sábado, 21 de dezembro de 2024

Beluzzo: “Os rentistas estão promovendo a morte da economia no mundo inteiro, em especial no caso brasileiro”

As relações entre Estado e mercado estão marcadas por uma “disputa de poder”. É a partir dessa rivalidade de forças que o economista Luiz Gonzaga Belluzzo interpreta os últimos acontecimentos da conjuntura brasileira: a elevação da taxa Selic neste mês, a proposta de ajuste fiscal do governo e a alta recorde do dólar. “No fundo, trata-se de uma disputa de poder: uma hierarquia de instâncias do movimento de capitais, dos mercados futuros e a política econômica do governo. O ministro Haddad tenta apresentar avanços no processo de ajuste fiscal, aumentando impostos, prometendo cortes aqui e ali, mas isso não é suficiente porque já ultrapassou qualquer relação com a proposta do governo de convencer o mercado de que as coisas estão sob controle”, resume, na entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Na avaliação dele, “o governo está, sem dúvida, refém” do mercado financeiro. “O governo está cercado e está mostrando que não há nenhum efeito dizer [ao mercado] que vai reduzir o déficit primário progressivamente até chegarmos ao déficit zero”, sublinha. O efeito manada do mercado contra o governo, sugere, indica que “se trata de uma relação de poder que está ancorada nas concepções e visões que os agentes do mercado têm em relação ao governo Lula”.

Neste ambiente de disputa, as projeções socioeconômicas para o próximo ano não são animadoras. “Não vai ser uma caminhada tranquila, não. Na forma como estão articuladas as relações de poder, a minha impressão é que será difícil o governo ultrapassar as resistência e convicções que estão incrustadas nos mercados. Não precisa ser ‘adivinhão’, como se dizia no meu tempo, para saber que isso não vai terminar agora. Essa visão está incrustada na sociedade brasileira e na relação entre as camadas mais abastadas”, destaca.

Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – ILPES/CEPAL e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores das Faculdades de Campinas – Facamp, onde leciona. É autor de Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (Facamp/Contracorrente, 2017), Capital e suas metamorfoses (Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Facamp, 2009), Temporalidade da riqueza: teoria da dinâmica e financeirização do capitalismo (Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outros livros.

<><> Confira a entrevista.

·        Ano passado, quando o novo marco fiscal foi sancionado pelo governo Lula, o senhor disse em entrevista ao IHU que, apesar das críticas, o governo Lula estava “tentando contornar a situação de maneira prudente” para apaziguar o mercado financeiro porque se o mercado se convence de “que está tudo errado, começam a subir a taxa de juros”. Mesmo anunciando um ajuste fiscal criticado por setores da área social, a taxa de juros foi elevada a 12,25% neste mês e a expectativa é de que suba para 14,25% até março do próximo ano. O governo não conseguiu apaziguar o mercado com a proposta de ajuste?

Luiz Gonzaga Belluzzo – As relações entre Estado e mercado sempre estiveram presentes na história da economia monetária financeira capitalista e agora estão adquirindo, como já adquiriu em outros momentos, uma dimensão de diferença de poder e de força na construção de um convencimento social. Estou insistindo neste ponto porque estava relendo o livro de György Lukács, Para uma ontologia do ser social. O que estou dizendo é que esses movimentos estão presentes na sociedade e ela é constituída por seres humanos que têm aspirações, convicções, desejos e interesses. Ocultar isso sob a égide de uma questão técnica não é verdade. A economia trata das relações entre homens, entre classes sociais, entre segmentos da sociedade e isso deve prevalecer sobre a observação de que a economia trata de uma coisa aqui, outra ali, uma intervenção no câmbio etc.

Queria chamar atenção para uma questão: existe, neste momento, uma disfunção hierárquica na visão convencional, que está levando à avassaladora opinião destilada pela mídia, de risco fiscal. O que é preciso é estabelecer as hierarquias. Na economia mundial como um todo, hoje o que prevalece são as movimentações dos fluxos de capitais e dos mercados futuros, que são uma espécie de precificação do câmbio dentro da B3 [Bolsa de Valores do Brasil]. A B3 tem um volume de operações, comprados e vendidos em dólar, no mercado futuro, e isso tudo é o que controla a flutuação do câmbio, articulada com a deterioração das condições internas.

Vamos observar o desempenho da economia brasileira em termos de emprego, renda etc.: ele é muito satisfatório, melhor do que foi no período do governo Bolsonaro. No entanto, esse desempenho é entendido como uma pressão, como uma espécie de crescimento que pode levar a um aumento da inflação. A inflação está oscilando entre 4,5 e 4,80. Não é nenhum disparate, nenhum absurdo, mas isso está conduzindo o comportamento e as ações do mercado financeiro no exercício do seu poder para provocar o distúrbio da taxa de câmbio e a subida dos juros. Não sei se isso vai se extinguir em algum momento. Estou observando o cenário com muita preocupação.

Mas, no fundo, trata-se de uma disputa de poder: uma hierarquia de instâncias do movimento de capitais, dos mercados futuros e a política econômica do governo. O ministro Haddad tenta apresentar avanços no processo de ajuste fiscal, aumentando impostos, prometendo cortes aqui e ali, mas isso não é suficiente porque já ultrapassou qualquer relação com a proposta do governo de convencer o mercado de que as coisas estão sob controle.

·        As justificativas do Banco Central para aumentar os juros não têm sentido? Quais os efeitos desse comportamento para a sociedade e a economia brasileira?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O que ocorre é que se toma o risco fiscal como a razão fundamental dessas flutuações do câmbio, mas isso não é verdade. Não há nenhuma razão para isso, considerando o resultado fiscal que estamos obtendo hoje. Os EUA, por exemplo, têm um déficit primário muito elevado. A França está se debatendo com essa questão, assim como a Alemanha também.

O que acontece é um fenômeno que supera a determinação interna da crise fiscal. É preciso olhar para o movimento dessas instâncias de formação de expectativas. Mas olha-se somente o risco fiscal. É quase uma forma de usar um pretexto para especular – o que é constitutivo do capitalismo – e apostar na possibilidade de obter ganhos ou evitar perdas nas suas riquezas. É isso que os mercados financeiros fazem o tempo inteiro. Esse aspecto é predominante. Dentro dessa predominância, está a instância superior, que é a constituição do sistema monetário financeiro internacional, com todas essas práticas, como essa dos mercados futuros. As pessoas ficam dando voltas em torno dessa questão, mas não vejo como o governo ou o Banco Central podem enfrentar isso de maneira convencional. Talvez isso leve a algumas consequências que nem gostaria de mencionar.

O que estou observando é que estão ocorrendo manifestações de grande agressividade contra esse comportamento do mercado financeiro. Uns dizem que é crime, crime contra a pátria e isso pode se transformar em uma bola de neve. Não sabemos exatamente quais podem ser as consequências.

Talvez seja interessante os rapazes do mercado lerem o que aconteceu na Alemanha entre a década de 1920 e a ascensão de Hitler, e como Hjalmar Schacht cuidou dessas questões. Na culminância das medidas tomadas, ele tornou crime contra o Estado alemão o envio de divisas de dólares para fora da Alemanha. Crime. Isso foi feito no estado nazista. Sobre isso, Keynes disse o seguinte: descontando o horror que foi esse regime, Schacht estava certo porque estava segurando um processo que iria, outra vez, causar muitos danos à Alemanha, que tinha saído da hiperinflação em 1923, 1924. Schacht também adotou o Plano Dawes, que era financiamento do banco Morgan para cobrir as necessidades e obrigações impostas pelas reparações e impedir a saída e fuga da moeda alemã para outras moedas, como a libra.

O que vejo neste momento é uma coisa muito parecida, com a agressividade que está surgindo de muitos lados, inclusive dos movimentos sociais. Isso pode deflagrar uma ação um pouco mais dolorosa em relação aos mercados. Francamente, não é uma coisa que desejo porque, às vezes, as consequências não são muito agradáveis.

·         Do ponto de vista político, há outros arranjos possíveis ou o governo está refém do mercado e, ao mesmo tempo, não consegue apaziguá-lo?

Luiz Gonzaga Belluzzo – O governo está, sem dúvida, refém. Claramente. Essa percepção é generalizada: está refém. Agora, o encaminhamento da solução que estou observando é que como o mercado é movido por seres humanos que têm convicções, diria que há um enorme efeito manada. Ou seja, uma concatenação de opiniões determinada pela existência de um cartel que tem mais poder – alguns bancos, no Brasil, claramente têm mais poder. As declarações dos bancos internacionais falando do Brasil – à exceção de Mohamed A. El-Erian, que escreveu um artigo dizendo que é um exagero o que está acontecendo – forma essa convicção e ela vai se manifestando. Então o governo está cercado e está mostrando que não há nenhum efeito dizer [ao mercado] que vai reduzir o déficit primário progressivamente até chegarmos ao déficit zero.

Quem já assistiu vários episódios de ajuste fiscal, como aqueles de 2015 e 2016, sabe que isso não vai ser feito de maneira indolor para a sociedade, para os trabalhadores, para o desempenho das empresas etc. O que quero dizer é que estamos vivendo um momento muito preocupante e crucial, que é muito difícil. Como trata-se de uma relação de poder, uma disputa de forças, fico na dúvida se isso poderá ser resolvido de uma maneira pacífica.

·        Que efeitos esse cenário poderá gerar nas próximas eleições presidenciais?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Este é um ponto importantíssimo. Em última instância, estamos falando de relações de poder. Uma pesquisa recente, que tomou a opinião de muitos operadores do mercado, mostrou que 90% deles manifestaram inconformidade com o governo Lula. Essa dimensão está por detrás das relações de poder. O mercado não admite e não pode admitir um governo como o de Lula, que declara sua intenção de melhorar a vida dos menos favorecidos. Isso é uma tradição da chamada “elite” brasileira. Os interesses da “elite” estão muito arraigados e voltam sempre, como vimos na sucessão de episódios no tempo de Getúlio, de Juscelino. O que quero dizer é que é essencial entendermos que se trata de uma relação de poder que está ancorada nas concepções e visões que os agentes do mercado têm em relação ao governo Lula. Isso é fundamental.

Há uma conexão entre a extrema-direita e o extremo liberalismo econômico, o ataque ao liberalismo político e a defesa do liberalismo econômico. Paulo Guedes tentou fazer isto: privatizações à vontade, abertura comercial, possibilidade de abrir contas em dólar no país. Não tenho nenhuma dúvida de que o mercado apoia o bolsonarismo. Aliás, o bolsonarismo constitui a opinião do mercado. O bolsonarismo não é causado por Bolsonaro; Bolsonaro é que é produzido pelo bolsonarismo que está na sociedade.

·        Em vez de cortes nos gastos primários, alguns auditores fiscais e economistas têm defendido que o ajuste no gasto público poderia ser feito a partir de ajustes na área tributária e nos juros da dívida pública. Essas propostas são viáveis e operacionais? Seriam uma alternativa ao ajuste fiscal?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Isso é discutível. Em primeiro lugar, a receita fiscal, sim, depende da estrutura tributária que é imposta à economia: como se definem os impostos de renda, impostos sobre mercadorias, as tarifas alfandegárias etc. Mas isso é uma espécie de receptáculo porque o dinheiro não está lá. O dinheiro depende da circulação monetária financeira. Essa é uma questão ontológica que tem a ver com a definição de uma economia capitalista de mercado, cujo funcionamento depende da circulação monetária.

O trabalhador recebe o salário da empresa, que tem uma renda derivada do gasto de outra pessoa e assim sucessivamente. As empresas pagam salários aos trabalhadores porque imaginam vender as mercadorias delas. Os trabalhadores, por sua vez, recebem o salário e gastam. Só existe este circuito da renda, que acaba redundando na coleta de impostos. É o circuito da renda que gera isso não só através da cobrança sobre mercadorias, mas também sobre o imposto de renda. Ou seja, ninguém paga imposto de renda se não tem renda. Em geral, neste ponto, o imposto de renda é muito desigual.

Precisamos olhar a determinação. Como ela é? É da estrutura fiscal para a circulação da renda ou da circulação da renda para a estrutura fiscal? Estou de acordo que é preciso cuidar da dívida pública, mas a dívida pública é riqueza privada. Conversando com vários amigos do mercado, eles dizem que 70% das carteiras das instituições financeiras, sobretudo aquelas que não são propriamente bancárias, que são fintech e outras instituições, são compostas de LFTs (Letra Financeira do Tesouro), porque este é o título que tem maior liquidez e sobre o qual se tem maior facilidade de negociar, comprar e vender. Aliás, o Banco Central não faz o que deveria fazer, que é operar na curva de compra e venda para estabilizar os juros mais longos que afetam o crédito. Isso é feito em quase todos os países, mas aqui o Banco Central está bloqueado e não pode fazer essa operação de regulação da liquidez dos mercados.

Sempre se mexe nas relações mais aparentes e superficiais da vida econômica, mas temos que olhar para o fundamento desses movimentos. Tenho respeito pela Receita Federal, que tem essa visão, mas diria que não é a que corresponde à constituição desses movimentos. Como será possível reduzir os juros sendo que o consenso é que tem que aumentar os juros para segurar a inflação? Essas soluções binárias não ajudam a compreensão. Do jeito que as coisas estão, a solução é muito difícil.

·         O ajuste fiscal é criticado em três pontos principais: os critérios para o reajuste do salário mínimo, as condições de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a redução do abono salarial. Considerando os gastos primários, este foi o melhor arranjo? Como avalia esses pontos do ajuste?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não vejo nenhuma inconveniência em fazer uma investigação e apuração do BPC, mas isso é lateral. Em relação às outras duas propostas, estamos percebendo que o ajuste proposto é sempre para reduzir a capacidade de atendimento dos elementos que formam a renda dos mais pobres. Para mim, isso é muito claro e revela outra dimensão dessa “super força” da qual estava ministrando. É possível fazer uma investigação para saber das irregularidades que acontecem no Bolsa Família, por exemplo, mas isso não é o fundamental.

Nos anos 1930, Keynes escreveu um livro chamado Teoria Geral do emprego, do juro e da moeda. Ele falou de algumas coisas que ainda são atuais. A primeira delas é uma estrutura tributária que seja redistributiva para preservar a capacidade de gasto das pessoas que estão empregadas. A segunda era uma medida agressiva: diminuir o poder do rentista – a eutanásia do rentista. Sobre a política fiscal, ele pedia a separação entre duas instâncias orçamentárias: os gastos correntes e os de investimento. Hoje, os gastos de investimentos são apresentados como os gastos discricionários. O que ele quer dizer é que se deve, sim, buscar o equilíbrio nos gastos correntes, mas usar a capacidade de regular os gastos de investimento para impedir que a economia ou fique superaquecida ou tenha um desgaste deflacionário. Keynes tinha toda razão; falou das três dimensões importantes: quem paga imposto e recebe, quem se beneficia de uma situação como esta que estamos observando de superioridade da opinião rentista, e o Estado, que teria que se mover nessa direção que estou apontando.

Ele, analisando, a partir da concepção dele de como o capitalismo funciona, dizia que era preciso tratar dessas três questões. Só que o que está acontecendo, em vez da eutanásia do rentista, é que os rentistas estão promovendo a morte da economia no mundo inteiro, em especial no caso brasileiro. E o rentismo não é só juros; ele tem outras dimensões importantes, inclusive a fuga de moeda estrangeira. Tudo isso faz parte da acumulação de riqueza puramente monetária, sem movimentar a economia.

·         Como avalia o anúncio da conclusão das negociações do Acordo de Parceria entre o Mercosul e a União Europeia, que tem recebido muitas críticas? Para o Brasil, ele significará o reforço da política agroexportadora ou possibilitará novas alternativas de desenvolvimento?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Também tenho várias restrições ao acordo, ademais há muitos países europeus que não vão assiná-lo. Ocorreu uma reunião com a [Ursula Gertrud] von der Leyen, porém, Itália e França manifestaram restrições ao acordo. Sobretudo porque o veem como uma ameaça à agricultura desses países. Dificilmente esse acordo será encaminhado da maneira que foi formulado inicialmente e será discutido em um momento em que haverá recrudescimento do protecionismo, particularmente nos EUA, mas também na Europa. A própria von der Leyen, que celebrou o acordo, disse que não poderia admitir o ingresso dos carros elétricos chineses na Europa a um preço tão baixo. Então, talvez o acordo não avance por causa das circunstâncias globais.

O acordo com a China, por outro lado, pode ter coisas interessantes porque os chineses estão em uma fase de expansão muito peculiar, com um avanço na África impressionante, com construção de redes ferroviárias etc. Não posso fazer nenhuma afirmação a priori sobre o acordo com o Brasil, porque precisa desdobrar os pontos, mas, provavelmente, os chineses vão caminhar dando um pontapé inicial com uma iniciativa monetária financeira.

·         Quais são as perspectivas socioeconômicas para o país no próximo ano?

Luiz Gonzaga Belluzzo – Não vai ser uma caminhada tranquila, não. Na forma como estão articuladas as relações de poder, a minha impressão é que será difícil o governo ultrapassar as resistência e convicções que estão incrustadas nos mercados. Não precisa ser “adivinhão”, como se dizia no meu tempo, para saber que isso não vai terminar agora. Essa visão está incrustada na sociedade brasileira e na relação entre as camadas mais abastadas. Também tem uma rejeição muito grande ao governo Lula por parte dos mercados, como mencionei. Uma avaliação do futuro está muito sujeita a trepidações.

 

Fonte: IHU

 

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