Clima: à espera da rebeldia necessária
O que segue é uma versão abreviada da conclusão de um
livro sobre o agronegócio, esse inimigo público número 1 da sociedade
brasileira, que pretendo publicar em 2025. À medida que se aproxima do fim de
seu primeiro quinquênio, o presente decênio inicia as sociedades contemporâneas
nas experiências traumáticas de um colapso socioambiental. Um colapso se
desenha quando os impactos causados por desastres climáticos em série, perdas
agrícolas, poluição generalizada, pandemias, desigualdades e violência golpeiam
tão frequentemente as sociedades, que estas se tornam progressivamente
incapazes de assegurar um mínimo de segurança física, alimentar, hídrica e
sanitária às suas populações. Colapso não é um evento com data marcada para
acontecer, é o processo em curso. E dada a aceleração desse processo,
pode-se predizer com segurança uma piora ainda maior nas condições de vida dos
humanos e de inúmeras outras espécies nos seis anos que nos separam de 2030. Os
tratados firmados em 1992 no Rio de Janeiro contra a desestabilização do clima,
a perda da biodiversidade e a desertificação, assim como os 17 Objetivos do
Desenvolvimento Sustentável, definidos em 2015, chegaram a embalar os sonhos de
muitos. Hoje sua credibilidade é zero. O medo do futuro toma de assalto as
sociedades e esse sentimento tem sido bem explorado nas eleições dos últimos
dez anos pelos que, nos mais diversos países, negam as evidências científicas,
agitam bodes expiatórios e prometem um retorno salvífico ao passado.
Ocorre que é impossível voltar ao passado e, de
qualquer modo, também nele não faltavam advertências aos governantes e governados
sobre o que o futuro lhes reservava, mantida a mesma trajetória. Desde os anos
1960, multiplicam-se os alertas sobre as consequências terríveis que os
agrotóxicos e a destruição das florestas teriam para a vida no planeta. E desde
meados dos anos 1970 forma-se o consenso cientifico segundo o qual o
aquecimento registrado desde os anos 1930 não podia mais ser imputado apenas à
variabilidade natural do sistema climático. Trabalhos e depoimentos
fundamentais entre 1975 e 1988, ano da criação do IPCC, demonstravam esse
consenso e projetavam um aquecimento brutal para o século XXI. Eis o texto do
Primeiro Relatório de Avaliação do IPCC, publicado em 1990:
“Baseado nos resultados dos modelos atuais,
predizemos, no Cenário A do IPCC (Business-as-Usual) de emissões de
gases de efeito estufa, uma taxa de aumento da temperatura média global durante
o próximo século de cerca de 0,3 °C por década (com uma faixa de incerteza de
0,2 °C a 0,5 °C por década). (…) Isso resultará em um provável aumento na
temperatura média global de cerca de 1°C acima do valor atual até 2025 e 3oC
antes do final do próximo século”.
O “Cenário A” (continuidade de emissões crescentes de
gases de efeito estufa – GEE) confirmou-se e a projeção do IPCC para esse
cenário estava obviamente correta. Gráficos
mostram que nos três decênios anteriores a 1990 (1961-1990), a taxa de
aquecimento tinha sido de 0,14 oC por década.
Entre 1995, data do segundo Relatório do IPCC, e 2023,
a velocidade do aquecimento médio global aumentou mais de 50%, evoluindo à taxa
de 0,22 oC por década.
Desde então, ao longo do segundo e terceiro decênios do
século, todos os parâmetros quantificados pela ciência confirmam a aceleração
do aquecimento prevista pelo IPCC. A Figura 3 mostra que o aquecimento médio
global está ocorrendo nos últimos 13 anos à taxa vertiginosa de 0,33 oC
por década.
Isso significa que, mantida essa taxa, a temperatura
média do planeta aumentará 1oC a cada três decênios!! É verdade que
são necessárias observações de ao menos três decênios para se poder afirmar com
certeza a emergência de uma nova tendência no comportamento do clima. Mas nada
permite esperar doravante uma desaceleração do aquecimento, haja vista:
(a) o aumento da queima de combustíveis fósseis;
(b) o aumento dos incêndios florestais, do desmatamento
e da degradação dos solos;
(c) a liberação de carbono pelo derretimento do
permafrost e, portanto,
(d) um crescente desequilíbrio energético do planeta,
hoje já colossal (>1 Watt por m2).
A percepção de que as sociedades humanas estão
confrontadas a um processo de colapso começou a se generalizar no segundo
decênio do século. Em 2012, Denis Meadows, coautor de “Limites do Crescimento”
(1972), declarava à imprensa: “Vejo o colapso já acontecendo”. E em 2013,
um documento intitulado “Consenso Científico sobre a Manutenção dos Sistemas
que Sustentam a Vida Humana no Século XXI”, assinado por 522 cientistas,
afirmava.
“A Terra está rapidamente se aproximando de
um ponto de inflexão. Os impactos humanos estão causando níveis alarmantes de danos
ao nosso planeta. A evidência de que os humanos estão degradando os sistemas
ecológicos de suporte da vida é esmagadora. A qualidade de vida humana sofrerá
uma substancial degradação até 2050 se continuarmos na atual trajetória”.
Em 2024, por iniciativa de William Ripple, um grupo de
renomados cientistas reafirma:
“Estamos à beira de um desastre climático
irreversível. Esta é uma emergência global, sem sombra de dúvidas. Grande parte
da estrutura da vida na Terra está em perigo. Estamos entrando em uma nova fase
crítica e imprevisível da crise climática. Durante muitos anos, cientistas,
incluindo um grupo de mais de 15.000, soaram o alarme sobre os perigos
iminentes das mudanças climáticas causadas pelo aumento das emissões de gases
de efeito estufa e pelas mudanças nos ecossistemas”.
O ano de 2023 foi o mais quente dos últimos 120 mil
anos e 2024 superou o aquecimento constatado em 2023. Vivemos em 2024 o
primeiro dos últimos 100 mil anos em que a temperatura média superficial do
planeta foi 1,5 oC mais quente do que a do período
pré-industrial (1850-1900). A menos de mudanças sociais radicais, a trajetória
do século XXI prevista pelo IPCC em 1990 está agora traçada. A taxa de
aquecimento planetário desde 1995 é de no mínimo 0,22 oC
por década, implicando um aquecimento de 2oC até 2050. É impossível
dizer o grau de dano que esse aquecimento causará à vida do planeta porque ele
nunca ocorreu no Quaternário (os últimos 2,58 milhões de anos). Duas certezas,
contudo, se impõem:
(1) um aquecimento de 2oC é incompatível com
sociedades organizadas e
(2) esse aquecimento é apenas uma etapa em direção a
aquecimentos ainda mais catastróficos na segunda metade do século, mantida a
inércia atual das sociedades.
Muitos outros colapsos socioambientais já aconteceram no
passado. Mas este cujo início estamos presenciando e sofrendo é absolutamente
singular em ao menos três sentidos. Em primeiro lugar, ele é um colapso
multifatorial, envolvendo ao menos onze fatores agindo em sinergia:
(1) desestabilização do sistema climático, com a ação
crescente de alças de retroalimentação do aquecimento;
(2) degelo terrestre, com elevação do nível do mar a
taxas recentes próximas de 5 mm por ano, provocando destruição da
infraestrutura urbana, salinização dos deltas e impactos imensos nos
ecossistemas costeiros;
(3) aceleração da sexta extinção em massa de espécies:
(a) cerca de 40% das espécies avaliadas de plantas e
fungos estão em risco de extinção, sendo 46% de espécies de plantas com flores.
Além disso, “77% das espécies de plantas não descritas provavelmente estão
ameaçadas de extinção, e quanto mais recentemente uma espécie foi descrita,
maior a probabilidade de que esteja ameaçada”;
b) “mais de 500.000 espécies [terrestres], não têm
habitat suficiente para a sobrevivência a longo prazo e estão condenadas à
extinção, muitas delas em poucas décadas, a menos que seus habitats sejam
restaurados”.
(4) desequilíbrios imensos nos ciclos hidrológicos, com
secas, incêndios, chuvas torrenciais, inundações, tempestades tropicais e
ciclones tropicais e subtropicais cada vez mais destrutivos;
(5) 15 milhões de km2 dos solos
planetários já degradados, com expansão da degradação (em direção à
desertificação) à taxa de 1 milhão de km2 por ano;
(6) intoxicação sistêmica dos organismos pela poluição
químico-industrial, sobretudo pelos agrotóxicos e, em geral, pelo sistema
“alimentar” globalizado;
(7) uma maior capacidade das corporações (estatais e
privadas) de moldar os Estados nacionais à sua imagem e semelhança, redundando
em bloqueio da governança global;
(8) um aumento sem precedentes das desigualdades com
correlativa regressão das democracias;
(9) proliferação de guerras e conflitos armados dentro
e fora das fronteiras nacionais, em grande parte em decorrência dos oito
fatores acima evocados;
(10) um aumento calamitoso de migrações forçadas, intra
e intercontinentais, em decorrência dos nove fatores acima elencados,
intensificando mais conflitos e mais xenofobia, e, enfim,
(11) a emergência da tecnosfera dos algoritmos
pelas Big Techs, terrivelmente vorazes de energia, com potencial
para ameaçar a capacidade humana de se autogovernar.
Em segundo lugar, o colapso atual se distingue dos
anteriores por sua escala planetária, pois ele está acontecendo simultaneamente
em praticamente todas as latitudes do planeta. O colapso atual não é nem local,
nem seletivo. Ele está golpeando mais imediata e duramente os países pobres e
os sempre mais numerosos pobres dos países ricos, mas ninguém está a salvo.
Absolutamente ninguém. Há, enfim, um terceiro fator igualmente singular do
colapso socioambiental em curso: as sociedades hegemônicas contemporâneas são
as únicas em todo o arco da história humana que há décadas preveem seu próprio
colapso, possuem ciência para conhecer suas causas, têm tecnologia suficiente
para evitá-lo, detêm memória e reflexão histórica para aprender com os erros
passados e mudar de trajetória, mas, ao menos até agora, preferem aceitá-lo
passivamente como se seu destino já estivesse escrito.
Fica, assim, a pergunta inevitável: é ainda possível
reverter esse quadro? É possível a paz entre os homens e com a natureza? Outro
mundo é ainda possível? Muitos de nós, criaturas tardias e resignadas do
capitalismo globalizado, parecem ceder ao desespero ou ao culto do dinheiro e
do individualismo. Mas os rebeldes, os que, não obstante tudo, reafirmam a
visão e a possibilidade de outro mundo, não deram ainda sua última palavra. Já
em 1968, René Dubos (1901-1982) escreveu em seu belo livro, Um animal
tão humano (So human an animal):
“Não obstante as repetidas advertências
sobre a paralisia no front intelectual e ético, não obstante a evidente
decadência e deterioração dos valores humanos, não obstante a difusa devastação
da beleza e dos recursos naturais, enquanto entre nós houver rebeldes, teremos
razão de esperar que nossa sociedade possa ser salva”.
Ressoava aqui a vitalidade desse ano admirável que foi
1968 e é claro que, hoje, as forças vivas da sociedade apenas resistem à
ofensiva do negacionismo, do fascismo e do militarismo. Mas quando alguém como
Mark Rutte, secretário-geral da OTAN, proclama que “é hora de mudar para uma
mentalidade de guerra” (It is time to shift to a wartime mindset), impõe-se
mais que nunca, a todos nós, denunciar a demência dos que veem a guerra como um
caminho para a paz e afirmar a rebeldia civil contra essa matriz civilizacional
belicista, genocida, ecocida e suicida. Superar essa matriz supõe recusar a
arrogância e a estupidez dos que negam a agonia de nossa biosfera. Supõe também
reconhecer os limites de nossa ciência e aprender com o saber e a resiliência
dos “periféricos” urbanos, dos indígenas, quilombolas e dos trabalhadores de
uma agricultura local e saudável. Cabe-nos, em suma, participar de uma grande
aliança com os que recusam o abismo, para derrotar na arena política o
agronegócio brasileiro e global. Como reafirma a Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (APIB), na reunião do G20 em novembro de 2024: “A Resposta
Somos Nós”.
Sim, os que não perderam a conexão com a Terra são a
resposta à indagação de Rachel Carson, feita há mais de 60 anos: “A questão é
se alguma civilização pode travar uma guerra implacável contra a vida sem se
destruir e sem perder o direito de se chamar civilizada”.
Fonte: Por Luiz
Marques, em Outras Palavras
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