Com aval de
militares, Brasil vendeu spray de pimenta à Venezuela às vésperas de eleição
contestada
Encravada na
fronteira entre o Brasil e a Venezuela, a cidade
brasileira de Pacaraima, com pouco mais de
18 mil habitantes, virou a primeira parada para milhares de imigrantes
venezuelanos que fogem da crise econômica e da repressão política do regime
de Nicolás Maduro.
Sem alarde,
enquanto a Venezuela se preparava para as eleições presidenciais que poderiam
colocar um fim a 11 anos de chavismo, a cidade se transformou, também, na
última parada de uma carga particularmente importante para o governo de Maduro.
Dados obtidos com
exclusividade pela BBC News Brasil apontam que foi por lá que passaram pelo
menos dois carregamentos que, somados, totalizam 20 mil frascos de spray de
pimenta exportados pelo Brasil ao país vizinho.
O produto é
comumente utilizado por forças de segurança de todo o mundo para controlar
protestos como os que foram realizados no país após a contestada declaração de
vitória de Maduro para mais um mandato.
De acordo com um
relatório da Organização das
Nações Unidas (ONU),
os protestos foram respondidos com detenções arbitrárias e diversas violações
de direitos humanos.
Em comunicado sobre
o assunto, o governo da Venezuela rejeitou "categoricamente" as
alegações do documento e classificou o relatório como "vulgar" e
"panfletário", elaborado para cumprir ordens do governo
norte-americano.
A venda chama
atenção porque a sua exportação teve o aval do Ministério da Defesa e do
Exército Brasileiro, apesar de ter sido registrada em um momento em que a
comunidade internacional e até mesmo o Brasil já tinham dado demonstrações de
preocupação com relação ao tratamento dado pelo regime de Maduro à oposição
venezuelana.
Procurado, o
governo brasileiro disse que a exportação do produto ocorreu dentro das normas
vigentes. O governo da Venezuela não se manifestou.
A empresa ou as
empresas responsáveis pela venda não foram identificadas.
A BBC News Brasil
questionou o Exército sobre o assunto, mas o órgão informou que não poderia
divulgar o nome da companhia que vendeu o produto à Venezuela.
Da mesma forma, não
há informações sobre se a compra foi feita por empresas privadas da Venezuela
ou pelo governo do país.
Entidades que atuam
na defesa dos direitos humanos e especialistas em Relações Internacionais
ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, criticaram a venda desse tipo de
artefato para a Venezuela.
"É claramente
equivocada a decisão de exportar materiais, mesmo que não letais, para um país
que sofreu uma virada autoritária significativa nos últimos anos e que tem um
histórico de repressão violenta contra direitos políticos da população",
disse à BBC News Brasil o consultor sênior do Instituto Sou da Paz Bruno
Langeani.
Essas entidades
também chamam atenção para o fato de que a compra desses artefatos ter ocorrido
nos meses que antecederam a eleição de 28 de julho deste ano, cujo resultado
não foi reconhecido por diversos países, inclusive o Brasil.
·
Como
foi a venda dos sprays de pimenta
Os dados sobre a
exportação do spray de pimenta do Brasil à Venezuela foram obtidos pela BBC
News Brasil junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e
Serviços (MDIC).
A base de dados da
pasta dá a dimensão da compra venezuelana.
Os 20 mil frascos
importados pela Venezuela fizeram do país o maior comprador do produto em 2024.
Em segundo lugar ficou o Chile, com 4 mil.
A compra feita pela
Venezuela em 2024 é maior que os 9,1 mil somados de todas as compras feitas por
outros países.
De acordo com os
dados obtidos pela BBC News Brasil, os frascos saíram de São Paulo até Roraima
e de lá foram enviados à Venezuela.
O produto foi
remetido ao país vizinho em duas cargas nos meses de junho e de julho.
As eleições
presidenciais na Venezuela foram realizadas no dia 28 de julho e o resultado
divulgado no dia 29 de julho.
Maduro foi
declarado o vencedor, o que desencadeou uma série de protestos por todo o país,
levou à prisão de dezenas de oposicionistas e à fuga do então
candidato de oposição, Edmundo Gonzales, considerado vitorioso por países como os
Estados Unidos.
Por se tratar de um
material classificado como produto de defesa, o trâmite para a sua exportação é
diferente das demais mercadorias fabricadas ou exportadas pelo Brasil.
Em geral, empresas
de defesa precisam de uma autorização do governo brasileiro para dar início às
negociações e, ao fim delas, realizar a exportação.
Na maior parte dos
casos, esse processo envolve o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o
Ministério da Defesa e o Exército.
"A ideia é que
o governo tenha o controle sobre quais países terão acesso a produtos
sensíveis", diz David Magalhães, professor de Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
"O objetivo é
evitar que a exportação de armas e produtos de defesa possa ir na contramão da
política externa do país. Por isso que, em geral, há uma análise do risco
político feito pelo Itamaraty."
No caso de produtos
considerados não letais, como os frascos de spray de pimenta, esse processo é
regulamentado por uma portaria de dezembro de 2022 que estabelece que esse
controle é feito apenas pelo Ministério da Defesa e o Exército.
O spray de pimenta
é um dos produtos mais utilizados pelas forças de segurança de todo o mundo
para conter protestos.
Quando aplicado na
pele, pode causar vermelhidão e inchaço no rosto.
Nos olhos, pode
causar lacrimejamento intenso e cegueira temporária por até 30 minutos. A
exposição contínua pode alterar a sensibilidade da córnea.
Nas mucosas do
nariz e da boca, a intensidade e a duração dos efeitos dependem da área
atingida e do tempo de exposição.
·
Eleição
controversa e repressão
As eleições de
julho deste ano na Venezuela foram marcadas por uma série de polêmicas.
A expectativa junto
à comunidade internacional era de que o processo pudesse restabelecer, ao menos
em parte, a normalidade política no país governado pelo chavismo desde 1999.
Pelo menos 7,7 milhões de
pessoas emigraram da Venezuela durante a última década, segundo o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
A primeira grande
controvérsia deste processo aconteceu em junho de 2023, quando as autoridades
eleitorais proibiram Maria Corina
Machado,
a principal líder da oposição venezuelana, de disputar as eleições.
A segunda aconteceu
em março deste ano, quando as mesmas autoridades vedaram a candidatura da
substituta de Maria Corina, Corina Yoris, para disputar as eleições.
A saída encontrada
pela oposição foi se aglutinar em torno do diplomata aposentado Edmundo
González.
No dia 2 de agosto,
quatro dias depois das eleições, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciou
que Maduro havia sido o vencedor das eleições com 67% dos votos.
A oposição, no
entanto, contestou os resultados, alegou que o vencedor havia sido González e
acusou o governo de fraudar as eleições.
A oposição exigiu,
ainda, a apresentação por parte do CNE das atas de votação que poderiam
comprovar os votos em Maduro.
Maduro chegou a
alegar que o país teria sofrido um ataque hacker no dia das eleições e que, por
isso, a apresentação das atas atrasou.
"A Venezuela
sofreu um ataque à noite. Um hacker massivo. Você sabe que país é
(responsável). Não vou dizer qual é. Foi um ataque hacker massivo no sistema de
transmissão (de dados) do CNE porque os demônios não queriam que se
totalizassem (os dados de votação)", disse Maduro.
"Como chefe
político e líder revolucionário da Venezuela, digo que o Partido Socialista da
Venezuela está pronto para apresentar 100% das atas eleitorais das eleições de
domingo. E espero que cada candidato tenha a mesma postura de reconhecer as
atas", declarou após as eleições.
Mas apesar de
prometer que apresentaria as atas, o governo de Maduro nunca divulgou os
documentos.
Em meio ao impasse,
diversos protestos contra o governo foram realizados pelo país. Em resposta, a
gestão de Maduro teria recrudescido a repressão.
Um relatório da
Missão Internacional Independente da ONU de Apuração de Fatos sobre a Venezuela
divulgado em outubro deste ano apontou uma série de supostas violações de
direitos humanos praticadas pelo regime após as eleições.
Entre elas estaria
a prisão arbitrária de centenas de pessoas, entre elas 158 menores de idade.
Além disso, pelo
menos 25 pessoas teriam sido mortas por armas de fogo durante os protestos.
Também há relatos sobre tortura e desaparecimentos forçados.
"Estas
violações, que incluem detenções arbitrárias, tortura e violência sexual
cometidas no âmbito de uma política discriminatória, constituem o crime contra
a humanidade de perseguição com base em razões políticas, devido à identidade
das vítimas como membros da oposição ao Governo ou percebidas como tal, ou
simplesmente críticas ao Governo", disse um trecho do relatório.
O governo da
Venezuela vem rebatendo as acusações afirmando que é vítima de uma campanha
internacional de difamação.
No mês anterior, em
resposta a outro relatório da ONU, classificou o documento como "um sinal
claro do desvio errático liderado pelas instituições do sistema da ONU"
que estariam "deslocadas em suas funções e se transformando em
instrumentos de coerção e chantagem contra povos e governos soberanos".
Na avaliação do
diretor adjunto para Américas da organização não governamental Human Rights
Watch, Juan Papier, a repressão na Venezuela piorou após as eleições.
"Isso se
baseia em um longo histórico do governo Maduro usando armas letais ou menos
letais para reprimir manifestantes de forma sistemática e cometer abusos que
fazem parte de um padrão mais amplo de violações sistemáticas de direitos
humanos", diz Papier à BBC News Brasil.
Sem mencionar
diretamente o caso da venda de spray de pimenta do Brasil à Venezuela, Papier
afirma que países democráticos deveriam tomar precauções com relação aos seus
produtos.
"Governos
democráticos deveriam se certificar que nenhuma arma que eles vendam para a
Venezuela seja usada para reprimir manifestantes."
Um militante que
atua na defesa dos direitos humanos na Venezuela e que falou à BBC News Brasil
sob anonimato disse que ainda não teriam sido encontradas evidências de que as
forças de segurança do país usaram spray de pimenta brasileiro contra
manifestantes venezuelanos.
Ele disse, porém,
que a maior parte das entidades tem sido cautelosa em fazer críticas ao governo
brasileiro por conta do posicionamento crítico mais recente adotado pelo país
em relação ao regime Maduro.
Para Magalhães,
"considerando o risco de esses artefatos serem usados para reprimir
manifestações legítimas, o Brasil não deveria ter autorizado a exportação de
spray de pimenta para a Venezuela".
·
Exportação
em meio a estremecimento diplomático
A exportação do
spray de pimenta para o regime de Maduro aconteceu em um momento de inflexão da
política externa brasileira em relação à Venezuela.
Nos últimos dois
anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) saiu de uma postura de apoio
à crítica em relação à atuação de Maduro.
As tensões levaram
a Venezuela a
convocar o seu embaixador no Brasil de volta a Caracas. Na linguagem
diplomática, a convocação de um diplomata representa uma demonstração de grave
discordância com relação a outro país.
Ao assumir seu
terceiro mandato, Lula estabeleceu como uma de suas metas restabelecer as
relações diplomáticas com a Venezuela, rompidas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), e auxiliar o país
a retomar o diálogo internacional.
Para isso, reabriu
a embaixada brasileira em Caracas, nomeou uma nova embaixadora e recebeu Maduro
em Brasília com honras de chefe de Estado durante a cúpula de líderes da
América do Sul, em maio de 2023.
Durante esse
encontro, Lula afirmou que as alegações de que Maduro comandaria um regime
autoritário faziam parte de uma "narrativa" a ser combatida pelo
líder venezuelano.
No entanto, nos
bastidores, o governo brasileiro aguardava as eleições presidenciais venezuelanas
de 2024 como um teste para Maduro.
Em dezembro de
2023, as autoridades brasileiras tiveram mais um motivo de preocupação em
relação à Venezuela.
Maduro realizou um
plebiscito sobre a incorporação da região de Essequibo, um território
atualmente controlado pela Guiana rico em petróleo e outros recursos naturais,
mas que é historicamente reivindicado pela Venezuela.
Em meio à escalada
das declarações dos líderes dos dois países, o Brasil chegou a enviar tropas
para reforçar as fronteiras em Roraima, numa demonstração de que não permitiria
o avanço de militares venezuelanos pelo território brasileiro no caso de uma
eventual incursão do país sobre Essequibo.
Embora contrariado
com a disputa territorial, o governo brasileiro não condenou diretamente o
governo venezuelano e liderou um encontro entre os presidentes dos dois países,
em dezembro, onde os dois países prometeram evitar um aumento das tensões.
A postura do Brasil
mudou, no entanto, em março de 2024, quando as autoridades eleitorais da
Venezuela impediram Maria Corina Machado e sua substituta, Corina Yoris, de
disputarem a eleição.
Lula classificou o
impedimento como "grave", e o Itamaraty emitiu nota expressando
preocupação com o processo eleitoral.
O governo
venezuelano rebateu, afirmando que a nota brasileira parecia ter sido escrita
pelo "Departamento de Estado dos Estados Unidos".
Às vésperas da
eleição, Lula voltou a criticar Maduro por dizer que o país poderia viver um
"banho de sangue" caso não vencesse as eleições.
O presidente
brasileiro disse que a única chance de a Venezuela voltar à normalidade seria
por meio de um processo eleitoral respeitado por todos.
O Brasil, assim
como outros países como Colômbia e México, não reconheceu a vitória de Maduro
nas urnas e pediu que as atas das urnas fossem apresentadas, o que não
aconteceu até agora.
Para o professor
David Magalhães, a exportação dos milhares de frascos de spray de pimenta à
Venezuela no momento em que o governo brasileiro vinha fazendo manifestações
críticas em relação ao governo Maduro seriam uma amostra de como a exportação
de produtos de defesa no Brasil nem sempre atende à agenda de política externa
do país.
"O que minhas
pesquisas mostram é que definitivamente não existe alinhamento da política de
exportação de armas com a política externa do Brasil", diz Magalhães.
"O Brasil, por
exemplo, já vendeu aviões Super Tucanos à Colômbia que depois foram usados
contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), alinhadas à
esquerda."
Magalhães explica
que a força da indústria de Defesa no Brasil acabaria se sobrepondo às agendas
políticas do governo.
"A indústria
de Defesa precisa exportar por contingências econômicas, uma vez que o governo
brasileiro não consegue, sozinho, dar conta da oferta", diz o professor.
"O que temos
visto é uma postura um pouco mais relaxada dos órgãos responsáveis por dar a
anuência a estas vendas."
Procurado pela
reportagem, o governo Lula informou que não exporta spray de pimenta,
atribuindo essa prática exclusivamente a empresas privadas e reiterando que as
exportações seguiram as normas aplicáveis.
"A exportação
para a Venezuela e para os demais dez países que constam nas estatísticas
oficiais [...] são realizadas por empresas privadas", disse o Planalto em
nota.
O Ministério da
Defesa informou que "a exportação dos produtos foi autorizada e atendeu à
regulamentação vigente para a venda de produtos de defesa ao exterior".
Já o Exército disse
que sua competência envolve apenas "a verificação documental sobre o
processo em tela, seguindo a legislação em vigor, não cabendo qualquer ilação
acerca de outros assuntos".
A BBC News Brasil
enviou questionamentos à Embaixada da Venezuela no Brasil, mas não houve
resposta.
Fonte: BBC News
Brasil
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