorial do Outra Saúde. Entrevistaram genitores de crianças de 3 a 16 anos que foram atendidos no serviço psicológico de uma policlínica ligada ao SUS, em uma cidade média sudestina, que carece de uma unidade de Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Caps-IJ).

Entre as conquistas e dificuldades enfrentadas pelas mães e pais, captadas pela pesquisa, chama a atenção o papel que a escola desempenha nesse processo de entendimento de transtornos mentais. Trata-se, segundo o artigo, de um “fenômeno contemporâneo”, que vem com “uma maior compreensão das relações entre possíveis problemas de aprendizagem e questões psicológicas, neurológicas e problemas no desenvolvimento”.

Em entrevista a este boletim, Iagor Brum Leitão, um dos pesquisadores responsáveis pelo artigo, da Universidade Federal do Espírito Santo, complementa: “A escola é um importante espaço social habitado pelas crianças e adolescentes. Por isso, além de ser um ambiente de aprendizado, também se torna um lugar onde não só sinais de sofrimento psíquico se expressam, mas também são percebidos”. 

·        Escola e medicalização

Mas se a escola é um local importante para a descoberta de possíveis transtornos de crianças e adolescentes, ela também pode ser, em certos aspectos, disseminadora de uma perspectiva medicalizante. Ou seja, a compreensão de distúrbios que podem ter origens diversas, inclusive sociais e familiares, apenas do ponto de vista médico, “compreendidos através de uma estrutura médica e tratados exclusivamente com intervenções médicas”, nas palavras de Iagor.

O artigo ressalta a questão: “O crescente aumento do discurso neurocientífico na educação pode levar a uma interpretação rígida de comportamentos desviantes de normas como sinais de transtornos, incentivando a busca precoce por diagnósticos e intervenções médicas mesmo quando esses comportamentos poderiam ser parte de um desenvolvimento normal ou uma resposta contextual”.

Nesse contexto, há alguns diagnósticos que se sobrepõem e chamam a atenção dos pesquisadores, inclusive nas entrevistas feitas na saúde mental da policlínica. Prevalecem as suspeitas de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Embora seja uma tendência que se confirma em estudos de diversos países, os autores do artigo fazem questão de problematizar essa prevalência. 

Segundo os pesquisadores, essa maior frequência de diagnósticos pode ser consequência da “ênfase na biologia como base para esses diagnósticos”, além da inclusão dos transtornos no mais recente Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Esses dois fatores “podem estar contribuindo para uma cultura de hiperdiagnóstico e levando a um aumento das demandas e dos encaminhamentos de crianças e adolescentes”. O artigo frisa: essa situação pode contribuir para aumentar o estigma de pessoas com os transtornos.

Iagor esclarece que a percepção puramente medicalizante é equivocada: tanto a escola quanto a sociedade podem ser causadoras dos sofrimentos psíquicos. “[Eles] não decorrem de problemas apenas no indivíduo, na criança, no adolescente. Questões como dinâmicas familiares conflituosas, vulnerabilidades socioeconômicas, racismo, homofobia, exposição à violência, maus-tratos e, inclusive, o próprio ambiente escolar – seus métodos pedagógicos, relações de poder, relações interpessoais e experiências de pertencimento social – também impactam diretamente”, reflete o pesquisador.

E a comunidade escolar, por vezes, encontra a saída da medicalização para esses problemas, reproduzindo lógicas de “enquadramento e normalização” – mas isso acontece por estar inserida em uma estrutura social mais ampla, que reforça essa tendência. É o que acrescenta Iagor: “Muitas escolas não se sentem preparadas para lidar com a diversidade e complexidade das questões de saúde mental, o que pode levar à percepção de que esse tipo de demanda está além de suas funções pedagógicas”. Apelar à psiquiatria, por vezes, é o caminho mais viável.

·        A Saúde deve tomar a dianteira

No entanto, o artigo recusa o caminho fácil de jogar a culpa no ensino básico. “A escola, por definição, tem o mandato da educação, não o da saúde ou da saúde mental […] ainda que não possa se furtar da responsabilidade de ser também espaço de [sua] promoção”, frisa Iagor. A questão é que o ambiente escolar não está preparado para lidar com essa onda de transtornos mentais, que gera uma grande demanda do sistema de saúde.

“O fortalecimento da relação entre escolas e serviços de saúde mental infantojuvenil requer um esforço conjunto”, discute o artigo. Mas, segundo seus autores, é responsabilidade da Saúde fazer esse movimento. Para Iagor, muitas vezes os serviços de atendimento também agem de forma reducionista, “sem se articular com a escola ou compreender melhor o seu contexto”, ou, em outras palavras, “sem fortalecer um laço de corresponsabilização”.

Na opinião do pesquisador, a escola não deve ser apenas um local de encaminhamento, mas que seja capaz de ela própria ser espaço para “acolhimento, reflexão, promoção de saúde, de pertencimento e reconhecimento social”. Para estreitar a relação entre o ambiente escolar e os serviços de saúde, estes precisam ter um papel proativo para, por exemplo, oferecer “espaços de diálogo e de qualificação não verticalizada para educadores”. 

Iagor sugere ações baseadas na “intersetorialidade, corresponsabilização, fortalecimento de vínculos e aproveitamento dos recursos e características do território”. Ele exemplifica algumas possibilidades: promoção de fóruns sobre saúde mental infantojuvenil, rodas de conversas com estudantes ou familiares, projetos integrados entre UBSs e escolas e grupos terapêuticos. Mas construir um olhar ampliado sobre a saúde mental e buscar respostas para além da medicalização só será possível com investimento e articulação, alerta ele.

·        UBSs devem ser mais que centros de encaminhamento

Além da questão das escolas no atendimento de crianças e adolescentes que enfrentam sofrimento psíquico, também as Unidades Básicas de Saúde (UBS) precisam estar melhor preparadas. Este é um alerta que os pesquisadores fazem a partir das experiências recolhidas nas entrevistas que realizaram. Eles perceberam um papel “menos ativo” dos postos de saúde no cuidado direto dos jovens.

É inegável que haja uma escassez de profissionais diretamente ligados à saúde mental nas UBSs. Esse é um elemento que foi percebido também nas entrevistas feitas no estudo, e essa falta traz efeitos significativos. Mas os pesquisadores alertam: os postos de saúde precisam fazer muito mais do que o simples encaminhamento para especialistas. 

Trata-se, segundo eles, de “uma falta de compreensão por parte das equipes sobre sua capacidade de conduzir atividades relacionadas ao cuidado em saúde mental infantojuvenil”. Iagor completa: “Como serviços da Atenção Básica, são projetados como uma porta de entrada preferencial do SUS, pois estão inseridas nos territórios e próximas às famílias”, ou seja, é possível ir além do tratamento por especialistas de forma individual.

O pesquisador dá exemplos de experiências que demonstram esse potencial, como o de uma UBS que realizou oficinas de massagens para bebês e rodas de conversa sobre saúde mental infantil. Uma outra unidade, que estabeleceu parceria com profissionais de educação física e lideranças comunitárias, “criou atividades esportivas para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”. 

“Então o cuidado envolve, além das ações de ‘tratamento’, as de acolhimento, escuta ativa, promoção à saúde, atividades em grupo, orientação familiar, ações territoriais e intersetoriais, discussões em equipe sobre casos, bem como toda uma construção de pertencimento, de lugar social positivo”, completa Iagor. São ações, lembra ele, que não necessitam de profissionais de psicologia ou médicos para serem realizadas.

 

¨      COP-30: o que propor para a saúde da Amazônia. Por Túlio Batista Franco

Em novembro de 2025, será realizada no Pará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30). Trata-se de um encontro anual que reúne líderes mundiais, cientistas, representantes de ONGs, empresas e outros grupos interessados na questão, para discutir e tomar decisões sobre questões relacionadas às mudanças climáticas. No Brasil, é imperativo que inclua representantes de todas as comunidades tradicionais da Amazônia, os Povos-Floresta .

Lamentavelmente, nem mesmo um evento da magnitude da COP30, que tem como foco principal a promoção de políticas e ações para reduzir emissões de gases de efeito estufa, adaptar-se às mudanças climáticas, financiar ações climáticas e proteger a biodiversidade, entre outros tópicos – ou seja, tentar “adiar o fim do mundo”, como nos diz Krenak –, foi capaz de arrefecer a política colonialista e de invisibilização do governo do Pará para com as comunidades tradicionais, inclusive os povos indígenas.

Tem causado grande indignação em amplos setores o fato de que a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) tenha aprovado no final do ano passado a Lei 10.820/2024, que alterou a carreira do magistério no estado e abriu caminho para a troca do ensino presencial por educação à distância (EAD) em escolas de áreas remotas, incluindo comunidades indígenas. A nova lei não considera a cultura oral dos indígenas, onde muitos se comunicam no idioma do seu povo, e as interações pela oralidade são fundamentais para o processo de aprendizagem. Reivindicando a revogação desta Lei, representantes de diversos povos indígenas têm ocupado a Seduc em Belém desde janeiro de 2025, exigindo a revogação da lei e a exoneração do secretário de educação.

Parafraseando Krenak, “a COP30 já começou”, com a mobilização dos indígenas contra a invisibilidade, pelo compartilhamento de decisões, transparência, e o seu direito à educação com qualidade. E esta é a questão fundamental: a COP30 deverá incluir os povos-floresta, entre eles os indígenas, nas discussões da Cúpula do Clima. Isto significa incluir na Conferência o acumulado de milhares de anos em que este povo tem de conhecimento da região, por habitar a Amazônia e com ela conviver. Neste contexto, além do clima, é importante discutir diversas questões que afligem os povos que moram na floresta, como por exemplo, o acesso a serviços de saúde.

·        Os desafios enfrentados pelos povos indígenas

De acordo com o Censo Demográfico de 2022 do IBGE, a população indígena na Amazônia Legal, que inclui estados como Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Amapá, Tocantins e Mato Grosso, é de aproximadamente 867.919 pessoas. Isso representa cerca de 51,2% da população indígena total do Brasil, que é de 1,7 milhão de pessoas.

A Amazônia Legal é a região com a maior concentração de indígenas no país. O estado do Amazonas, por exemplo, tem a maior população indígena, com cerca de 490.9 mil, o que representa 29% do total do Brasil.

Os povos indígenas da Amazônia falam mais de 180 línguas diferentes, pertencentes a diversas famílias linguísticas. Essa diversidade é um testemunho da riqueza cultural da região. Cada povo possui suas próprias tradições, cosmovisões e práticas de manejo ambiental, que contribuem para a conservação da biodiversidade.

As comunidades indígenas enfrentam enormes problemas, como as ameaças a seus territórios, feitas principalmente pelo avanço do desmatamento, garimpo ilegal, agropecuária e grandes obras de infraestrutura (como estradas e hidrelétricas), que colocam em risco os territórios e os modos de vida dos povos-floresta, inclusive indígenas; a falta de reconhecimento, isto é, uma certa invisibilização pelo poder público, que se soma ao fato de que muitas comunidades ainda lutam pela demarcação de suas terras, um processo que enfrenta resistência política e econômica; a precariedade da saúde e educação, serviços em que ainda há dificuldades de acesso e são limitados em muitas comunidades, agravando desigualdades e vulnerabilidades; e, claro, as mudanças climáticas, que causam devastadores impactos ambientais, como secas prolongadas e incêndios florestais, que afetam a toda população da floresta.

·        Um programa de cuidados intermediários para os HPPs

No que se refere ao acesso a serviços de saúde, uma boa solução se encontra na possibilidade de otimizar uma espetacular rede já existente, de Hospitais de Pequeno Porte (até 50 leitos), amplamente difundidos principalmente em pequenos municípios, garantindo alta capilaridade nos territórios. Hoje eles são subutilizados, menos de 30% da sua capacidade operacional.

É o que busquei discutir em contribuição para o livro A Saúde Coletiva na Amazônia (que pode ser baixado gratuitamente): “De acordo com o Ministério da Saúde, na Região Norte do Brasil há 435 HPP’s que disponibilizam 9.292 leitos, equivalente a 71,8% do total de hospitais na região, sendo que destes 303, detendo 7.071 leitos, representando 63,9% do total, pertencem à Rede SUS (CNES, 2019). O paradoxo com o qual lidamos neste contexto, diz respeito ao fato de que embora necessitando de equipamentos e recursos na rede de saúde, estes hospitais apresentaram uma taxa de ocupação de apenas 23% para o ano de 2018 (SIH/SUS, 2018). Ao mesmo tempo consomem a maior parte dos recursos da saúde nos pequenos municípios”.

O que se propõe é que essa rede de HPPs pode muito bem abrigar um Programa de Cuidados Intermediários, que se situa entre a Atenção Básica e Hospitalar, conectado aos serviços de referência nos territórios, Rede Básica, o que aumenta sua capacidade de atendimento, e oportuniza produzir um cuidado territorial robusto, resolutivo, operando de forma compartilhada com as medicinas tradicionais indígenas, e de outros povos que habitam a floresta. Tudo isto com participação comunitária, como é da tradição do SUS. 

Esse debate deve compor a pauta política da COP30, como soluções viáveis de organização da rede de serviços públicos, de baixo investimento e alto impacto, porque vai utilizar-se de uma rede já existente para implantação. 

Colocamos aqui essas questões como disparadoras de um debate necessário e urgente, no âmbito da saúde, e das questões que afligem as comunidades amazônicas, em especial os indígenas, diante de uma oportunidade importante de intervenção na região, como a COP30.

 

Fonte: Outra Saúde

 

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