Henrique
Costa: Os paradoxos na busca do bem-estar social e a fuga da exaustão
O mundo do trabalho no Brasil,
especialmente para a população mais marginalizada e com menos formação, tem se
deteriorado progressivamente. Enquanto o trabalho formal oferece cada
vez menos vagas com direitos trabalhistas garantidos, o empreendedorismo, que virou imperativo no
mundo contemporâneo, ganha mais espaço. O pesquisador Henrique Costa, especialista nos temas associados à crise do capitalismo nas
periferias, especialmente a paulistana, tem se dedicado a
compreender o fenômeno. Diante do cenário, ele traça paralelos e linhas de fuga
entre o empreendedorismo da classe média e o que ele denomina “empreendedorismo popular”.
“Não dá para glamourizar o empreendedorismo popular, as pessoas que
tentam essas saídas empreendedoras têm sonhos e aspirações, assim como qualquer
outras. Não é porque o empreendedorismo
de classe média tem menos chances de dar errado que ele é
mais legítimo, mas ele também está ancorado em privilégios que os
empreendedores populares não têm, o que faz com eles estejam muito mais
vulneráveis e sujeitos às incertezas”, afirma Henrique Costa em
entrevista por telefone do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU.
<><> Confira e entrevista.
·
O tema do
empreendedorismo popular paulistano é objeto de sua de doutorado. Quais as
especificidades e contradições mais marcantes do empreendedorismo na cidade
mais rica do Brasil?
Henrique
Costa – O empreendedorismo de São Paulo é
muito dinâmico para os padrões brasileiros, evidentemente, porque São Paulo tem
o dinamismo econômico muito destacado. A cidade, desde os anos 1950, tem um
poder de atração de migrantes muito forte, há desde populações que migraram
do Nordeste e
se instalaram nas periferias até
migrantes de fora do país. Então, todo esse caldo de uma certa cultura empreendedora,
ajudou a formar o empreendedorismo na cidade. Nos anos recentes, com a mobilidade social de
uma população que se convencionou chamar de classes C e D, que ascenderam para
uma nova classe média, gerou uma demanda por
produtos muito significativa. Essa demanda, necessariamente, cria oportunidades
também para que muitas pessoas possam abrir novos negócios, comércios, prover
produtos e serviços para essas classes que ascenderam. Isso é um fenômeno mais
recente, mas de todo modo São
Paulo favorece esse tipo de iniciativa.
Claro que isso traz contradições evidentes. São Paulo tem
uma mobilidade de
pessoas ao longo da cidade muito grande: os trabalhadores moram na periferia,
circulam pelo centro, trabalham muitas vezes com a classe média tradicional e
levam isso de volta para seus bairros. Isso significa uma tentativa de
adequação das classes mais baixas que tiveram essa mobilidade para um certo
consumo de classe média. As pessoas, a partir de que elas conseguem mais
recursos, tanto esperam ter produtos e serviços diferenciados, quanto com um
aumento da distinção. São pessoas que buscam padrões de consumo que
as distinguem dos seus pares, dos seus vizinhos. Então, o consumo obviamente é
um meio de distinção social e cria heterogeneidade maior, não só no padrão de
consumo, como nos modos de vida também. Por exemplo, a expansão dos condomínios
dentro das periferias,
viver dentro de um condomínio, que antes era um modo de vida social da classe
média tradicional, já não é mais. Então, quem mora em condomínio tem uma
diferenciação bastante significativa com relação às outras pessoas que moram na
periferia. Essa pluralidade nas periferias é muito resultado disso. É um
círculo virtuoso por um lado, de criação de oportunidades, e, por outro, de
criação de heterogeneidade, mas também de conflitos que são renovados ou
criados mesmo a partir dessa pluralidade. E, evidentemente, que a manutenção de
um negócio implica vários capitais que são necessários para isso. Não só capital econômico,
mas também capital
social e capital
cultural, o que não está disponível para todos. Mesmo que a
pessoa tenha dinheiro para abrir um negócio, são outros meios que são
necessários para que isso funcione. Obviamente que não funciona para todos e
isso traz consequências imediatas.
·
Como se caracteriza o empreendedorismo popular e
quais suas diferenças para o empreendedorismo em sentido amplo?
Henrique
Costa – Também como parte das contradições que cercam
a ideia de empreendedorismo nas periferias de São Paulo, o empreendedorismo
é muito diferente daquele mais glamourizado que
vemos nas classes médias e nos bairros centrais das grandes cidades, em
especial em São Paulo, onde tem uma classe média que sempre foi muito
empreendedora. Temos hoje, o que é muito comum, desde os restaurantes com
perfil “globalizado”, que encontramos em Berlim, São Paulo, Nova Iorque,
as startups e o empreendedorismo tradicional,
que também é muito dinâmico na cidade e resultado de condições prévias muito
privilegiadas. Inclusive, essas pessoas de classe média têm muito mais
condições de arriscar em um negócio, porque se o negócio eventualmente não dá
certo, geralmente elas têm um colchão para se apoiar para poder começar de novo
e até começar outro negócio.
O que não é permitido para as classes populares,
mais baixas, que estão sempre andando no “fio da navalha”. Então, qualquer erro
de estratégia ou passo dado sem muita reflexão pode gerar consequências muito
graves. Não só endividamento,
que é o mais comum, que as pessoas passam muito tempo sem conseguir crédito ou
com o nome sujo. Mas também consequências para família, consequências sociais,
às vezes perder a casa por dívida, e usar familiares para ficar renovando o
cadastro de Pessoa
Jurídica – PJ. Um exemplo muito comum é a empresa quebrar, para
ter um novo CNPJ a
pessoa vai lá e usa o nome de familiares e vira uma bola de neve.
Não dá para glamourizar o empreendedorismo popular,
as pessoas que tentam essas saídas empreendedoras têm sonhos e aspirações,
assim como qualquer outras. Não é porque o empreendedorismo de classe média tem
menos chances de dar errado que ele é mais legítimo, mas ele também está
ancorado em privilégios que os empreendedores populares não têm, o que faz com
eles estejam muito mais vulneráveis e sujeitos às incertezas.
·
Quais são as principais dificuldades e os principais
conflitos que os empreendedores populares enfrentam no dia a dia?
Henrique
Costa – Encaixa um pouco com que eu vinha dizendo na
resposta anterior. Além disso, podemos acrescentar o fato de que a tal “educação financeira”,
que muita gente reivindica e muita gente condena, é algo fundamental ao
empreendedor. Tem várias dificuldades que são criadas justamente pela falta de
conhecimentos básicos sobre a manutenção de um negócio. Por exemplo: é muito
comum que um empreendedor popular misture as contas de casa com as contas do
negócio. Isto é, usa o que arrecadou na empresa para pagar dúvidas pessoais,
como no cartão crédito. Isso qualquer consultor de empresa sabe, mas o
empreendedor popular não necessariamente. A pessoa abre um negócio na garagem,
paga uma conta com o dinheiro da outra, o que é uma receita para dar errado,
mas é muito comum. Claro que tem outras coisas que estão para além das boas
intenções do empreendedor, como conseguir financiamento. Geralmente os bancos
são muito rigorosos e preconceituosos com relação aos pequenos comerciantes que
precisam de crédito para expandir seu negócio e não veem apoio estatal, nem
meios de financiar.
Uma reclamação que ouço bastante é justamente o
fato de que tem muita burocracia.
É muito comum o empreendedor popular se referir ao Estado como aquele que não
ajuda e ainda coloca obstáculos. Então, a demanda por desburocratização é muito
comum – não vou entrar no mérito se estão corretos ou não. Mas isso é um
problema de fato, não só para quem tem poucos recursos financeiros, mas pouco
recursos educacionais. Tem um nível de burocracia que se exige deles e que, de
fato, são muito difíceis de serem cumpridos. Claro que o Estado precisa regular
isso de alguma forma, mas é uma queixa constante.
·
Até que ponto o empreendedorismo no contexto popular
exprime uma ideologia neoliberal individualista e a partir de que momento se
converte em economia moral?
Henrique
Costa – Existe uma ideologia, é inegável. Temos isso
difundido a olhos vistos na mídia, pelos governos – políticos falam disso.
Então, é inegável que existe um incentivo por parte dessas instituições em
direção ao empreendedorismo. Não acho que isso resolve
tudo e que fica só nisso. Boa parte da produção acadêmica contemporânea,
principalmente mais sociológica, tende a ver esse apelo ao empreendedorismo só
como uma tentativa de manipulação. Eu discordo.
Muitas pessoas que buscam esses negócios próprios
têm consciência dos riscos, de que não é fácil e das incertezas associadas
ao empreendedorismo,
mas está em busca de autonomia.
Isso é um direito humano básico: buscar sua autonomia, não querer ter patrão e
nem ficar subordinado a ninguém. Claro que a chance de dar errado é muito
grande e que existe um certo interesse dos governos em um cenário de
pós-reestruturação produtiva, onde a economia patina, e vive muito a base dos
serviços e do agronegócio. Não tem mais aquela industrialização prometida,
a criação de bons empregos e qualificados. Nesse cenário de desilusão, essas
pessoas preferem estar comprometidas com projeto de autonomia. Tem dimensões
diferentes. A minha intenção com a pesquisa de doutorado, que vai virar livro
em breve, é tentar criar nuances. Eu comecei a pesquisa com esse viés de pensar
o empreendedorismo como
uma ideologia que manipulava e criava falsa consciência. Eu fui vendo ao longo
dos anos que isso existe, mas em recortes muito específicos. Um deles, por
exemplo, é o do empreendedorismo
periférico, onde tem organizações sociais, ONGs e fundações
sociais que atuam na periferia criando esse estímulo. Muitas dessas pessoas,
principalmente jovens, compram esse discurso mais globalizado de empreendedorismo
com muito afinco, passando por que pequenos comerciantes, pessoas mais velhas e
de meia idade, que eventualmente abrem um negócio, um boteco ou restaurante e
não têm um discurso pronto sobre isso. As pessoas sabem o que é
empreendedorismo, mas não têm uma narrativa para explicar.
Essa ideologia existe, mas o que é mais
significativo na explicação é justamente isso que estou chamando de “economia moral do
empreendedorismo popular”, que é ter condições básicas de
bem-estar, que o mercado de trabalho hoje não provê para a grande maioria e que
nunca esteve disponível para essa grande massa. Essa economia moral vai
estar preocupada com outras coisas além da renda e da segurança do trabalho, é
preocupada também a com a família, com a vizinhança, com certo bem-estar, com
uma não subordinação e uma fuga da exaustão. É polêmico, mas muita gente que
tenta um negócio novo o faz para trabalhar menos. Muitos do que resolvem
empreender é porque querem trabalhar menos, mesmo que isso implique em ter
menos renda e não ter direitos trabalhistas. Essas nuances e heterogeneidade
das experiências que me moveu a fazer essa pesquisa.
·
Quais são as
ocupações e os trabalhos mais comuns entre os empreendedores populares na
periferia da cidade de São Paulo?
Henrique
Costa – O que posso dizer, a partir do ponto de vista
da minha pesquisa, para além desses comércios que são tradicionais, esse perfil
que chamo de “empreendedorismo
periférico”, que é uma espécie de subcategoria do empreendedorismo popular,
uma categoria que está dentro desse guarda-chuva, geralmente está muito
vinculada à etnia. Costumam ser negócios de gastronomia e de moda que estão
muito ligados à identidade periférica ou afro-brasileira. Isso é muito comum de
se encontrar na periferia, principalmente nesse empreendedorismo que se
denomina periférico. É importante salientar: o empreendedorismo periférico é
feito por pessoas que se identificam como periféricas e se veem nesse lugar e
empreendem a partir desse lugar de identidade. Mas do ponto de vista
quantitativo, não tenho como dizer com precisão, pois não é parte daminha
pesquisa.
·
Eu gostaria que você explicasse como a economia
moral se converte num mecanismo de sociabilidade importante aos moradores da
periferia?
Henrique
Costa – É uma pergunta interessante. Uma coisa que
acontece muito em comunidades menos ligadas ao centro, que estão um pouco mais
isoladas, no caso que eu menciono na minha pesquisa, que é Vargem Grande,
que fica no extremo da Zona
Sul da cidade, dentro do Distrito de Parelheiros,
os comerciantes se apoiam muito. Eles dizem com frequência que não têm
clientes, mas amigos, um consome do outro. Então, tem uma relação muito mais
orgânica entre as pessoas que moram e as que empreendem no bairro. Essa
inspiração vem de uma pesquisa clássica: Richard
Hoggart, sociólogo britânico, escreveu nos anos 1950 sobre
a classe operária inglesa e dizia que um comerciante que estivesse trabalhando
no seu próprio bairro era visto de maneira respeitável, muito diferente de um
comerciante que tinha que abrir um negócio em um bairro de classe média, onde
seria visto como um subordinado, alguém inferior. Essa virtuosidade do comércio
local e da relação que se estabelece entre eles, é muito interessante de ver.
É claro que quanto mais se caminha em direção ao
centro, quanto mais esses lugares de comércios se tornam impessoais, menos essa
relação de sociabilidade se estabelece, ela fica cada vez mais interessada no
negócio, no lucro. Por isso que o “fiado” é muito comum ainda nas regiões mais
afastadas, de comércio mais endógeno, porque se pressupõe uma relação de
confiança. Quanto mais impessoais se tornam essas ruas de comércio, menos esse
tipo de relação de confiança existe, então tem uma impessoalidade e
um individualismo muito maior e também um ceticismo maior, as
pessoas são menos afeitas a confiar não só em outras pessoas individualmente,
mas nas instituições, bancos, prefeituras, governos do estado e governo
federal.
·
Qual é a
relação desses empreendedores das periferias com a Polícia Militar, seja no contexto do
comércio, seja no contexto familiar?
Henrique
Costa – É claro que a questão da criminalidade está
presente praticamente em todo o território brasileiro e em São Paulo não
deixa ser o caso. Várias dessas regiões são dominadas pelo Primeiro Comando da Capital – PCC,
por exemplo. Isso gera nessas pessoas um sentimento de insegurança que também
faz com que elas assumam discursos mais securitários de defesa da polícia, por
mais policiamento. O exemplo mais contundente da minha pesquisa é Paraisópolis, que temos os “fluxos”, os bailes funk que atraem milhares de jovens da cidade toda
e que geram contrariedades com os moradores. Muitos moradores são a favor do
policiamento, são a favor que polícia impeça os bailes funks de acontecer. Eu
não diria que tem uma relação mais formal, mas tem uma expectativa de que
a Polícia Militar resolva
certos conflitos que são endógenos.
O baile
funk, apesar de gerar muita controvérsia entre os próprios
moradores, também tem o lado econômico. É curioso porque muitos moradores vivem
do comércio no baile funk. Às vezes o sujeito aluga sua laje que vira uma
espécie do camarote do baile, o pessoal que é ambulante vende comida, bebida,
cigarro. Para o interlocutor que está ali, vendo tudo isso acontecer, ao mesmo
tempo que entende que isso traz uma atividade econômica virtuosa para o bairro,
traz também muitos transtornos para os moradores, principalmente para quem tem
filhos e para os mais idosos. Apesar do dinamismo econômico que está associado
à festa, o discurso
securitário predomina e, nesse sentido, a polícia é muito
requisitada. Não diria respeitada, porque todo mundo tem certo receio da
polícia, mas entre a polícia, o baile funk e o PCC, provavelmente a polícia
seria mais bem-vinda.
·
Como os conflitos de classe se expressam na relação
entre os empreendedores populares da periferia e os moradores de outras
regiões?
Henrique
Costa – Hoje não é possível dizer que na periferia só
tem precariedade. Além dessa questão do empreendedorismo, os serviços públicos
melhoraram. Em São Paulo, o metrô chegou a Campo Limpo, a Capão Redondo, o
que foi uma mudança muito significativa na vida das pessoas. Tem ainda o Minha Casa, Minha Vida.
No Campo Limpo,
por exemplo, vemos a expansão desses condomínios, isso gera modos de vida renovados, não
necessariamente para melhor, mas são novas formas de viver suas
vidas. Então, muitas pessoas que têm comércio na periferia e conseguiu
prosperar por meio da consolidação desses negócios, acaba preferindo ir morar
em condomínios,
onde supostamente tem mais segurança. Ter filhos também é um apelo, pois muitos
interlocutores me falam que quando eram jovens podiam brincar na rua e a saída
é ir morar nesses condomínios, pois possibilita a criança brincar na “rua”. É
um arremedo desse modo de vida que deixou de existir, pelo menos na memória das
pessoas. Tem uma interlocutora do Campo
Limpo que tem três filhos e se ressente muito porque as
filhas não podem brincar na rua como ela fez. Mas a juventude dela foi
justamente nos anos 1990, onde, por outro lado, havia os Racionais MC’s dizendo que existia um "Holocausto Urbano"
acontecendo. É muito curioso avaliar esses pontos de vista que parte da
experiência que são muito diferentes. Ela trabalhou em um salão de cabelereiro
e hoje trabalha nesse ramo da beleza. Ela tentou fazer um negócio na Chácara de Santo Antônio,
que é um bairro de classe média alta. Arrendou um salão lá e teve muitas
dificuldades, porque o salão
na periferia está sempre cheio, mas na Chácara de Santo
Antônio só tem movimento durante a semana. Para ela foi bem difícil, porque
ainda pegou o período da pandemia, que foi outra dificuldade imensa. Ela fez
isso movida por uma expectativa de mobilidade
social, que não era só uma mobilidade de padrão de consumo, mas
uma mobilidade de status. Ela se via entre a sua clientela de classe média como
uma pessoa maior, mais reconhecida, porque fez vários cursos de especialização,
então ela entendia que tinha esse mérito.
Esse é outro ponto importante entre os empreendedores populares:
as pessoas acreditam muito no mérito, que vem tanto da experiência quanto das
qualificações. As pessoas estão indo atrás de qualificação para poder acreditar
que isso, por si só, vai trazer um retorno para o negócio. Isso é um conflito
de classe, como você mencionou. São muito complexas essas situações, não
necessariamente têm resultado positivo, pelo contrário, não só em questão de
quanto consegue prosperar economicamente, mas isso tem mudanças muito
significativas em relação aos modos de vida, sociabilidade e maneira com que se
relaciona com os vizinhos e outras classes sociais também.
·
Como a
verticalização das periferias, a construção de torres e condomínios, tem
alterado a sociabilidade comunitária nestas regiões?
Henrique
Costa – Eu já adiantei essa resposta. Isso é muito
significativo, não é um detalhe. Para exemplificar, durante a pandemia, esses
negócios se multiplicaram; os dados oficiais corroboram isso. Na prática se via
muita gente perdendo emprego em restaurantes que fecharam, e começaram a fazer
comida em casa ara vender por delivery.
Por meio do WhatsApp e
do Instagram anunciavam
esses negócios e muitos desses clientes eram do próprio condomínio. Então, o
sujeito abria um serviço de marmita, por exemplo, em casa, negócios totalmente
familiares com o marido cozinhando, a esposa administrando e a filha realizando
as entregas – esse é um exemplo real que estou mencionando. Inclusive um casal
gaúcho que conheci, migraram para São
Paulo, trabalhavam em restaurante e passaram por essa situação
de perder o emprego. O condomínio no
fim das contas acabou sendo o esteio da prosperidade deles. Estava dando
razoavelmente certo, o marido tinha uma experiência grande com comida italiana
e o próprio condomínio acabou sendo o espaço do êxito desse negócio totalmente
familiar. A verticalização da periferia é central
para esse processo.
·
Guilherme
Boulos publicou, antes do segundo turno, uma “Carta ao Povo de São Paulo”
na qual faz um mea culpa da esquerda em relação aos
empreendedores das periferias. O que significa esse movimento político?
Henrique
Costa – Sobre essa questão política de como os
candidatos tentaram lidar foi muito por conta do resultado bastante
significativo do Pablo Marçal nas eleições municipais. Essas iniciativas,
como abrir linha de crédito, não conseguem fugir de um perfil muito
eleitoreiro. E o que o Pablo
Marçal propõe é algo muito mais profundo, ele entende
o empreendedorismo como
modo de vida. Claro que a interpretação de empreendedorismo dele é muito
mais de um individualismo muito pouco solidário e que não está nenhum pouco
preocupado com a sociabilidade ou com criação de redes de solidariedade, mas
com um estímulo ao “cada um por si”. Esse tipo de discurso tem tido muita
repercussão e adesão, é inegável, ele fez 1,5 milhão de votos. O que Guilherme Boulos tentou
fazer foi um arremedo disso. Como que tentar dar uma resposta a essa demanda,
que é real. Não é uma questão inventada, as pessoas estão de fato se
interessando por isso e estão buscando essas alternativas e como se responde a
isso? Não creio que a esquerda teve condições de dar essa resposta e também não
acho que vai ter, é algo que vai contra os princípios básicos do que é uma
sociedade fundada nos valores de esquerda. O que o Boulos fez
foi o que era possível, ao mesmo tempo em que não consegue disfarçar muito o
caráter eleitoreiro.
·
Como avalia o resultado das eleições municipais de
São Paulo?
Henrique
Costa – O resultado em si não foi grande surpresa,
pois o Ricardo Nunes era o favorito, é o atual prefeito e tem a máquina pública ao seu
favor. Além disso, criou um arco amplo de alianças, que o permitiu ter muito
tempo de TV. Era um resultado esperado, o próprio Guilherme Boulos vinha
de uma rejeição alta desde a eleição passada e isso nunca se alterou. Todos
sabiam que seria muito difícil reverter essas condições. Apesar disso havia uma
expectativa alta por conta da presença do presidente Lula na
campanha dele, teve muito mais recursos financeiros, foi uma candidatura
prioritária para esses partidos. Apesar de ele não ser o favorito e ter que
lidar com essas adversidades, não deixa de ser um resultado decepcionante. A
diferença de votos entre eles foi muito grande, o Boulos praticamente
não conseguiu mais votos do que teve na última eleição, mesmo com todos esses
pontos a favor. A presença do Lula não
foi a que ele esperava, mas ele contou mais do que deveria com isso. Claro que
não podemos atribuir o resultado das eleições a influência dos padrinhos –
o Bolsonaro mesmo
não teve grande influência no processo. O Guilherme Boulos ficou muito
dividido, foi muito difícil fazer certas escolhas em relação à adequação do
discurso. Apesar de ser visto como radical para muita gente, isso não o impediu
de ter a votação que teve nas eleições passadas, onde era muito mais “azarão”.
A tentativa de moderar também não deu grande resultado.
<><> O efeito Marçal
O mais importante a pensar a respeito das eleições,
primeiro, foi o êxito do Marçal, pois por pouco não foi ao segundo turno. Ele
praticamente não tinha partido, era um candidato que era ele mesmo, um fenômeno
inédito no Brasil: um candidato com nenhuma estrutura partidária tradicional,
com nenhum tempo de TV, ter alcançado o resultado que ele teve basicamente
apoiado por sua expertise no mundo
digital, que está muito além da compreensão tradicional de
política e processo eleitoral que estamos acostumados. Ele trouxe instrumentos
novos, que não têm nada de positivo porque beiram à ilegalidade, mas ficam
naquela fronteira. Essa expertise o ajuda a driblar inclusive a legislação,
como aconteceu quando ele teve as redes sociais fechadas pela justiça,
conseguiu criar um canal novo e praticamente não teve interrompida a atividade
dele. Esse é um fenômeno mais relevante e o que mais se destaca do pós-processo
eleitoral.
<>> O lugar comum da esquerda
Quanto à esquerda, virou um lugar comum dizer que ela tem que fazer autocrítica, reflexão
etc. A esquerda fez o que era possível, o problema do Boulos está
além da figura dele e do presidente Lula. Trata-se de entender os tempos que
vivermos, as consequências das próprias políticas que o PT implementou
nas últimas décadas. Já vínhamos falando do Minha Casa, Minha Vida, ProUni, que
tiveram impacto muito grande na vida dos brasileiros, mas é um impacto não
previsto. Um impacto que talvez não tenha sido mais favorável ao lulismo. Hoje
o Brasil não
tem crédito para criar novos programas – o Lula cobra muito isso, de o
governo trazer resultados e mostrar novas ideias, mas não tem. Talvez a
resposta seja outra; já é mais complicado porque entra nos próprios fundamentos
da esquerda histórica.
Fonte: IHU
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