sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Em defesa da democracia, Justiça foi protagonista em 2024

No centro das discussões mais importantes da política brasileira, o Poder Judiciário teve, em mãos, questões essenciais para o funcionamento da democracia do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) se debruçou em regras de transparência e rastreabilidade das emendas parlamentares, além de avançar na investigação sobre tentativa de golpe de Estado e debater a responsabilidade das plataformas digitais no combate às notícias falsas. No Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o desafio foi o enfrentamento do uso malicioso da inteligência artificial (IA) nas eleições municipais de 2024.

Os desdobramentos das emendas seguiram até as vésperas de Natal. O ministro Flávio Dino, do STF, determinou, nesta semana, a suspensão do pagamento de R$ 4,2 bilhões do montante. O magistrado mandou a Polícia Federal (PF) abrir um inquérito para investigar o caso. Ele também ordenou que o governo só poderá executar o montante relativo ao ano de 2025 com a conclusão de todas as medidas corretivas ordenadas, como a indicação do autor e do beneficiário final dos recursos no Portal da Transparência, e a separação entre o relator do Orçamento e autor das emendas.

As emendas são indicações de gastos que deputados e senadores fazem no Orçamento do governo para obras e projetos nos estados que os elegeram. O pagamento estava suspenso desde agosto, por decisão do STF. A decisão obrigou o Executivo e Legislativo a trabalharem juntos para aprovar uma lei para dar mais transparência e rastreabilidade aos recursos.

Em dezembro, Dino autorizou, com ressalvas, a retomada do montante. A situação não gerou uma crise institucional, mas esbarrou no Judiciário, pois, na avaliação de especialistas, o texto aprovado possui lacunas sobre as divisões políticas dos recursos e, ao tirar o controle de uma parte considerável da execução do Orçamento, pode invadir a competência do governo — responsável por fazer a política pública dos repasses.

Para o professor de estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma (EUA), Fabio de Sá e Silva, a atuação da Corte mostrou que, em meio a tantas disfunções que acometem as instituições, ainda pode fazer diferença na qualificação da democracia brasileira. "Isso ficou claro quando o ministro Dino, dando sequência ao que já fizera Rosa Weber, pressionou o Congresso a conferir transparência e rastreabilidade a emendas e, mais ainda, quando vieram à tona os detalhes da tentativa de golpe de Estado — os quais, dificilmente, saberíamos sem o trabalho da PF."

O cientista político e advogado Nauê Bernardo de Azevedo vai além e afirma que há protagonismo do Supremo em todos os momentos agudos da República desde 1988. "Mas o STF não é o único órgão da Justiça brasileira, apesar de ser o órgão de cúpula. Tribunais como o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o TST (Tribunal Superior do Trabalho) também possuem imensa relevância", ressalta.

Azevedo aponta a investigação do suposto golpe como o tema mais importante do ano em termos de repercussão, mas destaca outros assuntos com grande impacto na vida dos brasileiros. "A título de exemplo: a limitação de vagas para mulheres na Polícia Militar; a escolha de regra mais benéfica para aposentadoria; o porte de maconha; a lei que proíbe vacinação compulsória ou mesmo sobre o Marco Civil da Internet (embora este não tenha sido finalizado ainda)", elenca.

Na avaliação do cientista político Elias Tavares, o protagonismo do Judiciário em 2024 reflete a capacidade do poder de agir como pilar de estabilidade em um cenário político frequentemente marcado por tensões e polarizações. "Para restaurar o equilíbrio, o Legislativo e o Executivo devem fortalecer sua capacidade de liderança, assumindo maior responsabilidade na criação de políticas públicas e demonstrando eficiência na resposta às demandas da sociedade. O desafio está em reequilibrar os papéis institucionais sem comprometer a autonomia do Judiciário", aponta.

<><> Golpe em destaque

Para 2025, a Justiça se prepara para o inquérito da Polícia Federal que indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 36 acusados por tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A denúncia está nas mãos da Procuradoria-Geral da República (PGR). Devido ao recesso de fim de ano no Supremo, que começou em 19 de dezembro e termina em 1° de fevereiro, a expectativa é a de que o julgamento da eventual denúncia ocorra somente no ano que vem.

Na investigação do golpe, agentes da PF recuperaram arquivos deletados no computador do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, com detalhes sobre o plano "Punhal Verde e Amarelo". A trama golpista previa reverter o resultado das eleições de 2022, além do planejamento de assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice-presidente Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes.

Caberá ao chefe do Ministério Público Federal (MPF), Paulo Gonet, decidir se Bolsonaro e os demais indiciados serão denunciados à Corte Suprema pelas acusações. As defesas dos investigados também deverão se manifestar nos autos do processo.

Neste ano, a PF também solicitou ao ministro Alexandre de Moraes compartilhamento de informações da investigação da chamada Abin Paralela, um esquema de espionagem ilegal montado na Agência Brasileira de Inteligência. Para a corporação, há conexão entre as ações do esquema e a tentativa de golpe de Estado no país.

Outro momento que marcou o Judiciário neste ano e que, possivelmente, há ligação com o golpe, segundo a PF, é o atentado no estacionamento da Câmara dos Deputados e do STF, em novembro. Francisco Wanderley Luiz, de 59 anos, carregava uma mochila com explosivos e, após lançar outros artefatos, se deitou no chão e acionou a bomba junto à nuca. O homem morreu na explosão.

A Polícia Federal investiga a relação direta entre o fato e os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 — que culminaram na depredação dos prédios dos Três Poderes. Natural de Santa Catarina, Francisco tinha alugado uma casa há 3 meses na região administrativa de Ceilândia, a 30 quilômetros do local das explosões.

Para o cientista político Elias Tavares, a Justiça demonstrou força em momentos críticos. "A tentativa de golpe foi um divisor de águas para o Judiciário. Ele mostrou que a democracia brasileira não se curva diante de ameaças, enviando uma mensagem clara de que atos antidemocráticos não passarão impunes", diz. "O Judiciário mostrou que está disposto a enfrentar as big techs, mas isso é só o começo. O verdadeiro desafio será criar uma regulação que seja eficaz, mas que também respeite direitos fundamentais", completa.

Fabio de Sá e Silva reforça a importância do avanço das investigações. "Nada vai superar a conclusão dos inquéritos (das fake news, atos antidemocráticos, milícias digitais, joias, cartão de vacinas e golpe de estado) e o julgamento dos envolvidos, entre os quais devem aparecer figurões como Bolsonaro e generais. Isso não 'recivilizará o Brasil', como aspira o presidente do Supremo, ministro Luís Roberto Barroso, mas se acertarem mais que errarem na condução desses processos, o saldo final será favorável aos magistrados e ao país."

<><> Eleições

O ano na Justiça eleitoral, por sua vez, foi marcado pela posse da ministra Cármen Lúcia como presidente do TSE. Ao assumir o lugar do ministro Alexandre de Moraes, o desafio se concentrou em tocar projetos de enfrentamento à desinformação nas eleições municipais deste ano, além de julgamentos importantes como, por exemplo, os que envolvem o ex-chefe do Executivo.

No pleito deste ano, a Justiça Eleitoral saiu do radar de ataques de grupos extremistas que, no pleito anterior, tentaram descredibilizar as urnas brasileiras. Outro temor do Judiciário também não se concretizou: o uso da inteligência artificial (IA) para disseminação de notícias falsas.

Uma das razões para a ausência de ataque à Corte se deve ao fato de que a operacionalização e organização das eleições municipais ficam a cargo dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) nos estados. Nesse caso, o papel do TSE é prestar apoio logístico e institucional, além de concentrar a totalização dos votos.

Por outro lado, o tribunal enfrentou a onda de violência no pleito deste ano. Foram 76 assassinatos em 2024, segundo levantamento do Grupo de Investigação Eleitoral da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Giel/Unirio). O número é mais que o triplo do mesmo período de 2020, quando foram contabilizados 168 casos de violência política. Em 2022, foram 174 casos. A situação fez com que a ministra Cármen Lúcia solicitasse aos Tribunais Regionais Eleitorais, o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Federal prioridade na solução de casos.

<><> Para o ano que vem

Além da conclusão do inquérito do golpe, o Supremo deve retomar, no ano que vem, o julgamento que discute a responsabilidade das redes sociais por conteúdos publicados por seus usuários. No total, são três ações que discutem o Marco Civil da Internet, lei que regula a atuação das plataformas no Brasil.

O debate gira em torno da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil, que exige uma ordem judicial prévia para excluir conteúdo e responsabilizar as empresas pelos danos causados pelas publicações. Os processos em discussão estão sob relatoria dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux.

"O tribunal enfrenta uma questão complexa, frente à inércia do Legislativo em regular plataformas para coibir violações de direitos. Alguns processos relativos à reforma tributária e corte de gastos podem igualmente movimentar a pauta", ressalta Fabio de Sá.

No balanço de fim de ano, Luís Roberto Barroso anunciou que, nas metas para o Judiciário em 2025, está o julgamento de processos mais antigos dos acervos. O magistrado também apresentou um resumo das atividades desenvolvidas pela Corte.

Ele citou temas, ações e projetos desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como a homologação do Plano Pena Justa, programa voltado ao aprimoramento do sistema prisional; e o fortalecimento do Pacto Nacional pela Linguagem Simples, que busca dar maior transparência aos textos jurídicos.

O presidente do STF destacou ainda as ações que vêm sendo feitas para reduzir a judicialização no país e mencionou a extinção de mais de 7 milhões de processos de execuções fiscais, além da diminuição de 14% na taxa de congestionamento de execuções ativas (de 83% para 69%).

 

Fonte: Correio Braziliense

 

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