quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Não há saúde mental sem direito à moradia digna

O aumento do número de pessoas em situação de rua é evidente para aqueles que se recusam a invisibilizar essas pessoas e as ruas. Nos últimos anos — especialmente após a pandemia — o Brasil voltou a se deparar com cenas de famílias inteiras vivendo em situação de rua. O que se observa ao circular pelas cidades é confirmado pelos dados: segundo o Observatório Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (ObservaDH), o número de pessoas em situação de rua inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) praticamente dobrou entre 2018 e 2023, passando de cerca de 116 mil para 221 mil. Estudo recente do Observatório de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (OBPopRua) aponta que, em 2024, o número já ultrapassa 300 mil.

Essa realidade se concentra, sobretudo, nas capitais e grandes metrópoles brasileiras. Para se ter uma ideia, segundo o OBPopRua, das 300 mil pessoas em situação de rua, 126 mil estão no estado de São Paulo, sendo que cerca de 80 mil vivem nas ruas do município de São Paulo.

Saber-se bem, como reitera o ObservaDH, que o perfil predominante das pessoas em situação de rua é composto por homens (88%), negros (68%) e adultos (57%). Entre os principais motivos que as levam a essa condição estão problemas familiares (44%), desemprego (38%) e o uso de álcool e outras drogas (28%). A maioria (60%) está em situação de rua há menos de dois anos.

Mas o que mais sabemos sobre as pessoas? Especificamente, o que sabemos sobre a saúde mental das pessoas que estão nas ruas?

Os dados variam. De acordo com o ObservaDH, 18% delas têm problemas de saúde mental. Já o Censo Pop Rua 2022, realizado em Belo Horizonte, indica que esse percentual é de 57%. Em São Paulo, o Censo de 2019 apontou que 29% das pessoas declararam ter “depressão” ou “alguma doença dos nervos” ao serem questionadas sobre isso – o que, diga-se de passagem, é um número até baixo, dada a forma genérica da questão: viver nas ruas, dormir pouco e em constante estado de alerta, enfrentar longas filas para se alimentar ou conseguir uma vaga em albergues, além de sofrer diversas formas de violência, inevitavelmente mexe com os “nervos”. Os dados sobre uso de álcool e outras drogas também são imprecisos, ainda que saibamos que, por variados motivos, o consumo é expressivo.

Podemos levantar várias hipóteses para tamanha divergência nos dados, que vão da negligência no cuidado com essa população à elasticidade dos diagnósticos psiquiátricos como explicação simplificada do sofrimento e complexidade da vida. Porém, mais relevante do que a precisão estatística é o fato de que a moradia é um determinante social essencial para a saúde mental — algo amplamente evidenciado em pesquisas e que nos demanda dar uma resposta pela saúde mental para a superação da situação de rua.

Moradia e saúde mental

Em 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um documento que discute a relação entre determinantes sociais e saúde mental. Nele, a existência de condições dignas de moradia é mencionada como fator-chave para promover saúde mental. Em 2022, em novo documento, a OMS apresenta evidências ainda mais concretas do nexo entre moradia e saúde mental. Para citar algumas delas, estudos mostram que a estabilidade habitacional contribui para maior organização pessoal, um importante indicador de saúde mental. Para pessoas com problemas de saúde mental, assegurar a moradia revelou-se um fator protetivo contra a mortalidade – precoce e por suicídio – mais eficaz do que qualquer outro serviço prestado. Além disso, em países de diferentes níveis de renda, a prevalência de problemas de saúde mental é consistentemente maior entre pessoas em situação de rua em comparação com a população geral.

Portanto, há um ciclo evidente entre moradia e saúde mental: moradias dignas promovem bem-estar e saúde mental, enquanto condições precárias de moradia e a ausência de moradia relacionam-se com o sofrimento.

A formulação dessa questão nesses termos não é exatamente uma novidade. É preciso recordar que, na história da saúde mental no Brasil, o reconhecimento de que a garantia do direito à moradia é fundamental para o cuidado de pessoas em sofrimento está posto, tendo sido estabelecido como uma necessidade a ser atendida pelas políticas públicas. O exemplo mais notável que temos é da volta para casa de pessoas internadas por longos períodos em hospitais psiquiátricos. Muitas vezes chamadas de “moradores de hospitais psiquiátricos” – quando um hospital psiquiátrico não é e nunca poderia ser moradia –, para essas pessoas foi assegurado o direito a uma casa para a vida em liberdade, seja pela reinserção familiar, seja pelo ingresso em um Serviço Residencial Terapêutico (SRT), que garante moradia digna na comunidade.

O fato é que o fechamento de hospitais psiquiátricos e a substituição por serviços de saúde mental abertos e comunitários – um eixo fundamental da reforma psiquiátrica brasileira – exigem a garantia do direito à moradia.

Podemos ir além. Na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) foram inventados outros serviços, como as Unidades de Acolhimento Adulto e Infantil (UAA e UAI), para buscar responder, ainda que temporariamente, à necessidade de moradia – aqui das pessoas com necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. E nas ações cotidianas de serviços de saúde mental, o desenvolvimento de estratégias de reabilitação psicossocial como cidadania, tal como formulado na proposta de Saraceno1, envolve a construção de caminhos do cuidado e ampliação do poder nos contextos de moradia e das relações sociais.

Portanto, a relação entre moradia digna e cuidado em saúde mental é questão amplamente reconhecida: reiterada por organismos internacionais, comprovada por pesquisas e abordada, ainda que requeira melhorias, enquanto necessidade das pessoas pela criação de serviços públicos. No entanto, talvez nem fossem necessárias tantas palavras e dados para sustentar esse argumento. Qualquer trabalhador de saúde sabe, a partir da prática cotidiana, que pode ser muito difícil e complexo cuidar de pessoas em situação de rua ou que vivem em condições de moradia extremamente precárias e indignas. Muitas vezes, o principal desafio não reside na complexidade clínica de um problema de saúde mental ou de uso de álcool e outras drogas, mas na ausência de um elemento básico: a garantia de moradia para possibilitar um cuidado adequado e contínuo.

Saída das ruas, entrada no cuidado: o direito à moradia

É justamente para responder a esse desafio que são desenvolvidos programas do tipo “Moradia Primeiro”. O Moradia Primeiro (ou Housing First) é uma estratégia criada nos anos 1990 por Sam Tsemberis, em Nova Iorque, partindo da ideia de que é preciso superar o desenho etapista de políticas públicas em que uma pessoa em situação de rua precisaria, por exemplo, primeiro frequentar serviços de saúde mental para depois ter acesso à moradia. O Moradia Primeiro é o que o nome anuncia: primeiro, o direito à moradia – uma moradia permanente, segura e integrada à comunidade. A partir desse direito assegurado constrói-se com a pessoa o percurso de cuidado e de acesso a outros tantos direitos – e vale mencionar que a OMS aponta essa estratégia como o caminho a seguir pelos seus ótimos resultados.

No Brasil, o Programa Moradia Cidadã, inspirado no Housing First, foi criado em 2023 como parte do Plano Ruas Visíveis, uma resposta à ADPF 976 do Supremo Tribunal Federal. Em 2024, a Portaria nº 453 instituiu o projeto-piloto do programa, com foco em pessoas em situação crônica de rua (três anos ou mais vivendo nas ruas) e com problemas de saúde mental e/ou necessidades relacionadas ao uso de álcool e outras drogas. Apesar de importante, a iniciativa ainda é tímida frente à realidade de 300 mil pessoas em situação de rua no país.

Certamente é preciso fazer mais – e dá para fazer.

Considerando o vínculo entre saúde mental e moradia, é importante que a resposta para essa necessidade envolva também as áreas da saúde e da saúde mental, além da assistência social e justiça em uma ação intersetorial. A instauração, pela Portaria nº 5453/2024, do Grupo de Trabalho no âmbito do Ministério da Saúde para “qualificar o componente IV – Atenção Residencial de Caráter Transitório da Rede de Atenção Psicossocial” é uma ótima oportunidade para isso, já que irá tratar de residencialidade. Cruzar forças com a proposta do Moradia Primeiro pode ser um bom caminho para garantir cuidado e direitos e, quem sabe, pode gerar ideias para o desenho de uma estratégia de enfrentamento do problema crescente das comunidades terapêuticas no Brasil que, tantas vezes, acabam se apresentando no lugar de responder ao problema da falta de moradia – e se hospital psiquiátrico não é um lugar de moradia, comunidade terapêutica tampouco é.

Por fim, avançar na construção dessas respostas desde a saúde mental faz sentido na história da reforma psiquiátrica brasileira. A afirmação da liberdade primeiro, bandeira de luta da saúde mental, demanda como resposta o direito à moradia primeiro. Trata-se, então, de continuarmos de maneira inventiva essa história, fazendo aquilo que a RAPS precisa fazer: inventar estratégias e serviços para responder às necessidades reais das pessoas. Este pode ser um bom caminho para irmos além das propostas de reabilitação psicossocial focada nas pessoas para, como vem reformulando Saraceno2, reabilitarmos a cidade para que dela participem todos – tendo uma casa para onde voltar.

 

Fonte: Por Cláudia Braga, para a coluna Cuidar das pessoas. Cuidar das cidades

 

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