Maurício Vieira Martins:
Marxismo e subjetividade
Em 1806, Ludwig van Beethoven concluiu a composição dos
três quartetos de cordas do opus 59 de sua obra, que ficaram conhecidos como os
quartetos Razumovsky. Seus estudiosos relatam que os músicos profissionais
encarregados da primeira execução destas peças tiveram grande dificuldade na
apreensão de sua sonoridade: conversando entre si, supunham inicialmente que,
ao invés de tratar-se da realização da encomenda comissionada pelo conde
Andreas Razumovsky ao compositor, estavam diante apenas de um jogo musical
aleatório feito por ele (o que aliás provocou uma das conhecidas explosões de
raiva de Beethoven)[1]. Contudo, no nosso
século 21, os quartetos Razumovski ocupam um lugar privilegiado entre os
píncaros da produção musical do Ocidente: marcam uma revolução sobre a
estrutura clássica dos quartetos de cordas, elaborada por músicos da estatura
de Haydn e Mozart .
Pouco menos de 40 anos depois do episódio envolvendo
Beethoven e a execução de seus quartetos, Marx redigiu o texto que veio a ser
conhecido como os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844.
Aqui, pouco importa saber se Marx tinha ou não conhecimento do referido
episódio: interessa é frisar que nos Manuscritos de 44 encontram-se
vários elementos para o que se costuma hoje nomear como uma teoria da
subjetividade. Com efeito, é ali que podemos ler que “A formação dos cinco
sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui.” Razão pela qual,
prossegue o texto, “para o ouvido não musical a mais bela música não tem nenhum
sentido” (Marx, 2004, p. 110). As considerações de Marx procuram colocar em
evidência que, uma vez constituído, o aparato sensorial humano (“ver, ouvir,
cheirar, degustar, sentir, pensar, intuir, perceber, querer, ser ativo, amar”[2], nos termos do
texto) intervém ininterruptamente sobre a realidade. Contra os que enxergavam
neste aparato apenas um legado da natureza (sem dúvida sua base incontornável),
Marx evidencia o sentido ativo que está nele presente, em
profunda interação com um mundo objetivo progressivamente alterado. Se levarmos
em conta que por volta de 1806 a surdez de Beethoven já avançava e motivava
grande angústia no compositor, precisaremos concordar com Marx que, mais do que
fazer apenas uma reprodução do mundo circundante, nossos sentidos dispõem
também de uma atividade própria, pensante: remanejam material adquirido
previamente na história dos sujeitos, não apenas reproduzem a realidade, mas
criam sobre ela. No nosso 2024, completados 180 anos da escrita dos Manuscritos
de 1844, revisitá-los nos reserva também algumas surpresas adicionais.
Pois, embora muito criticados pela escola althusseriana, estes Manuscritos vêm
recebendo a atenção de autores mais recentes como Franck Fischbach, Jason Read
e Frédéric Monferrand, que apontam para uma fecundidade ainda não explorada da
obra (por exemplo, em sua relação com B. Espinosa).
Quem conhece o pensamento de Marx, sabe que é através
do trabalho humano que o autor afirma que se altera não só a
realidade externa, como também a própria subjetividade daquele que trabalha.
Embora correta num âmbito geral, tal caracterização demanda algumas
considerações suplementares. Pois um dos aspectos mais peculiares dos Manuscritos
de 44 é colocar também em evidência uma categoria correlata a de
trabalho (Arbeit), mas que não é idêntica a ele. Referimo-nos à
atividade (Tätigkeit), entendida como uma exteriorização vital humana
que é a rigor bem mais abrangente do que o trabalho. Assim, se é verdade que
todo trabalho é uma forma de atividade humana, o inverso obviamente não é
verdadeiro: existem atividades humanas para além do universo do trabalho,
circunstância que precisa ser enfatizada em nosso tempo onde quase todo o tempo
humano de vigília é consumido pelo trabalho. Dito de outro modo: interessava a
Marx manter em aberto o desenvolvimento daquelas atividades humanas que não
estivessem dentro do circuito do trabalho. Quem se dispuser a garimpar na densa
estrutura dos Manuscritos de 44 descobre que Marx
depositava, afinal, suas maiores expectativas numa ampliação da Tätigkeit,
atividade plural, polimorfa, que se relaciona com diferentes segmentos da
realidade.
Forma ampla de intercâmbio em que os sujeitos humanos
interagem com uma enorme variedade de objetos, a atividade se processa nas mais
diversas manifestações da existência humana. E os exemplos dela que comparecem
no texto atestam sua diversidade: ouvir uma música é uma atividade vital
consciente, assistir a um espetáculo também, bem como “sentir, pensar, intuir,
perceber, querer, ser ativo, amar…” (Marx, p. 108). Quanto ao trabalho, ele é o
particular modo de atividade que se exerce sob a pressão cotidiana para
satisfazer as incontornáveis necessidades humanas; relaciona-se à luta da
espécie para assegurar sua sobrevivência, com todas as consequências daí
advindas. É o que sinaliza uma breve, mas muito esclarecedora passagem
dos Manuscritos onde se afirma que “toda a atividade humana
até agora era trabalho, portanto, indústria, atividade estranhada de si mesma”
(Ibid. p. 111). Ligando-se esta afirmação com aquela outra em que pouco depois
se enuncia que “O trabalho é apenas uma expressão da atividade humana no
interior da alienação (Entäusserung), a externação da vida (Lebensäusserung)
enquanto alienação da vida (Lebensentäusserung)[3]” (ibid, p.
149), ilumina-se a distinção entre as duas categorias. O trabalho é
entendido por Marx – por mais que isto se choque com a imagem que
posteriormente se formou de seu pensamento – como uma atividade que envolve
também uma alienação. Daí o marcante título do primeiro destes Manuscritos:
o trabalho estranhado (ou trabalho alienado)[4], categoria com uma
longeva e consistente duração na obra de Marx.
Para além de sua dimensão laboral, Marx insiste, o
homem é um ser plural e ativo: um conjunto de capacidades, de aspirações, de necessidades
e, talvez mais do que tudo, de “forças essenciais humanas” (Ibid, p. 110),
capacidades que só se desenvolvem mediante uma interação com os objetos do
mundo sensível. Objetos no sentido mais geral do termo, no
sentido de tudo o que está fora do eu, definição que certamente abrange não
apenas os utensílios de forma determinada, mas também todo o perímetro da
realidade, aí incluídos outros homens, mulheres e a própria natureza. Notemos
ainda que o homem[5] é formulado
por Marx, num primeiro momento, como parte da natureza (Ibid,
p. 84), o que explica as referências que os Manuscritos fazem
a ele como um ser natural. Mas ocorre que este ser posto pela natureza tem a
peculiar capacidade de interagir sobre ela e modificá-la. Estamos diante de uma
singular automediação: a natureza, através do homem (produto seu) interage
sobre si mesma, passando por sucessivas modificações. Ali onde havia,
inicialmente, apenas um mesmo, vai lentamente emergir uma diferença, uma
separação entre objetividade e subjetividade (subjetividade: aquilo que cabe
aos homens e à sua ação, uma “determinação do sujeito”, em sentido preciso). E
homens e mulheres, agora parte distinta da natureza originária, não param de se
automediar. Eles simultaneamente transformam a natureza (e são transformados
por ela), a si mesmos e a seus semelhantes. A atualização contínua deste
mediador de primeira ordem, a atividade, provoca alterações radicais na
“essência” da natureza e do homem[6]. É uma história em
aberto que vai se fazendo.
A constituição do sujeito humano se processa portanto
visceralmnete entrelaçada a uma forma de objetivação: todas as capacidades
humanas, todas as forças e aptidões humanas são exteriorizadas, objetivadas
mediante seu agir no mundo. Isso dá origem ao que Marx chama de “natureza
humanizada” (Ibid., p. 110), natureza que sofreu a intervenção humana. Se em
Manchester existem hoje “fábricas e máquinas onde cem anos atrás se viam apenas
rodas de fiar e teares manuais” (Marx & Engels, 2007, p. 31) – conforme nos
lembra um texto posterior, A ideologia alemã -, tal ocorreu
devido a uma gigantesca transformação do mundo sensorial operada pela atividade
humana. Trata-se de uma simultânea exteriorização e atualização de capacidades
humanas: trasladar da potência do sujeito para o mundo real. Modificação da
exterioridade, portanto (e vemos agora que exterioridade não é, a rigor, um
conceito absoluto, pois existe trânsito, interpenetração, entre aquilo que
existe no homem e o que vigora no mundo sensorial), e modificação também da
interioridade, é assim que o sujeito humano se constitui.
No que diz respeito ao mencionado estranhamento do
trabalho, uma de suas razões mais básicas é a perda do caráter múltiplo da
atividade humana. Na medida em que o homem é concebido por Marx como o portador
de um conjunto diferenciado de forças essenciais, cada uma dessas forças (o
“olhar”, o “ouvir”, o “degustar”, etc, nos exemplos do texto) demanda uma
atividade que a expresse. Por isso, é a multiplicidade – e
também a possibilidade de variação -, o atributo que melhor possibilita a
renovação do agir humano. Para haver uma efetiva apropriação da realidade
humana, sua condição de multiplicidade deve ser satisfeita: “seu comportamento
para com o objeto é o acionamento da efetividade humana (por isso ela é
precisamente tão multíplice (vielfach) quanto multíplices são as
determinações essenciais e atividades humanas)” (Marx, 2004, p. 108).
Ora, o trabalho alienado é precisamente o oposto disso:
ele se caracteriza pelo encolhimento drástico de uma atividade que é
potencialmente plural. Sob a égide da divisão do trabalho, cada grupo de
indivíduos, cada classe social, passa a interagir com um segmento muito
limitado da realidade. Perdendo seus atributos de multiplicidade, o trabalho na
sociedade burguesa se caracteriza pela repetição, pelo confinamento a uma
rotina massacrante que esvazia seus agentes. Isso indica que, já num
texto da juventude de Marx, encontramos uma teorização que captura o trabalho
em sua ambivalência. Atividade que modifica incessantemente o perfil da
realidade sensorial, responsável pela monumental transformação da natureza
originária e também pela objetivação das capacidades humanas, o trabalho faz
isso sob a égide da alienação. As capacidades humanas são exteriorizadas e
surgem à luz da efetividade: o desenvolvimento da ciência nos dá mostras
inequívocas daquilo que os homens podem transformar do seu meio e de si mesmos.
Mas a ambivalência do trabalho, sua contraditoriedade dialética, é que,
mediante sua subordinação à lógica capitalista, as referidas capacidades
efetivam-se apenas para um número muito restrito de indivíduos;
para o restante da população elas surgem como um poder alheio, que nem de longe
mantêm um vínculo afirmativo com seu trabalho cotidiano.
·
Um materialismo que acolhe a subjetividade
A possibilidade de gênese da subjetividade humana se
situa precisamente no interior desta discussão: só quando articulada aos seus
esteios objetivos mais gerais tal gênese pode ser corretamente visualizada.
Pois o fato é que a atividade e o trabalho humano produzem, ao longo da
história, um sujeito decupado, que consegue diferenciar-se dos laços
comunitários predominantes em formações sociais mais antigas (tema enfatizado
por Marx em escritos posteriores, como nos Grundrisse). É neste
âmbito que cabe afirmar que os Manuscritos de 44 apresentam
uma análise sobre a constituição da subjetividade, sobre a formação dos
atributos especificamente humanos de homens e mulheres. Cabe aqui um
esclarecimento terminológico, já que falar em constituição da subjetividade, no
século XXI, gera ressonâncias teóricas distintas das que estamos tratando. Seria
anacrônico cobrar de Marx categorias que só foram elaboradas no século XX, como
uma teoria do inconsciente, do recalque originário, da cadeia significante,
para mencionarmos apenas exemplos da psicanálise[7].
Temática ampla, que comporta vários modos de
aproximação, a subjetividade tal como formulada por Marx se reporta a tudo
aquilo que está locado no sujeito humano (suas forças ativas, seus sentimentos,
suas paixões, etc), por contraste às condições externas de existência,
objetivas, que precedem à entrada do(s) sujeito(s) na interação mundana. Ainda
que saibamos que exterioridade e interioridade são conceitos que se
interpenetram, colocar simplesmente um sinal de igual entre eles é um
procedimento problemático e distante do pensamento de Marx. Pois mesmo que seja
característica de sua abordagem a ênfase que ela atribui ao primado da
objetividade, das condições objetivas de existência com as quais cada sujeito
tem que necessariamente lidar, isso não impede – antes melhor delineia – o
contorno do histórico do campo subjetivo. Aliás, a crença numa possível
identidade entre interioridade e exterioridade, entre sujeito e objeto, é marca
do hegelianismo e de suas ramificações, tendo recebido críticas de Marx que
nela enxergou uma exaltação desmedida das capacidades subjetivas. Contra a
ideia de uma subjetividade demiúrgica, cabe atestar sua dependência em face do
objeto: só assim os diferentes sujeitos – e isso vale também para as classes
sociais – têm condições de se reconhecer na sua inserção histórica real.
Se é verdade que a esfera da subjetividade em Marx
abarca todas as forças essenciais humanas, é preciso imediatamente adendar que
a formulação de 1844 não se limita a isso, pois até aqui estaríamos ainda num
terreno próximo ao do sensorialismo feuerbachiano. O que os Manuscritos
de 44 apresentam de novo é uma construção que evidencia que mesmo o
domínio da subjetividade é inequivocamente ativo e construído: longe de ser
dado originariamente ao homem, ele se constitui pela via de um sistema complexo
de mediações históricas:
[é] apenas pela riqueza objetivamente desdobrada da
essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva, que um ouvido
musical, um olho para a beleza da forma, em suma as fruições humanas todas se
tornam sentidos capazes, sentidos que se confirmam como forças essenciais
humanas, […] A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do
mundo até aqui. (Marx, 2004, p. 110)
Trata-se então de uma subjetividade que se
constituiu ao longo da história. Iniciamos este texto comentando a
dificuldade dos primeiros executores dos quartetos de cordas intermediários de
Beethoven: o exemplo não foi escolhido ao acaso. Tratava-se de músicos
experientes, sendo que o primeiro violino do grupo era Ignaz Schupanzigh,
amigo de Beethoven que acompanhava bem de perto a produção do compositor. Mas
mesmo para estes qualificados profissionais a sonoridade produzida pelos novos
quartetos gerava desconforto. Se adicionarmos a isso o mencionado fato de que a
surdez de Beethoven já comprometia seu relacionamento com o mundo exterior,
abrimos caminho para o reconhecimento do caráter plástico do aparato sensorial,
que possibilitou a criação de composições em níveis progressivamente mais
elaborados. A rigor, a própria expressão aparato sensorial deve ser modificada
para comportar também os atributos pensantes – e inconscientes, acrescentará a
psicanálise tantos anos depois – nela presentes. Aqui, torna-se patente a pobreza
das concepções da arte como apenas uma mimese fotográfica da realidade –
concepção contra a qual um G. Lukács tanto se bateu, diferenciando com vigor,
por exemplo, realismo de naturalismo.
Este alargamento ativo das faculdades humanas
originárias tem como um de seus resultados a possibilidade de formas de
interação e captação da realidade sensível que simplesmente não existiam em
outros períodos históricos. Os Manuscritos de 44 são
pródigos em exemplos que visam atestar a emergência de uma apropriação singularizada
das diferentes dimensões da realidade. Seja referindo-se à formação do olho
estético, que consegue descortinar a beleza da forma, seja na observação de que
o “homem faminto” desconhece a forma humana da comida (aguilhoado que está pela
pressão da necessidade), seja no que diz respeito ao homem “cheio de
preocupações” que não consegue aceder ao senso apropriado para “o mais belo
espetáculo” (Ibid, p. 110), o que o texto busca tornar visível é a capacidade
de desfrute (genuss) de um sujeito historicamente constituído. O que
hoje nomeamos como sensibilidade (utilizando a palavra agora no sentido de
aptidão para o exercício de alguma atividade criativa) é o resultado de uma
extensa cadeia de mediações simultaneamente objetivas e subjetivas que não se
evidenciam para o observador desavisado. O sujeito dito moderno, que dispõe da
capacidade de estabelecer uma relação afirmativa, interiorizada, com a “beleza
da forma”, este sujeito que já se desprendeu da “carência prática” imediata
(nos termos de 1844) só existe mediante um processo histórico que atualiza na
realidade os potenciais atributos humanos. E o fato que de que pode haver uma
regressão de tais capacidades – pensemos nas teses de Th. Adorno sobre a
regressão da audição promovida pela indústria cultural – de forma alguma anula
seu caráter histórico, apenas confirma-as em seu caráter construído e mediado.
Estamos diante então de uma retroação da atividade
sobre o próprio sujeito que a exerce. Anos mais tarde, quando da redação
de O capital, Marx retornará a este tema: “Agindo sobre a
natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele [o homem]
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que
nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio”
(Marx, 2013, p. 255). Temos aqui a gênese de um processo de subjetivação. E,
adendo fundamental, tais modificações na subjetividade são perfeitamente
passíveis de serem transmitidas para a geração humana posterior. Diferentemente
da evolução biológica em sentido estrito, onde a modificação ao longo da vida
de um indivíduo de certos caracteres dificilmente é herdada por sua prole, as
transformações culturais apresentam um caráter mais plástico e cumulativo.
Atento a isto, e com uma ponta de ironia, um biólogo com conhecimento de
marxismo como Stephen Jay Gould pôde escrever que “A evolução cultural humana,
em forte oposição à nossa história biológica, é de caráter lamarckiano” (Gould,
1990, p. 71). Herdamos de nossos antepassados um habitus, um conjunto
de disposições interiorizadas, que opera continuamente a atualização das
transformações históricas nos seres humanos. É de se notar que este registro
não tem um caráter valorativo: assim como a sensibilidade musical pode ser
transmitida, dadas certas condições, para as gerações posteriores, também
estruturas opressivas, como o patriarcado, são atualizadas, produzindo
subjetividades adequadas a elas.
Retornando aos Manuscritos de 44, neles
aprendemos que obtém-se um alargamento do campo de existência do sujeito quando
ele, pela via da sucessiva exteriorização das suas forças humanas, desprende-se
do domínio da necessidade e consegue alcançar o desfrute do específico objeto
com o qual interage. Torna-se patente a relação entre a capacidade subjetiva e o
objeto singular com o qual ela interage, até porque “o sentido de um objeto
para mim (só tem sentido para um sentido que lhe corresponda) vai precisamente
tão longe quanto vai o meu sentido” (Ibid, p. 110). Esta observação muito geral
ganha sua referência empírica quando Marx lembra que:
Ao olho um objeto se torna diferente do que ao ouvido,
e o objeto do olho é um outro que o do ouvido. A peculiaridade de cada força
essencial é precisamente a sua essência peculiar, portanto também o modo
peculiar da sua objetivação, do seu ser vivo objetivo-efetivo. (Ibid, p. 110)
O tema da multiplicidade é aqui reiterado: ele supõe um
entendimento do humano como um conjunto múltiplo de forças, impulsos, desejos e
capacidades singulares que demandam uma atividade polimorfa, não fixa, para que
esta pluralidade possa se expressar. Só assim é possível o desenvolvimento de
uma interação efetiva entre cada sentido humano e o objeto com o qual ele
interage. Se o olho goza de forma distinta da do ouvido, se o tato estabelece
uma relação objetal distinta da do paladar, tal ocorre porque a subjetividade
humana encontra, afinal, sua necessária fundação no campo da diversidade
objetiva real. Fora disso, ela é pura abstração, pura criação daqueles
filósofos que acreditam na possibilidade de uma subjetividade desencarnada,
“sem olhos, sem dentes, sem ouvidos, sem nada” (Ibid, p. 135).
O reconhecimento do potencial caráter múltiplo das
capacidades humanas faz aparecer de outro modo a concepção do que seja a
riqueza humana, tendo em vista que o “homem rico é simultaneamente o homem
carente de uma totalidade da manifestação humana de vida” (Ibid, p. 112-113).
Esta subjetividade pede, portanto, para se exteriorizar, para ver atualizadas
suas diferentes capacidades. Exteriorização que é sentida como necessidade,
como urgência da essência que demanda seu desdobramento como existência. É uma
concepção afirmativa de subjetividade que é defendida por Marx, o que explica
também sua repulsa à sociedade burguesa. Pois esta última, ao invés de propiciar
as condições para a expansão do ser, ao invés de engendrar o “homem nesta total
riqueza da sua essência” (Ibid, p. 111) produz, ao contrário, indivíduos
impedidos de uma exteriorização de vida humana. O trabalho alienado, forma
parcial da atividade vital consciente, confina o indivíduo a uma interação com
um número muito restrito de objetos; a rígida divisão do trabalho estanca de
forma mortal o fluxo da atividade. O que era produção da vida põe-se agora como
sua atrofia; razões adicionais para Marx afirmar o seu projeto
socialista.
Assim é que a crítica à propriedade privada em Marx não
incide apenas sobre as distorções econômicas mais visíveis que ela produz: uma
brutal concentração de renda nas mãos de alguns em flagrante contraste com a
pauperização da maioria da população. Ela comporta também a denúncia de uma
forma de sociabilidade que impede homens e mulheres de se autoproduzirem como
tais, limitados que estão a um modo de efetivação da vida extremamente
unilateral. Potencialmente, os homens são uma pluralidade de capacidades e de
forças objetivas essenciais, mas a lógica capitalista restringe estas
capacidades e prende cada indivíduo a apenas um predicado seu.
No que diz respeito à recorrente mutilação da
subjetividade humana, é de se notar também a persistência da crítica de Marx,
ao longo de sua obra, às consequências dos imperativos de produtividade
capitalista vinculados à divisão do trabalho e à propriedade privada. Anos
depois da redação dos Manuscritos de 44, já em O capital,
reencontraremos uma divergência de fundo quanto às deformações trazidas pela
divisão do trabalho na manufatura em seus trabalhadores:
Ela [a manufatura] aleija o trabalhador,
converte-o numa aberração, promovendo artificialmente sua habilidade detalhista
por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas, do
mesmo modo como, nos Estados de La Plata, um animal inteiro é abatido apenas
para a retirada da pele ou do sebo. (Marx, 2013, p.434)
O substrato filosófico destas contundentes palavras de
Marx é precisamente sua concepção das capacidades humanas como sendo
potencialmente plurais – aquisição duradoura dos Manuscritos
de 44 -, necessitando de um conjunto variado de objetos para poderem
ser exercidas. Por outro lado, sabemos que a partir da terça parte do século XX
surgiram teorias que prognosticavam um crescente declínio do uso da força de
trabalho humana. Ainda que com diferenças significativas, elas partilhavam da
ideia de que a automação crescente dispensaria cada vez mais o uso do trabalho
humano. Em 1999, o grupo alemão Krisis, que teve em Robert Kurz
um de seus representantes de maior projeção, usou palavras provocativas para
referir-se ao suposto declínio da venda da força de trabalho humana: “A venda
da mercadoria força de trabalho será no século XXI tão promissora quanto a
venda de carruagens de correio no século XX.”
Forçoso é reconhecer que o transcurso histórico não
confirmou tal previsão. Longe disso. O que temos no nosso século XXI é uma
configuração histórica portadora de um desenvolvimento tecnológico inaudito que
convive com multidões de trabalhadores precarizados e mal remunerados. Ao invés
do fim da sociedade do trabalho, presenciamos uma expansão da jornada de
trabalho mesmo sobre aqueles períodos que tradicionalmente se constituíam como
tempo livre: fins de semana, feriados, turnos da noite (tal é o horizonte de
uma jornada de trabalho imparável, que merece hoje o justo repúdio de ativistas
e intelectuais de esquerda). Isso para não mencionarmos aqueles que mergulham
no desemprego puro e simples, constituindo o que certa vez o sociólogo Zygmunt
Bauman designou com o incômodo nome de refugo humano: os
sobrantes de uma sociedade que não encontram condições para viver e exercer
suas potencialidades de vida.
A dura atualidade do trabalho estranhado e a mutilação
das subjetividades por ele acarretada fazem pensar que o retorno a certos
textos fundadores de Marx nos permitem examinar a gênese de uma configuração
histórica que hoje atinge seu paroxismo. Pois o fato é que em 1844, aos 25 anos
de idade – e ainda distante, muito distante de suas grandes obras da maturidade
-, o jovem Marx num primeiro contato com a Economia Política dispôs-se a
revisar sua herança filosófica para melhor visualizar a hidra que se formava
diante de si. O leitor contemporâneo que percorrer, sem preconceitos, estes
densos Manuscritos de 1844, mesmo com seus limites reais, poderá
presenciar ali, no nascedouro, a força de um pensamento que se ergue. Será
excessivo afirmar que este encontro pavimentado por Marx entre a Filosofia e a
Economia Política mudou parte da história do pensamento?
Fonte: A Terra é
Redonda
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