sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Chris Hedges: Genocídio - o novo normal

O presente de despedida de Joe Biden de 8 bilhões de dólares em vendas de armas para o estado de apartheid de Israel reconhece a terrível realidade do genocídio em Gaza. Este não é o fim. Nem sequer o começo do fim. Esta é uma guerra permanente e interminável projetada não para destruir o Hamas ou libertar os reféns israelenses, mas para erradicar, de uma vez por todas, os palestinos em Gaza e na Cisjordânia. É o empurrão final para criar um Grande Israel, que incluirá não apenas Gaza e a Cisjordânia, mas partes do Líbano e da Síria. É a culminação do sonho sionista. E será pago com rios de sangue — palestino, libanês e sírio.

O Ministro da Agricultura e Segurança Alimentar de Israel, Avi Dichter, provavelmente ofereceu estimativas conservadoras ao dizer: "Eu acho que vamos permanecer em Gaza por muito tempo. Acho que a maioria das pessoas entende que [Israel] ficará anos em uma espécie de situação da Cisjordânia onde você entra e sai e talvez permaneça ao longo do corredor de Netzarim.”

Exterminar em massa leva tempo. Também é caro. Felizmente para Israel, o seu lobby nos EUA tem um controle absoluto sobre o Congresso, nosso processo eleitoral e a narrativa da mídia. Os estadunidenses, embora 61% apoiem o fim do envio de armas para Israel, pagarão por isso. E aqueles que expressarem alguma dissidência serão forçados a entrar em buracos negros sionistas, onde as suas vozes são silenciadas e as suas carreiras são ameaçadas ou destruídas. Donald Trump e os republicanos têm um desprezo aberto pela democracia, mas o mesmo acontece com os democratas e Joe Biden.

Os EUA forneceram 17,9 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel de outubro de 2023 a outubro de 2024, um aumento substancial em relação aos 3,8 bilhões de dólares anuais em ajuda militar que os EUA já concedem a Israel. Este é um recorde para um único ano. O Departamento de Estado informou ao Congresso que pretende aprovar mais 8 bilhões de dólares em compras de armas fabricadas nos EUA por Israel.

Isso fornecerá a Israel mais sistemas de orientação GPS para bombas, mais projéteis de artilharia, mais mísseis para jatos e helicópteros de combate, e mais bombas, incluindo 2.800 bombas não-guiadas MK-84, que Israel tem o hábito de lançar em acampamentos densamente povoados em Gaza.

A onda de pressão da bomba MK-84 de 2.000 libras pulveriza edifícios e extermina a vida em um raio de 400 jardas. A explosão, que rompe pulmões, dilacera membros e estoura cavidades sinusais a centenas de jardas de distância, deixa para trás uma cratera de 50 pés de largura e 36 pés de profundidade. Israel aparentemente usou esta bomba para assassinar Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, em Beirute, em 27 de setembro de 2024.

O genocídio e a decisão de alimentá-lo com bilhões de dólares marcam um ponto de inflexão sinistro. Trata-se de uma declaração pública dos EUA e de seus aliados na Europa de que o direito internacional e humanitário, embora flagrantemente ignorado pelos EUA no Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria e, uma geração antes, no Vietnã, não tem significado. Não faremos nem questão de fingir respeitá-lo. Este será um mundo hobbesiano onde as nações com as armas industriais mais avançadas fazem as regras. Aqueles que são pobres e vulneráveis se ajoelharão em subjugação.

O genocídio em Gaza é o modelo para o futuro. E aqueles no Sul Global sabem disso.

Os “condenados da terra” que carecem de armas sofisticadas, que não possuem exércitos modernos, unidades de artilharia, mísseis, marinhas, unidades blindadas e aviões de guerra, retaliarão com ferramentas rudimentares. Eles igualarão atos individuais de terror a campanhas massivas de terror de Estado.

Estamos surpresos por sermos odiados? O terror gera terror. Vimos isso em Nova Orleans, onde um homem que supostamente foi inspirado pelo Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS) matou 14 pessoas ao dirigir a sua caminhonete contra uma multidão no Dia de Ano Novo. Veremos mais disso. Mas sejamos claros. Fomos nós começamos. O vazio moral do homem-bomba é gerado pelo nosso vazio moral.

A frustração de Israel com a resistência obstinada em Gaza, Cisjordânia, Iêmen e Líbano aumenta a sede de sangue. Membros do Comitê de Relações Exteriores e Defesa de Israel enviaram uma carta ao Ministro da Defesa, Israel Katz, pedindo que o governo intensifique o cerco a Gaza.

“Um controle efetivo do território e da população é o único meio de limpar as linhas inimigas da faixa [de Gaza] e, naturalmente, alcançar uma vitória decisiva, em vez de ficar estagnado em uma guerra de atrito, onde o lado mais desgastado é Israel”, escreveram.

Israel, diz a carta, deve realizar a “eliminação remota de todas as fontes de energia, como combustível, painéis solares e qualquer meio relevante (tubos, cabos, geradores, etc.)”. Deve garantir a “eliminação de todas as fontes de alimentos, incluindo armazéns, água e todos os meios relevantes (bombas de água, etc.)” e deve facilitar a “eliminação remota de qualquer pessoa que se mova na área e não saia com uma bandeira branca durante os dias do cerco efetivo”.

A carta conclui que, “após essas ações e os dias de cerco sobre os que permanecerem, [as] FDI devem entrar gradualmente e realizar uma limpeza completa dos ninhos inimigos... Isso deve ser feito no norte da Faixa de Gaza, e da mesma forma em qualquer outro território: cercamento, evacuação da população para uma zona humanitária e cerco efetivo até a rendição ou eliminação total do inimigo. É assim que todo exército age, e assim devem agir as FDI.”

Em resumo, exterminem os brutos.

Shamsud-Din Jabbar, o veterano militar dos EUA de 42 anos que jogou a sua caminhonete contra uma multidão de celebrantes do Ano Novo em Nova Orleans, matando 14 pessoas e ferindo 35, nos falou na linguagem que usamos para falar com o mundo árabe. Morte indiscriminada. O alvo está nos inocentes. A indiferença fria à vida. A sede de vingança. A demonização dos outros. A crença de que o destino ou Deus ou a civilização ocidental decretaram que temos o direito de impor a nossa visão de mundo com violência. Jabbar, que publicou vídeos online nos quais professava seu apoio ao Estado Islâmico, é o nosso duplo assassino. Ele não será o último.

“Quando uma sociedade é desapropriada, quando as injustiças que lhe são impostas parecem insolúveis, quando o ‘inimigo’ é todo-poderoso, quando o próprio povo é bestializado como insetos, baratas, ‘bestas de duas patas’, então a mente vai além da razão”, escreve Robert Fisk em A Grande Guerra pela Civilização.

Estes atos de terrorismo, ou no caso de Gaza, Cisjordânia, Líbano e Iêmen, a resistência armada, são usados para justificar massacres intermináveis. Esta Via Dolorosa leva a uma espiral de morte global, especialmente à medida que a crise climática reconfigura o planeta e organismos internacionais, como as Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional, tornam-se apêndices vazios.

Estamos semeando o Oriente Médio com dentes de dragão e, como no antigo mito grego, esses dentes estão surgindo do solo como guerreiros enfurecidos determinados a nos destruir.

 

¨       O assassinato que expõe luta de poder entre palestinos na Cisjordânia

Pouco antes do Ano-Novo, Shatha al-Sabbagh, de 21 anos, estava comprando chocolates para as crianças de sua família em uma loja em Jenin, na Cisjordânia ocupada.

A estudante de jornalismo, descrita como "destemida" e determinada a expor o sofrimento dos palestinos, estava acompanhada pela mãe, dois sobrinhos pequenos e outro parente.

"Ela estava rindo e dizendo que íamos passar a noite inteira acordadas hoje", lembra a mãe.

Então, Shatha foi baleada na cabeça.

Para sua mãe, Umm al-Motassem, a dor ainda é insuportável. Ela pausa para recuperar o fôlego antes de falar.

"Os olhos de Shatha estavam bem abertos. Parecia que ela estava me encarando enquanto estava deitada de costas, com sangue jorrando de sua cabeça."

"Comecei a gritar: 'Parem de atirar! Minha filha está morta. Minha filha está morta.'"

Mas os disparos continuaram por cerca de 10 minutos. Shatha morreu em uma poça de seu próprio sangue.

A família aponta como responsáveis por sua morte as forças de segurança da Autoridade Palestina (AP), afirmando que a área onde vivem é controlada pela AP.

"Não poderia ter sido ninguém além da AP... porque eles têm uma presença tão forte em nosso bairro que ninguém mais poderia entrar ou sair."

No entanto, a AP culpa "foras da lei" – termo usado para descrever membros do Batalhão de Jenin, composto por combatentes de grupos armados como a Jihad Islâmica Palestina (PIJ) e o Hamas.

A Autoridade Palestina (AP) exerce um autogoverno limitado na Cisjordânia, ocupada por Israel.

No mês passado, lançou uma grande operação de segurança no campo de refugiados em Jenin, visando grupos armados baseados no local, que eles consideram uma ameaça à sua autoridade. Quase quatro semanas depois, a operação ainda continua.

O Batalhão de Jenin é acusado de explodir um carro e realizar outras "atividades ilegais".

"Confiscamos um grande número de armas e materiais explosivos", afirma o general de brigada da AP Anwar Rajab.

"O objetivo é limpar o campo dos dispositivos explosivos que foram espalhados por diferentes ruas e becos... Esses fora da lei ultrapassaram todos os limites e espalharam o caos."

O general Rajab também acusa o Irã de apoiar e financiar os grupos armados na região.

O Batalhão de Jenin nega qualquer ligação com o Irã. Em um vídeo recente postado nas redes sociais, o porta-voz Nour al-Bitar afirmou que a AP está tentando "demonizá-los" e "manchar sua imagem", acrescentando que os combatentes não entregarão suas armas.

"Para a AP e o presidente Mahmoud Abbas, por que chegamos a este ponto?" questionou, segurando estilhaços que, segundo ele, eram de um foguete disparado contra o campo pelas forças de segurança.

A Autoridade Palestina (AP), liderada pelo presidente Mahmoud Abbas, já era impopular entre os palestinos insatisfeitos com sua rejeição à luta armada e sua coordenação de segurança com Israel.

Essa insatisfação cresceu ainda mais com a repressão contra os grupos armados no campo de Jenin, marcada por uma ferocidade e duração sem precedentes.

Israel considera esses grupos como terroristas, mas muitos moradores de Jenin os veem como uma forma de resistência à ocupação.

"Esses 'fora da lei' que a AP menciona são os jovens que nos defendem quando o exército israelense invade nosso campo", afirma Umm al-Motassem.

Segundo o Ministério da Saúde palestino, pelo menos 14 pessoas morreram durante a repressão, incluindo um adolescente de 14 anos.

Agora, muitos moradores de Jenin dizem temer a AP tanto quanto temem as incursões militares de Israel. A morte de Shatha al-Sabbagh só intensificou esse desprezo.

Antes de ser morta, Shatha compartilhou várias postagens nas redes sociais mostrando a destruição causada pela operação da AP em Jenin, assim como as incursões israelenses no campo no ano passado.

Outras postagens mostravam fotos de jovens armados mortos nos confrontos, incluindo o irmão dela.

Sua morte foi condenada pelo Hamas, que identificou o irmão de Shatha como membro da ala armada do grupo, as Brigadas Izzedine al-Qassam. O grupo descreveu seu "assassinato... a sangue frio" como parte de uma "política opressiva direcionada ao campo de Jenin, que se tornou um símbolo de resistência e firmeza".

Mustafa Barghouti, líder do partido político Iniciativa Nacional Palestina, vê os combates em Jenin como uma consequência das divisões entre as principais facções palestinas — o Fatah, que domina a AP, e o Hamas, que governa Gaza desde 2007.

"A última coisa de que os palestinos precisam é ver palestinos atirando uns nos outros enquanto Israel oprime a todos", diz ele.

Dentro do campo, os moradores dizem que a vida cotidiana parou completamente.

O fornecimento de água e eletricidade foi cortado, e as famílias enfrentam a falta de alimentos, o frio intenso e tiroteios incessantes.

Os moradores que conversaram conosco pediram para ter seus nomes alterados, temendo represálias da Autoridade Palestina (AP).

"As coisas estão péssimas aqui. Não conseguimos nos mover livremente no campo", diz Mohamed.

"Todas as padarias, restaurantes e lojas estão fechados. O restaurante onde trabalho abre por um dia e fecha por dez. Quando abre, ninguém aparece.

"Precisamos de leite para as crianças, precisamos de pão. Algumas pessoas nem conseguem abrir as portas por causa do tiroteio constante."

O Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) pediu uma investigação sobre o que descreveu como violações de direitos humanos pelas forças da AP.

O general Anwar Rajab afirmou que alguns dos "fora da lei" que haviam "sequestrado" o campo de Jenin foram presos e que outros, com processos pendentes, seriam levados à justiça.

Mas Mohamed descreve a operação da AP — com inocentes presos no fogo cruzado — como "punição coletiva".

"Se eles querem perseguir fora da lei, isso não significa que devem punir o campo inteiro. Queremos nossas vidas de volta."

Até mesmo sair para buscar comida ou água é arriscado, diz Sadaf, de 20 anos.

"Quando saímos, fazemos nossas últimas orações. Nos preparamos mentalmente para não voltar.

"Está muito frio. Tivemos que tirar as portas de casa para usá-las como lenha, só para nos aquecer."

A BBC ouviu relatos semelhantes de quatro moradores do campo.

Minha conversa com Sadaf é interrompida pelo som de tiros. Não está claro de onde vêm ou quem está atirando. O som começa e para várias vezes.

"Talvez sejam tiros de aviso", sugere ela, explicando que isso às vezes acontece quando as forças da AP trocam de turno.

Sadaf continua descrevendo o campo, com "lixo enchendo as ruas e quase invadindo as casas". Mais tiros podem ser ouvidos.

A mãe de Sadaf se junta à conversa. "Ouça isso... Alguém consegue dormir com esse barulho ao fundo?

"Agora dormimos em turnos. Temos medo de que invadam nossas casas. Temos tanto medo desta operação quanto das incursões dos soldados israelenses."

Os moradores dizem que as forças de segurança atingiram deliberadamente as redes elétricas e os geradores, deixando o campo na escuridão total.

A AP, por sua vez, culpa novamente os "fora da lei" e afirma ter levado trabalhadores para consertar a rede elétrica.

Os grupos armados querem "usar o sofrimento do povo para pressionar a Autoridade Palestina (AP) a encerrar a operação", afirma o general Anwar Rajab. Ele garante que a operação de segurança continuará até que seus objetivos sejam alcançados.

Segundo Rajab, o objetivo da AP é estabelecer controle sobre o campo de Jenin e garantir segurança e estabilidade. Ele acredita que retirar o controle dos grupos armados eliminaria a justificativa de Israel para atacar o campo.

No final de agosto, o exército israelense realizou uma grande operação de nove dias, chamada de "contra-terrorismo", em várias cidades do norte da Cisjordânia, incluindo Jenin e seu campo de refugiados, causando destruição generalizada.

De acordo com o Ministério da Saúde palestino, pelo menos 36 palestinos foram mortos, sendo 21 deles da província de Jenin.

Analistas afirmam que a AP tenta reafirmar sua autoridade na Cisjordânia e demonstrar aos Estados Unidos que é capaz de assumir um papel no futuro governo de Gaza.

"Qual seria o problema nisso?" pergunta o general Rajab.

"Gaza faz parte do estado palestino. Gaza e Cisjordânia não são entidades separadas. Não existe um estado palestino sem Gaza. O presidente [Mahmoud Abbas] já disse isso, e essa é nossa estratégia."

No entanto, Mustafa Barghouti considera essa abordagem uma "ilusão". "Basta ouvir o que [Benjamin] Netanyahu diz", acrescenta.

Segundo a visão do primeiro-ministro israelense para Gaza após a guerra, Israel controlaria indefinidamente a segurança, e palestinos "sem vínculos com grupos hostis a Israel" – o que excluiria todos os principais partidos políticos palestinos atuais – administrariam o território.

Os Estados Unidos, maior aliado de Israel, desejam que a AP governe Gaza após a guerra. Contudo, Netanyahu já descartou qualquer papel pós-guerra para a AP, mesmo com o apoio internacional.

Para os moradores do campo de Jenin, a violência e as perdas continuam implacáveis.

"A AP diz que está aqui para nossa segurança. Onde está essa segurança quando minha filha foi morta? Onde está a segurança com os tiros sem parar?" clama Umm al-Motassem.

"Eles podem ir atrás dos 'fora da lei', mas por que minha filha teve que morrer? A justiça será feita quando eu souber quem matou minha filha", diz ela.

 

Fonte: Brasil 247/BBC News em Jerusalém

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário