sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Com aval de militares, Brasil vendeu spray de pimenta à Venezuela às vésperas de eleição contestada

Encravada na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, a cidade brasileira de Pacaraima, com pouco mais de 18 mil habitantes, virou a primeira parada para milhares de imigrantes venezuelanos que fogem da crise econômica e da repressão política do regime de Nicolás Maduro.

Sem alarde, enquanto a Venezuela se preparava para as eleições presidenciais que poderiam colocar um fim a 11 anos de chavismo, a cidade se transformou, também, na última parada de uma carga particularmente importante para o governo de Maduro.

Dados obtidos com exclusividade pela BBC News Brasil apontam que foi por lá que passaram pelo menos dois carregamentos que, somados, totalizam 20 mil frascos de spray de pimenta exportados pelo Brasil ao país vizinho.

O produto é comumente utilizado por forças de segurança de todo o mundo para controlar protestos como os que foram realizados no país após a contestada declaração de vitória de Maduro para mais um mandato.

De acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), os protestos foram respondidos com detenções arbitrárias e diversas violações de direitos humanos.

Em comunicado sobre o assunto, o governo da Venezuela rejeitou "categoricamente" as alegações do documento e classificou o relatório como "vulgar" e "panfletário", elaborado para cumprir ordens do governo norte-americano.

A venda chama atenção porque a sua exportação teve o aval do Ministério da Defesa e do Exército Brasileiro, apesar de ter sido registrada em um momento em que a comunidade internacional e até mesmo o Brasil já tinham dado demonstrações de preocupação com relação ao tratamento dado pelo regime de Maduro à oposição venezuelana.

Procurado, o governo brasileiro disse que a exportação do produto ocorreu dentro das normas vigentes. O governo da Venezuela não se manifestou.

A empresa ou as empresas responsáveis pela venda não foram identificadas.

A BBC News Brasil questionou o Exército sobre o assunto, mas o órgão informou que não poderia divulgar o nome da companhia que vendeu o produto à Venezuela.

Da mesma forma, não há informações sobre se a compra foi feita por empresas privadas da Venezuela ou pelo governo do país.

Entidades que atuam na defesa dos direitos humanos e especialistas em Relações Internacionais ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, criticaram a venda desse tipo de artefato para a Venezuela.

"É claramente equivocada a decisão de exportar materiais, mesmo que não letais, para um país que sofreu uma virada autoritária significativa nos últimos anos e que tem um histórico de repressão violenta contra direitos políticos da população", disse à BBC News Brasil o consultor sênior do Instituto Sou da Paz Bruno Langeani.

Essas entidades também chamam atenção para o fato de que a compra desses artefatos ter ocorrido nos meses que antecederam a eleição de 28 de julho deste ano, cujo resultado não foi reconhecido por diversos países, inclusive o Brasil.

·        Como foi a venda dos sprays de pimenta

Os dados sobre a exportação do spray de pimenta do Brasil à Venezuela foram obtidos pela BBC News Brasil junto ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).

A base de dados da pasta dá a dimensão da compra venezuelana.

Os 20 mil frascos importados pela Venezuela fizeram do país o maior comprador do produto em 2024. Em segundo lugar ficou o Chile, com 4 mil.

A compra feita pela Venezuela em 2024 é maior que os 9,1 mil somados de todas as compras feitas por outros países.

De acordo com os dados obtidos pela BBC News Brasil, os frascos saíram de São Paulo até Roraima e de lá foram enviados à Venezuela.

O produto foi remetido ao país vizinho em duas cargas nos meses de junho e de julho.

As eleições presidenciais na Venezuela foram realizadas no dia 28 de julho e o resultado divulgado no dia 29 de julho.

Maduro foi declarado o vencedor, o que desencadeou uma série de protestos por todo o país, levou à prisão de dezenas de oposicionistas e à fuga do então candidato de oposição, Edmundo Gonzales, considerado vitorioso por países como os Estados Unidos.

Por se tratar de um material classificado como produto de defesa, o trâmite para a sua exportação é diferente das demais mercadorias fabricadas ou exportadas pelo Brasil.

Em geral, empresas de defesa precisam de uma autorização do governo brasileiro para dar início às negociações e, ao fim delas, realizar a exportação.

Na maior parte dos casos, esse processo envolve o Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Ministério da Defesa e o Exército.

"A ideia é que o governo tenha o controle sobre quais países terão acesso a produtos sensíveis", diz David Magalhães, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

"O objetivo é evitar que a exportação de armas e produtos de defesa possa ir na contramão da política externa do país. Por isso que, em geral, há uma análise do risco político feito pelo Itamaraty."

No caso de produtos considerados não letais, como os frascos de spray de pimenta, esse processo é regulamentado por uma portaria de dezembro de 2022 que estabelece que esse controle é feito apenas pelo Ministério da Defesa e o Exército.

O spray de pimenta é um dos produtos mais utilizados pelas forças de segurança de todo o mundo para conter protestos.

Quando aplicado na pele, pode causar vermelhidão e inchaço no rosto.

Nos olhos, pode causar lacrimejamento intenso e cegueira temporária por até 30 minutos. A exposição contínua pode alterar a sensibilidade da córnea.

Nas mucosas do nariz e da boca, a intensidade e a duração dos efeitos dependem da área atingida e do tempo de exposição.

·        Eleição controversa e repressão

As eleições de julho deste ano na Venezuela foram marcadas por uma série de polêmicas.

A expectativa junto à comunidade internacional era de que o processo pudesse restabelecer, ao menos em parte, a normalidade política no país governado pelo chavismo desde 1999.

Pelo menos 7,7 milhões de pessoas emigraram da Venezuela durante a última década, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).

A primeira grande controvérsia deste processo aconteceu em junho de 2023, quando as autoridades eleitorais proibiram Maria Corina Machado, a principal líder da oposição venezuelana, de disputar as eleições.

A segunda aconteceu em março deste ano, quando as mesmas autoridades vedaram a candidatura da substituta de Maria Corina, Corina Yoris, para disputar as eleições.

A saída encontrada pela oposição foi se aglutinar em torno do diplomata aposentado Edmundo González.

No dia 2 de agosto, quatro dias depois das eleições, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) anunciou que Maduro havia sido o vencedor das eleições com 67% dos votos.

A oposição, no entanto, contestou os resultados, alegou que o vencedor havia sido González e acusou o governo de fraudar as eleições.

A oposição exigiu, ainda, a apresentação por parte do CNE das atas de votação que poderiam comprovar os votos em Maduro.

Maduro chegou a alegar que o país teria sofrido um ataque hacker no dia das eleições e que, por isso, a apresentação das atas atrasou.

"A Venezuela sofreu um ataque à noite. Um hacker massivo. Você sabe que país é (responsável). Não vou dizer qual é. Foi um ataque hacker massivo no sistema de transmissão (de dados) do CNE porque os demônios não queriam que se totalizassem (os dados de votação)", disse Maduro.

"Como chefe político e líder revolucionário da Venezuela, digo que o Partido Socialista da Venezuela está pronto para apresentar 100% das atas eleitorais das eleições de domingo. E espero que cada candidato tenha a mesma postura de reconhecer as atas", declarou após as eleições.

Mas apesar de prometer que apresentaria as atas, o governo de Maduro nunca divulgou os documentos.

Em meio ao impasse, diversos protestos contra o governo foram realizados pelo país. Em resposta, a gestão de Maduro teria recrudescido a repressão.

Um relatório da Missão Internacional Independente da ONU de Apuração de Fatos sobre a Venezuela divulgado em outubro deste ano apontou uma série de supostas violações de direitos humanos praticadas pelo regime após as eleições.

Entre elas estaria a prisão arbitrária de centenas de pessoas, entre elas 158 menores de idade.

Além disso, pelo menos 25 pessoas teriam sido mortas por armas de fogo durante os protestos. Também há relatos sobre tortura e desaparecimentos forçados.

"Estas violações, que incluem detenções arbitrárias, tortura e violência sexual cometidas no âmbito de uma política discriminatória, constituem o crime contra a humanidade de perseguição com base em razões políticas, devido à identidade das vítimas como membros da oposição ao Governo ou percebidas como tal, ou simplesmente críticas ao Governo", disse um trecho do relatório.

O governo da Venezuela vem rebatendo as acusações afirmando que é vítima de uma campanha internacional de difamação.

No mês anterior, em resposta a outro relatório da ONU, classificou o documento como "um sinal claro do desvio errático liderado pelas instituições do sistema da ONU" que estariam "deslocadas em suas funções e se transformando em instrumentos de coerção e chantagem contra povos e governos soberanos".

Na avaliação do diretor adjunto para Américas da organização não governamental Human Rights Watch, Juan Papier, a repressão na Venezuela piorou após as eleições.

"Isso se baseia em um longo histórico do governo Maduro usando armas letais ou menos letais para reprimir manifestantes de forma sistemática e cometer abusos que fazem parte de um padrão mais amplo de violações sistemáticas de direitos humanos", diz Papier à BBC News Brasil.

Sem mencionar diretamente o caso da venda de spray de pimenta do Brasil à Venezuela, Papier afirma que países democráticos deveriam tomar precauções com relação aos seus produtos.

"Governos democráticos deveriam se certificar que nenhuma arma que eles vendam para a Venezuela seja usada para reprimir manifestantes."

Um militante que atua na defesa dos direitos humanos na Venezuela e que falou à BBC News Brasil sob anonimato disse que ainda não teriam sido encontradas evidências de que as forças de segurança do país usaram spray de pimenta brasileiro contra manifestantes venezuelanos.

Ele disse, porém, que a maior parte das entidades tem sido cautelosa em fazer críticas ao governo brasileiro por conta do posicionamento crítico mais recente adotado pelo país em relação ao regime Maduro.

Para Magalhães, "considerando o risco de esses artefatos serem usados para reprimir manifestações legítimas, o Brasil não deveria ter autorizado a exportação de spray de pimenta para a Venezuela".

·        Exportação em meio a estremecimento diplomático

A exportação do spray de pimenta para o regime de Maduro aconteceu em um momento de inflexão da política externa brasileira em relação à Venezuela.

Nos últimos dois anos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) saiu de uma postura de apoio à crítica em relação à atuação de Maduro.

As tensões levaram a Venezuela a convocar o seu embaixador no Brasil de volta a Caracas. Na linguagem diplomática, a convocação de um diplomata representa uma demonstração de grave discordância com relação a outro país.

Ao assumir seu terceiro mandato, Lula estabeleceu como uma de suas metas restabelecer as relações diplomáticas com a Venezuela, rompidas durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), e auxiliar o país a retomar o diálogo internacional.

Para isso, reabriu a embaixada brasileira em Caracas, nomeou uma nova embaixadora e recebeu Maduro em Brasília com honras de chefe de Estado durante a cúpula de líderes da América do Sul, em maio de 2023.

Durante esse encontro, Lula afirmou que as alegações de que Maduro comandaria um regime autoritário faziam parte de uma "narrativa" a ser combatida pelo líder venezuelano.

No entanto, nos bastidores, o governo brasileiro aguardava as eleições presidenciais venezuelanas de 2024 como um teste para Maduro.

Em dezembro de 2023, as autoridades brasileiras tiveram mais um motivo de preocupação em relação à Venezuela.

Maduro realizou um plebiscito sobre a incorporação da região de Essequibo, um território atualmente controlado pela Guiana rico em petróleo e outros recursos naturais, mas que é historicamente reivindicado pela Venezuela.

Em meio à escalada das declarações dos líderes dos dois países, o Brasil chegou a enviar tropas para reforçar as fronteiras em Roraima, numa demonstração de que não permitiria o avanço de militares venezuelanos pelo território brasileiro no caso de uma eventual incursão do país sobre Essequibo.

Embora contrariado com a disputa territorial, o governo brasileiro não condenou diretamente o governo venezuelano e liderou um encontro entre os presidentes dos dois países, em dezembro, onde os dois países prometeram evitar um aumento das tensões.

A postura do Brasil mudou, no entanto, em março de 2024, quando as autoridades eleitorais da Venezuela impediram Maria Corina Machado e sua substituta, Corina Yoris, de disputarem a eleição.

Lula classificou o impedimento como "grave", e o Itamaraty emitiu nota expressando preocupação com o processo eleitoral.

O governo venezuelano rebateu, afirmando que a nota brasileira parecia ter sido escrita pelo "Departamento de Estado dos Estados Unidos".

Às vésperas da eleição, Lula voltou a criticar Maduro por dizer que o país poderia viver um "banho de sangue" caso não vencesse as eleições.

O presidente brasileiro disse que a única chance de a Venezuela voltar à normalidade seria por meio de um processo eleitoral respeitado por todos.

O Brasil, assim como outros países como Colômbia e México, não reconheceu a vitória de Maduro nas urnas e pediu que as atas das urnas fossem apresentadas, o que não aconteceu até agora.

Para o professor David Magalhães, a exportação dos milhares de frascos de spray de pimenta à Venezuela no momento em que o governo brasileiro vinha fazendo manifestações críticas em relação ao governo Maduro seriam uma amostra de como a exportação de produtos de defesa no Brasil nem sempre atende à agenda de política externa do país.

"O que minhas pesquisas mostram é que definitivamente não existe alinhamento da política de exportação de armas com a política externa do Brasil", diz Magalhães.

"O Brasil, por exemplo, já vendeu aviões Super Tucanos à Colômbia que depois foram usados contra as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), alinhadas à esquerda."

Magalhães explica que a força da indústria de Defesa no Brasil acabaria se sobrepondo às agendas políticas do governo.

"A indústria de Defesa precisa exportar por contingências econômicas, uma vez que o governo brasileiro não consegue, sozinho, dar conta da oferta", diz o professor.

"O que temos visto é uma postura um pouco mais relaxada dos órgãos responsáveis por dar a anuência a estas vendas."

Procurado pela reportagem, o governo Lula informou que não exporta spray de pimenta, atribuindo essa prática exclusivamente a empresas privadas e reiterando que as exportações seguiram as normas aplicáveis.

"A exportação para a Venezuela e para os demais dez países que constam nas estatísticas oficiais [...] são realizadas por empresas privadas", disse o Planalto em nota.

O Ministério da Defesa informou que "a exportação dos produtos foi autorizada e atendeu à regulamentação vigente para a venda de produtos de defesa ao exterior".

Já o Exército disse que sua competência envolve apenas "a verificação documental sobre o processo em tela, seguindo a legislação em vigor, não cabendo qualquer ilação acerca de outros assuntos".

A BBC News Brasil enviou questionamentos à Embaixada da Venezuela no Brasil, mas não houve resposta.

 

Fonte: BBC News Brasil

 

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