Seria possível uma transição
gradual ao socialismo?
“O advento político de uma situação de duplo
poder, acompanhado pelo início de uma crise económica, não permite uma
resolução gradual. Quando a unidade do Estado burguês e a reprodução da
economia capitalista são quebradas, o choque social resultante deve opor-se
rápida e fatalmente à revolução e à contra-revolução numa convulsão violenta.
Num tal conflito, o capital terá sempre uma base de massas, maior do que um
punhado de monopolistas (…) O capitalismo não triunfou em nenhum país avançado
do mundo hoje (Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Japão ou Estados Unidos )
sem conflito armado ou guerra civil. A transição económica do feudalismo para o
capitalismo é, no entanto, a transição de uma forma de propriedade privada para
outra. Será imaginável que uma mudança histórica muito maior implícita na
transição da propriedade privada para a propriedade colectiva, que exige
medidas mais drásticas de expropriação do poder e da riqueza, assuma formas
políticas menos duras (…) A tradição a que pertencem estas concepções? é, de um
modo geral, o de Lenine e Trotsky, Luxemburgo e Gramsci”. (Perry Anderson,
Teoria, política e história: un debate com E. P. Thompson, p. 215).
A transição do feudalismo ao capitalismo foi,
simultaneamente, um processo de passagem gradual e lenta, em que coexistiram
por séculos relações sociais pré-capitalistas e capitalistas, e de luta
política pelo poder entre duas classes proprietárias. Mas, se a transição
burguesa ao capitalismo só se completou depois de revoluções e guerras civis,
por que a transição socialista poderia ser mais indolor?
Esta conclusão peremptória, confirmada no laboratório
da história de forma irrefutável, não é o bastante para anular o debate sobre a
possibilidade de que se desenvolvam, nos porões do capitalismo, elementos que
antecipam um modo de produção socialista. Sobre as hipóteses gradualistas de
uma transição sem ruptura a tradição marxista se dividiu no último século em
distintas opiniões.
O argumento de Perry Anderson é sugestivo: se as
transições burguesas mais importantes, afinal uma passagem de poder de uma
classe proprietária para outra, exigiram a luta revolucionária contra as
resistências das forças sociais arcaicas, como não prever convulsões tão ou
mais violentas, em uma transição em que a luta se desenvolve contra toda forma
de privilégio?
A propósito dos paralelos históricos entre a transição
do feudalismo ao capitalismo – compreendido como, simultaneamente, um processo
de revolução social e revolução política – e a transição pós-capitalista,
existe um instigante texto de Paul Singer no qual se retoma a possibilidade de
uma transição gradualista.
Paulo Singer insiste na importância do sindicalismo, do
cooperativismo e da seguridade social como elementos que antecipam, no interior
do capitalismo, aspectos de relações econômico-sociais socialistas:
“Examinando-se o conjunto do movimento cooperativista, tem-se a impressão de
que, de todos os implantes anticapitalistas com potencial socialista, este –
apesar dos pesares – é o de maior potencial e o que está mais exposto à
contingência de perder sua essência para se amoldar ao ambiente e às exigências
da competição com empresas capitalistas. A cooperativa operária realiza em alto
grau todas as condições para a desalienação do trabalho e, portanto, para a
realização do socialismo no plano da produção. Ela é gerida pelos
trabalhadores, as relações de trabalho são democráticas, ela traduz na prática
o lema: ‘de cada um segundo suas possibilidades, a cada um segundo suas
necessidades’ (…) Marx reconhece tanto na cooperativa operária quanto na
sociedade anônima ‘formas de transição’ do capitalismo ao socialismo. (…)
Agora, quanto à cooperativa operária, a visão de Marx se revela aguda e
certeira. Em projeto, ela supera positivamente a contradição entre capital e
trabalho, constituindo um elemento do modo de produção socialista, que se
desenvolve a partir do modo de produção capitalista”.
Essa hipótese desloca a centralidade do conceito de
crise revolucionária como o momento crucial da estratégia, e afasta a ideia de
ruptura. Ela repousa na possibilidade de um gradualismo econômico associado a
um gradualismo político para pensar o processo de transição histórica,
retomando assim, a inspiração do socialismo pré-marxista.
O próprio Marx foi no seu tempo um observador atento
das cooperativas de produção como um fenômeno econômico sui generis: “As fábricas
cooperativas dos próprios trabalhadores são, dentro da velha forma, a primeira
ruptura da velha forma, embora elas naturalmente reproduzam e tenham de
reproduzir em todo lugar, em sua organização real, as mazelas do sistema
existente. Mas, dentro delas, a contradição entre capital e trabalho está
superada, mesmo que inicialmente apenas na forma de que os trabalhadores,
enquanto associação, são seus próprios capitalistas, o que significa que
utilizam os meios de produção para a valorização de seu próprio trabalho. Elas
mostram como, em um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas
materiais e de suas correspondentes formas sociais de produção, se desenvolve e
toma forma, a partir de um modo de produção, um novo modo de produção. (…) As
empresas capitalistas por ações devem ser consideradas, tanto quanto as
fábricas cooperativas, formas de transição do modo de produção capitalista ao
(modo de produção) associado (ou socialista), somente que em uma a contradição
é superada negativamente e na outra positivamente.”
Como se vê, Karl
Marx era consciente de que as cooperativas expressavam, de uma maneira
embrionária, as possibilidades que estariam abertas quando às formas
socializadas da produção correspondessem formas socializadas de apropriação. E,
como sempre, procurava no presente os elementos de antecipação do futuro.
Entretanto, é necessário assinalar que a posição de
Marx face às cooperativas também evoluiu, várias vezes, ao longo de sua vida:
(i)
em
função das experiências concretas das cooperativas, nos anos 1850, como se pode
depreender da leitura de O 18 Brumário, era céptico sobre
as suas perspectivas econômicas, dadas as suas dimensões necessariamente
modestas, e a decorrente baixa rentabilidade podendo, na melhor das hipóteses,
ser um ensaio para acumular experiência;
(ii)
em
um segundo momento, nos anos 1860, que corresponde à resolução do Congresso de
Genebra da Primeira Internacional, defende a importância precursora e educativa
das cooperativas como forma socializada de produção e apropriação.
(iii)
Já
na Crítica
ao programa de Gotha,
Marx é severo em relação às cooperativas, provavelmente como resultado de uma
dupla reflexão,
(a)
as conclusões político-revolucionárias que retirou da derrota da Comuna de
Paris, que o levaram a colocar de novo o acento na necessidade de um programa
centrado no eixo da disputa do poder político, e
(b)
por considerar importante que o partido alemão se libertasse dos elementos de
Lassaleanismo, ainda muito presentes depois da unificação que originou o SPD,
por encarar com reservas as reivindicações formuladas pelo “possibilismo” e,
por último, deve ter pesado o balanço do impasse a que tinha chegado o
movimento cooperativo na Inglaterra, frustrando as esperanças iniciais.
(iv)
Por último, a sua posição final ao que
parece resultado de uma longa reflexão
e várias oscilações, seria a famosa passagem do livro III de O capital (cuja
transcrição fizemos acima) em que retorna a um posicionamento esperançoso, e
desenvolve a hipótese de que as cooperativas poderiam ser um elemento de
antecipação do processo e das formas de socialização da propriedade.
Porém, 150 anos depois, ainda que existam experiências
bem sucedidas no movimento cooperativista (embora, em geral, sejam mais perenes
e estáveis as cooperativas de crédito do que as de produção) e admitindo-se
também, com boa vontade, o papel pedagógico das novas relações de solidariedade
de classe que elas estimulam, parece no mínimo um pouco exagerado, na época de
corporações que detêm faturamentos maiores que PIB’s, considerá-las um
fenômeno, no sentido estritamente econômico, importante o bastante para em alguma
maneira contrabalançar o papel dos monopólios e cartéis.
Já os fundos públicos, em particular os
previdenciários, que despertam a atenção de uma parte muito influente da
opinião econômica socialista, inequivocamente ocuparam um papel central nos
pactos sociais do pós-guerra. Mas daí a considera-los um elemento de socialismo
dentro das relações sociais capitalistas, vai um enorme esforço teórico de
imaginação: ou podemos esquecer que as reservas dos fundos, que acumulavam
depósitos feitos durante décadas pelas gerações mais velhas, foram saqueadas
pelo Estado para os mais variados e obscuros fins?
Sobre esta nova reivindicação histórico-teórica dos
fundos públicos a partir da categoria de antivalor, vale a pena conferir a
elaboração de Chico de Oliveira: “O caminho percorrido pelo sistema
capitalista, e particularmente as transformações operadas pelo Welfare State, repõe a velha
questão dos limites do sistema. A famosa previsão de Marx do fim do sistema foi
lida literalmente, e interpretada comumente como uma catástrofe ao estilo de
Sansão derrubando as colunas do templo. Ora, a história do desenvolvimento
capitalista tem mostrado, com especial ênfase depois do Welfare State, que os limites do
sistema capitalista só podem estar na negação de suas categorias reais, o
capital e a força de trabalho (…) O fundo público, em resumo, é o antivalor,
menos no sentido de que o sistema não mais produz valor, e mais no sentido de
que os pressupostos da reprodução do valor contêm, em si mesmos, os elementos
mais fundamentais de sua negação. Afinal, o que se vislumbra com a emergência
do antivalor é a capacidade de passar-se a outra fase, em que a produção do
valor, ou de seu substituto, a produção do excedente social, toma novas formas.
E essas novas formas, para relembrar a asserção clássica, aparecem não como
desvios do sistema capitalista, mas como necessidade de sua lógica interna de
expansão”.
Enquanto esses recursos do Fundo Público continuarem a
serem controlados por governos burgueses, muito antes de serem um mecanismo de
redistribuição de renda, serão sempre uma reserva que o Estado poderá utilizar
pra garantir os objetivos de política econômica de governos que respondem aos
interesses do capital. Não nos esqueçamos o congelamento de aposentadorias e
pensões e a introdução de novos tributos, como o desconto de contribuição para
os aposentados, que significam descapitalização da previdência e parte
importante dos ajustes fiscais que garantem a rolagem das dívidas públicas:
esse processo não ocorreu só no Brasil, ao contrário, está inserido numa
dinâmica internacional.
No entanto, também é certo que uma das pautas mais
importantes da contraofensiva neoliberal tem sido, nos últimos quarenta anos
depois de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, reduzir as contribuições estatais
para os fundos, como forma de reequilibrar os orçamentos e, ao mesmo tempo,
aumentar as isenções fiscais do capital, sem correr o risco do retorno das
pressões inflacionárias na Europa dos anos 1970, que ameaçaria a
convertibilidade das moedas (o dogma fundamentalista que protege o capital da
desvalorização) em livre flutuação, desde o desatrelamento do dólar ao ouro
feito por Richard Nixon.
A tese da transição gradualista seria revisionista?
Sim. Mas revisionismo (assim como a qualificação de ortodoxo, por razões
inversas), se presta a confusões e exige algum esclarecimento. Adquiriu uma
conotação pejorativa, de alguma maneira. Em função da vitória de Outubro,
ficou, freqüentemente, associado a reformismo e a oportunismo. Mas existiram e
existem diferentes tipos de revisionismo.
Toda e qualquer corrente teórico-política que não
se tenha esterilizado vive um permanente processo de revisionismo e, nesse
sentido, todos os pensadores marxistas foram revisionistas, pelo menos, em
alguma medida. Porque por revisionismo, não se deveria entender, estritamente,
nada além de um processo de revisão de ideias anteriormente estabelecidas. Qual
o significado, ou a substância da revisão, é algo que só pode ser analisado em
cada caso concreto. Nesse sentido, o próprio Marx foi, portanto, revisionista,
permanentemente, da sua obra. E não poderia ter sido de outra maneira, a menos
que se recusasse peremptoriamente, a reavaliar as mudanças que ocorriam na
realidade que o cercava, e não aceitasse readequar as suas ideias a essas
transformações.
Uma interpretação da obra de Marx que desconheça que se
trata de um pensamento em construção seria, como é óbvio, um disparate. Por
outro lado, merece ser observado que revisionismo não é o mesmo que reformismo,
e reformismo por sua vez não é o mesmo que oportunismo. O reformismo é uma
doutrina política e o oportunismo um comportamento político.
Mas para as correntes marxistas que excluíram a
hipótese de uma transição gradualista, no início do século, todos os que na
Segunda Internacional se opuseram ao chamado revisionismo alemão agrupado junto
a Eduard Bernstein, que tinha um enfoque mais politicamente evolucionista que
econômico, o problema teórico permanecia colocado. Como resolver a questão da
transição? A resposta teórica que se ofereceu a este aparente beco sem saída
foi a definição da revolução socialista como a primeira revolução social que
supõe um nível de consciência, adesão e de organização em torno a um projeto
estratégico anterior à luta aberta pelo poder que seria único na história.
Fonte: Por Valerio Arcary, em Outras Palavras
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