sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Como exército rebelde budista ajudou a resgatar os brasileiros escravizados por máfia de golpes cibernéticos

Um exército de rebeldes budistas foi essencial para a libertação dos brasileiros escravizados por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar. Após serem mantidos reféns por três meses, Phelipe de Moura Ferreira e Luckas Viana dos Santos retornaram ao Brasil nesta quarta-feira (19).

A operação de resgate internacional teve participação do Exército Democrático Budista dos Karen (DKBA).

Formado por dissidentes das Forças Armadas de Mianmar, o grupo também colaborou com o resgate de outros 260 imigrantes, após pressões de organizações da sociedade civil que combatem o tráfico de pessoas.

Cintia Meirelles, diretora da ONG The Exodus Road, que prestou assistência às famílias de Phelipe e Luckas, explica ao g1 como a organização ajudou a pressionar o exército budista a participar.

A operação não foi fácil e contou com a ajuda do governo da Tailândia, que faz fronteira com a região das máfias.

·       Caos em Karen

Estereótipos ocidentais costumam associar o budismo, religião predominante no país, apenas ao pacifismo. A prática em Mianmar é de disputa entre grupos armados, monges radicais, conflitos étnicos e religiosos e até acusações de genocídio contra o povo muçulmano rohingya.

Na fronteira entre Mianmar e a Tailândia fica o estado de Karen, que o governo central do país não consegue controlar totalmente.

É lá que vive a minoria dos povos karen, composta por uma população de 3,5 milhões de pessoas, grande parte de religião budista. O território é dominado por facções armadas que lutam por um sistema independente na região, incluindo o Exército Democrático Budista de Karen.

O DKBA foi criado em 1994 após romper com o Exército de Libertação Nacional Karen, de predominância cristã. É uma das facções rebeldes na fronteira com a Tailândia que lutam pelo controle de Karen.

·       Milicianos budistas?

Segundo a BBC, esses grupos armados são acusados ​​de serem complacentes com as máfias cibernéticas na região. Em modelo clássico de milícia, os comandantes locais decidiriam quem pode construir ou administrar os negócios, e parte dos lucros financiaria a guerra entre as facções.

Cintia Meirelles explica como foram feitas as negociações para o DKBA interferir no resgate. O impulso veio da Tailândia, que aceitou cortar parte dos suprimentos que fornece à região vizinha.

“A gente começou a fazer pressão como sociedade civil com outras organizações locais junto ao governo da Tailândia e vários países do mundo”, explica. “Por que a Tailândia? Porque o país oferece energia e alimento para Mianmar.”

·       Estrangulamento tailandês

No início de fevereiro, a Tailândia cortou o fornecimento de eletricidade, internet e combustível para cinco áreas de fronteira em Mianmar na tentativa de bloquear os centros de golpes cibernéticos.

A pressão se intensificou na região após o sequestro do ator chinês Wang Xing, que foi resgatado no início do ano na região.

Depois disso, finalmente o comandante do exército do DKBA prometeu ações para reprimir essas organizações criminosas e resgatar as vítimas de tráfico humano na região.

“A partir de agora, o DKBA lançará uma repressão aos estabelecimentos ilegais em nossa área de responsabilidade em Mianmar. Se algum for encontrado, os operadores serão expulsos e as vítimas serão resgatadas", afirmou o comandante do exército, o coronel San Aung, ao jornal tailandês "The Nation".

As organizações entregaram ao DKBA uma lista com os nomes de centenas de imigrantes identificados como vítimas de tráfico humano na região.

A partir dessa lista, o exército budista identificou os brasileiros e garantiu sua segurança até serem transferidos de Mianmar a um centro de detenção na Tailândia, onde foi comprovado que eram vítimas de tráfico.

·        Tráfico humano

O crime de tráfico humano é comum no Sudeste Asiático, região cercada de instabilidade política e conflitos internos e religiosos que remontam à independência da Birmânia do Reino Unido, em 1948.

Enganados por falsas promessas para trabalhar na área de tecnologia, os brasileiros foram submetidos a uma rotina de trabalho de 22 horas diárias. Eles eram obrigados a praticar golpes cibernéticos, sujeitos a punições como agachamentos e eletrochoques.

Em 9 de fevereiro, antes da operação de resgate do DKBA, Luckas e Phelipe conseguiram fugir com outros 85 imigrantes.

Como seus nomes já estavam na lista, eles foram localizados, detidos pelo exército budista e transferidos para um centro de detenção em Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar. De lá, finalmente conseguiram voltar para casa.

¨      Tráfico humano: veja a cronologia que levou dois brasileiros a serem escravizados em Mianmar 

Dois brasileiros que estavam sendo mantidos reféns havia mais de três meses por uma máfia de golpes cibernéticos em Mianmar, no Sudeste Asiático, conseguiram fugir do local e foram resgatados com a ajuda da ONG internacional "The Exodus Road" no último domingo (9).

Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, e Phelipe de Moura Ferreira, de 26 anos, aceitaram promessas falsas de emprego em 2024 e acabaram sendo vítimas de tráfico humano em KK Park, Mianmar.

O local é considerado uma "fábrica de golpes online" e ambos foram escravizados para aplicarem golpes.

Phelipe e Luckas conseguiram fugir ao lado de centenas de imigrantes. A fuga foi combinada pelos reféns, que conseguiram avisar familiares e ativistas sem que fossem descobertos pelos mafiosos, que monitoravam tudo.

Eles foram detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista) e, na sequência, foram levados para um centro de detenção. Três dias depois, foram transferidos para a Tailândia, onde aguardam a embaixada brasileira para que possam ser repatriados.

<><> O g1 elaborou uma linha do tempo que destaca os principais acontecimentos do caso. Veja abaixo:

·        Outubro de 2024

A mãe do paulistano Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, conta que o filho tem amigos na Ásia e recebeu uma proposta de um deles que morava na região para trabalhar em um cassino nas Filipinas no começo de 2024.

Luckas foi para lá, começou a trabalhar no cassino, mas meses depois o estabelecimento fechou. Como não tinha dinheiro para voltar ao Brasil, ele procurou por outras oportunidades de trabalho pela região.

Foi quando recebeu pelo Telegram o convite para trabalhar na área da tecnologia em Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar. A viagem foi marcada para 7 de outubro.

"Ele falou que ia para Tailândia que lá era mais barato e que o dinheiro que tinha dava pra ir pra lá. Estranhei o primeiro telefonema porque ele disse que não estava bem", afirmou Cleide Viana, em entrevista ao Fantástico em dezembro de 2024.

Luckas acabou sendo levado pelos mafiosos para KK Park, em Minamar, e passou a ser escravizado pela máfia de golpes cibernéticos, sendo obrigado a aplicar golpes.

·        Novembro de 2024

Já o outro paulistano, Phelipe de Moura Ferreira, foi feito refém em novembro de 2024.

O pai dele Antônio Ferreira, conta que o filho já havia trabalhado em 2023 em Laos, no sudeste da Ásia, em Dubai, nos Emirados Árabes e em Filipinas. Em 2024, ele retornou ao Brasil e teve uma proposta de emprego no Uruguai. Então, decidiu sair novamente do país para trabalhar fora.

Quando estava no Uruguai, ele recebeu pelo Telegram uma proposta de emprego na área da tecnologia na Tailândia. "Essa suposta empresa comprou a passagem dele para Tailândia, do Uruguai para Tailândia", diz o pai.

Phelipe relatou, na época, que um motorista ia pegá-lo no hotel. Foi esse motorista que o levou para a área em Mianmar, onde se tornou refém com outros imigrantes, sendo obrigado a aplicar golpes. O local é o mesmo onde Luckas já estava. Os dois, até então, não se conheciam.

·        Dezembro de 2024

Phelipe ficou semanas sem dar notícia, até que conseguiu se comunicar no começo do mês sem que ninguém descobrisse, já que tudo era monitorado pelos criminosos.

"Eu estava desesperado. Eu liguei para a polícia, e a polícia falou: "Seu Antônio, o senhor tem que procurar a embaixada do Brasil ou Itamaraty. Aí eu liguei para o Ministério de Relações Exteriores e eles me passaram o WhatsApp e o contato da Embaixada do Brasil lá em Mianmar. Disseram que ia resgatar ele, mas isso se percorreu por dias e nada. Não fizeram mais nada, nada mesmo", disse Antônio.

Luckas também conseguiu se comunicar com a família em dezembro. A mãe dele passou a divulgar o caso nas redes sociais pedindo ajuda. Ela ressalta também a falta de ajuda por parte do Ministério das Relações Exteriores.

"Meu filho aceitou uma vaga de emprego e foi levado para serviço escravo em Mianmar, dia 8 de dezembro um dia antes do meu aniversário, o chefe pediu 20 mil dólares. Peço a oração de todos , meu filho não está bem, está sendo punido por não conseguir aplicar golpes", escreveu nas redes sociais a mãe de Luckas, na época.

As duas famílias passaram, então, a ser assistidas pela ONG The Exodus Road", organização civil internacional de combate ao tráfico de pessoas, e também se conheceram para se ajudarem.

O primeiro contato com a ONG foi feito em 11 de dezembro pela família de Phelipe.

"Graças a Deus que a Polícia Federal me passou o contato para esse anjo chamado Cíntia Meireles, que é da ONG Exodus. Ela imediatamente já ligou para mim, já orientou a gente, coisa que a embaixada do Brasil não fez, e nem o Ministério de Relações Exteriores fez. De lá pra cá tivemos esperança de encontrar nosso filho", afirmou Antônio, pai de Phelipe, ao g1.

·        15 de janeiro de 2025

Em 15 de janeiro deste ano foi feita uma reunião entre integrantes da ONG "The Exodus Road" com representantes do governo de Mianmar e da Tailândia para a liberação de 371 vítimas de tráfico de pessoas, entre elas os dois brasileiros.

Uma lista feita pelos integrantes da organização, reunindo as nacionalidades das centenas de vítimas, foi apresentada às autoridades.

·        8 de fevereiro de 2025

Phelipe de Moura Ferreira avisou o pai que tentaria a fuga no último sábado (8) junto com outros imigrantes.

Nas mensagens, às quais o g1 teve acesso, ele contou que ia cruzar um rio com outras 85 pessoas e correr por dois quilômetros. Phelipe pediu orações e ainda se despediu caso algo acontecesse com ele.

"Ora por mim e pede para minha vó, Iorrana e todo mundo orar por nós para que tudo dê certo. São 85 pessoas. Eu só quero que tudo dê certo. Eu te amo, pai. Se acontecer algo comigo, saiba que eu tentei ao máximo", escreveu.

Luckas Viana também avisou a família. E na sequência, ativistas foram informados sobre a fuga e já se mobilizaram em relação às documentações que comprovassem que os dois eram vítimas de tráfico humano.

·        9 de fevereiro de 2025

Phelipe e Luckas conseguiram fugir entre a noite de sábado (8) e madrugada de domingo (9) com centenas de imigrantes. Os detalhes de como conseguiram fugir não foram divulgados.

Quando fugiram, acabaram sendo detidos por agentes do DKBA (Exército Democrático Karen Budista). O grupo, que é formado por rebeldes dissidentes das Forças Armadas de Mianmar, encaminharam todos a um centro de detenção local após negociações com a ONG Exodus Road.

A ONG confirmou a eles a fuga dos brasileiros e outros estrangeiros de 21 países feita no último sábado, apresentando a lista e informações.

"Essa operação da DKBA [de deter os brasileiros] é uma operação pontual onde eles vão libertar essas 371 vítimas. Eles já estavam na lista de vítimas", explicou Cíntia Meireles, diretora da ONG, ao g1.

·        12 de fevereiro de 2025

Phelipe, Luckas e outros imigrantes foram transferidos para um centro de detenção em Mae Sot, cidade tailandesa que faz fronteira com Mianmar, onde estão sendo feitos procedimentos para comprovarem que são realmente vítimas de tráfico humano.

Os dois entraram em contato com as famílias e passam bem. Eles aguardam a embaixada brasileira os retirarem do centro de detenção para conseguirem ser repatriados.

"No caso deles, a gente já tem toda a documentação. É um procedimento legal e em 15 dias eles serão liberados. Tendo a liberação, eles vão ser encaminhados para a embaixada que deve, aí sim, cumprir o repatriamento que foi já solicitado pela dona Cleide [mãe de Luckas] e pelo senhor Antônio [pai de Phelipe] junto a DPU, que é a carta de hipossuficiência com pedidos de repatriamento de vítimas de tráfico no exterior".

·        13 de fevereiro de 2025

O pai de Phelipe de Moura Ferreira contou ao g1 que fez videochamada com o filho na manhã desta quinta-feira (13) e viu as marcas das agressões que ele sofreu.

"Ele ligou para mim e mostrou o machucado dele. Está com perna toda vermelha, braço todo vermelho, de tanto choque e paulada que levava lá. Aqueles malditos", afirmou Antônio Carlos Ferreira.

Conforme Antônio, ele foi avisado nesta quinta-feira (13) que no sábado (15) a embaixada brasileira irá retirar Phelipe e Luckas da base militar onde estão em Mae Sot, Tailândia, e irá levá-los para Bangkok.

A mãe de Luckas também foi informada na quinta-feira (13) sobre essa retirada que será feita pela embaixada e se diz aliviada. "Ele me ligou na madrugada e está bem, graças a Deus. E agora eu estou bem", afirmou Cleide Viana.

 

Fonte: g1

 

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