quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

Como a Polônia lida com a memória do Holocausto?

No meio da floresta, a cerca de 120 quilômetros de Varsóvia, placas sinalizam o caminho para um "local nacional de memória".

Em janeiro de 2025, o músico e compositor Michael Zev Gordon retornou a esse ponto na cidade polonesa de Szumowo, onde seu avô, Zalman Gorodecki, foi assassinado junto a 1.500 judeus em agosto de 1941. Britânico de nascimento, Gordon soube do ocorrido apenas alguns anos atrás, quando leu memórias escritas por sua avó falecida. Antes, nunca se falou sobre isso na família.

"Cresci em meio a um grande silêncio, tão grande quanto o silêncio que há agora nesta floresta", diz o compositor. Sobre uma colina, vê-se pedras que marcam uma vala comum. "Desde que venho aqui, me sinto conectado ao meu avô, apesar de nunca ter conhecido ele", acrescenta.

Na sepultura, a fundação "Os Esquecidos", de Varsóvia, colocou uma placa com os nomes de alguns dos assassinados. Desde 2014, a fundação busca e marca locais menos conhecidos onde ocorreram massacres de judeus.

"Nosso trabalho se baseia em informações de comunidades locais que nos procuram porque querem honrar as vítimas. Sentem que há um vazio na história local", explica Agnieszka Nieradko, diretora da fundação.

·        Polônia, um palco do Holocausto

Os fuzilamentos em massa de judeus começaram imediatamente após o ataque alemão contra a Polônia, em 1939. A partir de 1941, quando a Alemanha atacou a União Soviética e também os territórios orientais poloneses sob ocupação soviética, tropas alemãs e aliados locais realizaram uma série de massacres.

Campos de concentração foram estabelecidos na Polônia ocupada, como Auschwitz, Treblinka, Sobibor, Belzec, Kulmhof e Majdanek. Dos quase 3,5 milhões de judeus poloneses que viviam no país antes de 1939, apenas algumas centenas de milhares sobreviveram ao Holocausto. A maioria porque foram deportados para a Sibéria entre 1940 e 1941.

Em 1945, o Estado comunista ficou com as propriedades de famílias judaicas, e os polonesas vítimas da guerra ficaram no centro das atenções.

Na ocasião, o Holocausto teve um papel secundário, embora cinco dos seis milhões de judeus assassinados tenham morrido em território polonês — três milhões eram cidadãos poloneses. Por décadas, porém, todas as vítimas foram rotuladas como "cidadãos da Polônia". Somente após a queda do comunismo, em 1989, a história dos judeus poloneses deixou de ser um tabu.

·        Auschwitz: um símbolo não apenas para os judeus

Piotr Cywinski, diretor do museu de Auschwitz, nas proximidades da cidade polonesa de Oswiecim, percebe um crescente interesse pela história da Shoah — termo em hebraico usado para enfatizar a natureza devastadora do Holocausto. Em 2019, 2,4 milhões de pessoas visitaram o museu, um recorde. "Grande parte dos nossos visitantes são jovens. E os professores que acompanham esses grupos geralmente já haviam estado aqui antes. Por isso, entendem o sentido dessas visitas", diz Cywinski à DW.

Somente em Auschwitz-Birkenau, o maior campo de concentração e extermínio alemão, um milhão de judeus foram assassinados. Das outras 100.000 vítimas, 75% eram poloneses não judeus. "Cada vítima polonesa tem entre 20 e 30 descendentes que mantêm sua memória. Consequentemente, Auschwitz também é um memorial para muitos poloneses. E isso é compreensível", indica Cywinski.

·        Poloneses associam Auschwitz às vítimas da Polônia

Segundo pesquisas realizadas pelo instituto de pesquisa de opinião CBOS para a Universidade Jaguelônica de Cracóvia, em 2020, 50% dos entrevistados na Polônia associavam Auschwitz principalmente às vítimas polonesas, enquanto 43% o viam principalmente como um lugar do Holocausto. 82% dos entrevistados entendiam que os poloneses ajudaram os judeus durante o Holocausto. Metade dos entrevistados afirmou que os judeus sofreram tanto quanto os poloneses.

Para o historiador do Holocausto Jan Grabowski, a história é distorcida quando perde o foco no Holocausto. 

Desde 2015, o 14 de junho é o Dia Nacional de Memória das vítimas dos campos de concentração e extermínio nazistas alemães na Polônia. A data foi escolhida porque os primeiros prisioneiros foram levados a Auschwitz em 14 de junho de 1940: cerca de 700 poloneses não judeus. O campo de extermínio para judeus, Auschwitz-Birkenau, foi estabelecido em 1941.

·        Vítimas polonesas em Treblinka

O historiador judeu-polonês Grabowski, que trabalha na Universidade de Ontario, no Canadá, se incomoda com as centenas de cruzes instaladas em Treblinka, em memória das cerca de 300 vítimas polonesas do campo de trabalho forçado daquele local. Elas fica a cerca de dois quilômetros do campo de extermínio onde os alemães assassinaram 900.000 judeus em câmaras de gás. Todos os anos, são realizados atos oficiais de homenagem e cerimônias católicas no local.

"Treblinka, o segundo maior cemitério judeu do mundo, está lentamente se tornando um local de martírio polonês, algo difícil de entender", afirma Grabowski.

Desde 2021, um monumento na estação de Treblinka recorda um polonês que deu água aos judeus que chegavam no verão de 1942 e, por isso, teria sido assassinado pelos alemães. Esta é a versão oficial do Instituto Pilecki, fundado em 2017 pelo governo nacional-conservador do partido Lei e Justiça (PiS).

"Não há provas históricas de que esse homem em particular tenha sido assassinado por essa ação. O que está comprovado historicamente é o fato de que os judeus sedentos, amontoados em vagões de gado, tinham que pagar pela água com dinheiro e objetos de valor", afirma Grabowski.

·        Um tema delicado

O PiS frequentemente causou controvérsias com sua política nacionalista, como em 2018 com a chamada "lei do Holocausto". Ela previa uma pena de até três anos de prisão para quem atribuísse aos poloneses a participação em crimes nazistas, incluindo o Holocausto. Após protestos dos Estados Unidos, principal aliado político da Polônia, a lei foi flexibilizada.

O acalorado debate que ocorreu na época mostrou o quão delicado é o tema do Holocausto na Polônia.

Segundo Agnieszka Nieradko, da fundação "Os Esquecidos", é necessário tempo para que a sociedade esteja disposta a debater temas difíceis. Prova disso é que, somente agora, 80 anos após o fim da guerra, novos locais de massacres de judeus estão sendo encontrados. "A consciência da história está crescendo, talvez porque aqueles que lidam com ela agora não carregam sentimentos de culpa e não se sentem ameaçados ao tratar da história judaica", afirma.

Na floresta de Szumowo, o compositor britânico Michael Zev Gordon também busca inspiração para sua música. Sua última obra, "Uma espécie de feitiço", que será lançada em Londres e na Polônia, baseia-se em sua história familiar e é uma mistura de música, memórias e poesia. "Sou neto do meu avô e quero transmitir sua história aos meus filhos. Assim, ela perdurará e meu avô não será esquecido".

 

¨      Auschwitz: salvo-conduto para Netanyahu divide a Polônia

Há lugares em solo polonês que têm um profundo significado não só para os poloneses, mas também para os judeus e israelenses. Esses lugares são os campos de concentração e extermínio onde os nazistas alemães assassinaram milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

Isso explica, em algum nível, o recente debate acalorado sobre se o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que é procurado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), deveria ter passagem segura no país para participar, , nesta segunda-feira (27/01), do 80º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz.

O TPI é a corte internacional encarregada de processar indivíduos por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Com sede em Haia, na Holanda, o tribunal não tem polícia própria para impor a prisão e, por isso, depende de que a Justiça dos 124 países signatários valide a decisão.

Em outubro passado, o tribunal emitiu um mandado de prisão contra Netanyahu e seu ex-ministro da defesa Yoav Gallant, acusando-os de crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Faixa de Gaza. A Corte acusa os israelenses de usarem a fome como método de guerra.

Israel não compõe o TPI e não reconhece sua jurisdição, mas a Polônia é um membro fundador e, como signatária, estaria legalmente obrigada a executar o mandado caso Netanyahu vá ao país.

De acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, mais de 47 mil pessoas foram mortasem 15 meses de incursão militar de Israel no território palestino, uma resposta aos ataques do Hamas ao sul de Israel em 7 de outubro de 2023, que mataram 1.200 pessoas.

<><> Polônia concordou com salvo-conduto 

Citando "circunstâncias absolutamente extraordinárias", o presidente polonês Andrzej Duda, em 9 de janeiro, pediu ao primeiro-ministro da Polônia, Donald Tusk, que garantisse salvo-conduto para Netanyahu, caso ele decidisse participar do evento.

Em uma rara demonstração de unanimidade entre o governo e o presidente, Tusk aprovou uma resolução apoiando a solicitação de Duda no mesmo dia.

No entanto, a resolução não mencionava Netanyahu pelo nome, o que era esperado, já que o primeiro-ministro israelense não planeja comparecer pessoalmente, como informou o jornal israelense The Times of Israel em 9 de janeiro.

Então, se Netanyahu não planejava comparecer, por que o governo polonês aprovou a resolução?

<><> 'Homenagem ao povo judeu'

A resolução afirmava que a garantia de segurança para os representantes israelenses era "parte do tributo ao povo judeu, cujos filhos e filhas foram vítimas do Holocausto perpetrado pelo Terceiro Reich".

O próprio Tusk disse que o caso era "muito delicado". "Por um lado, temos o veredicto de um tribunal internacional, mas, por outro, está absolutamente claro para mim que qualquer representante das autoridades israelenses deve ter todo o direito e a sensação de segurança ao visitar o campo de Auschwitz, especialmente no aniversário [de sua libertação]", disse o primeiro-ministro.

<><> Reações críticas na Polônia

A decisão gerou protestos na Polônia. Um dos primeiros críticos da postura do governo foi o polonês ex-presidente do TPI, Piotr Hofmanski.

Hofmanski destacou a obrigação incondicional da Polônia, segundo a lei internacional, de executar o mandado. Mas ele enfatizou que as autoridades polonesas não infringiram a lei até o momento e só o fariam se Netanyahu entrasse em solo polonês sem ser preso.

A resolução que se compromete a não prendê-lo também foi recebida com ampla oposição em todo o espectro político polonês. Jornalistas, especialistas, comentaristas políticos, autoridades judiciais e a oposição — da extrema esquerda à ultradireita — condenaram a decisão, embora por motivos diferentes.

<><> Reflexo nas pesquisas

Uma pesquisa de opinião encomendada pelo meio de comunicação polonês Wirtualna Polska e conduzida pela United Surveys mostrou que quase 60% dos entrevistados acham que a Polônia deveria prender o primeiro-ministro israelense se ele comparecesse à cerimônia em Auschwitz. Apenas 24,2% são a favor de garantir a Netanyahu um salvo-conduto, e 16,6% se dizem indecisos.

Ativistas pró-palestina organizaram um protesto em Varsóvia, durante o qual centenas de pessoas gritaram "Prendam Netanyahu!" e "O governo polonês tem sangue em suas mãos".

Um grupo de ONGs, incluindo a Iniciativa Leste (uma organização que luta pela justiça social e contra as mudanças climáticas), a Action for Democracy e a All-Poland Women's Strike, também escreveu uma carta aberta pedindo a Tusk que retire a resolução.

O Conselho Supremo da Ordem dos Advogados da Polônia apelou ao presidente e ao governo para que aderissem incondicionalmente ao Estado de direito e o implementassem em palavras e ações.

Em uma carta aberta, o conselho enfatizou que as decisões de tribunais e cortes internacionais não devem ser vistas como uma questão de escolha e que a não execução do mandado do TPI minaria "a confiança dos cidadãos no Estado de direito na Polônia". Eles concluíram dizendo que a decisão é perigosa, mesmo em casos de segurança nacional.

<><> O papel dos EUA

A referência à segurança nacional do país pode ter sido uma resposta aos relatos da mídia sobre outra suposta motivação por trás da resolução.

A prisão do chefe do governo israelense no local mais notório e simbólico do Holocausto, sem dúvida, provocaria um clamor internacional e desencadearia uma resposta do recém-empossado governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, um forte aliado da Polônia e de Israel.

A mídia polonesa citou fontes anônimas próximas ao governo que afirmaram que a resolução tinha como objetivo principal evitar o risco de uma crise nas relações entre os EUA e a Polônia logo no início da segunda gestão Trump.

Além disso, em 9 de janeiro, a Câmara dos Representantes dos EUA aprovou um projeto de lei que ameaça impor sanções contra qualquer pessoa que ajude o TPI a processar cidadãos americanos ou aliados dos EUA, o que inclui Israel.

<><> O presidente preparou uma armadilha para Donald Tusk?

Quer tenha sido sua intenção ou não, o presidente Duda, que deve deixar o cargo no final de seu segundo mandato, em agosto, criou uma situação difícil para o governo de Tusk quatro meses antes da eleição presidencial do país.

Essa eleição pode determinar se o primeiro-ministro polonês terá um aliado no palácio presidencial e, portanto, um caminho potencialmente mais fácil para implementar suas promessas de campanha ou se enfrentará a perspectiva de trabalhar com um segundo presidente ligado ao partido de oposição Lei e Justiça (PiS), como é o caso de Duda.

A resolução aprovada por Tusk e seu governo pode não apenas custar votos ao seu aliado e candidato presidencial preferido, Rafal Trzaskowski, mas também pode ter prejudicado a credibilidade da Polônia no cenário global, com exceção de suas relações com a Casa Branca de Trump.

 

Fonte: DW Brasil

 

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