Alas conservadoras
da Igreja ainda resistem a abençoar LGBTs
"Amor à
primeira vista": é assim que Pamella Barbosa, de 38 anos, descreve o dia
em que conheceu Érika Guerreiro, de 37. Foi em um ensaio de música para
uma missa de domingo. Em junho de 2021,
Érika começou a tocar violão no ministério em que Pamella canta até hoje.
"Em razão dos
traumas que sofri e dos dilemas que vivia, passamos a nos odiar. Era uma forma
de repelir o sentimento que brotava", recorda Pamella, uma goiana de
Ceres. "Mesmo quando nos distanciamos, tive certeza de que foi Deus quem
nos aproximou. Sabia que, um dia, Ele mostraria um lugar onde pudéssemos viver
nossa fé sendo quem somos", completa Érika, uma paraense de Belém.
Quase dois anos
depois, em um momento de crise, Érika se aproximou de Pamella e deu início a
uma amizade. No entanto, ao notar que essa convivência despertava outros
sentimentos, Pamella se afastou de Érika. "Por acreditar que esse
relacionamento era pecado e me afastaria de tudo que eu mais amava, que era
servir a Deus, expulsei Érika da minha vida", relata. "O tempo em que
passamos longe uma da outra foi um tormento. Já estávamos apaixonadas e a
distância causava sofrimento. Até que nos rendemos ao amor e começamos a
namorar em abril de 2023."
Em 23 de março,
Pamella e Érika receberam a benção aprovada
pelo Papa Francisco a casais do mesmo sexo. Há exatamente um
ano, o Vaticano passou a autorizar padres da Igreja Católica a abençoar
relacionamentos entre casais homossexuais. A autorização foi anunciada no dia
18 de dezembro de 2023, através do documento Fiducia
Supplicans (Confiança suplicante).
"Benção é uma
prece feita a Deus em favor de alguém", explica o padre Luís Corrêa Lima,
professor do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de Teologia e os LGBT+ – Perspectiva
Histórica e Desafios Contemporâneos. "Qualquer pessoa, casada ou não, pode
receber."
"No caso da
benção a casais do mesmo sexo e a casais em situação irregular [incluindo
divorciados recasados], não se trata de matrimônio, um dos sete sacramentos da
Igreja, mas de uma prece pelo bem de pessoas que vivem juntas",
acrescenta.
·
Homofobia
X decisão pastoral
A bênção de Pamella
e Érika não foi concedida pela paróquia onde elas se conheceram em 2021, mas
pela comunidade jesuíta que frequentam desde 2023. "Não chegamos a pedir a
benção ao nosso pároco. Temos convicção de que, se pedíssemos, seria
negada", afirma Pamella. "Participamos de uma comunidade muito
conservadora."
Atualmente, Pamella
e Érika frequentam a paróquia Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora das
Mercês e a comunidade dos padres jesuítas do Centro Cultural de Brasília (CCB).
Na paróquia, elas não assumem seu namoro por medo de serem impedidas de
continuar o serviço a Deus, sua maior paixão. Na comunidade, são aceitas como
casal. "Lá, podemos exercer nosso dom sem medo de punição, preconceito ou
repressão", orgulha-se Pamella.
Os padres não são
obrigados a conceder a bênção, diz o documento Fiducia Supplicans. No
entanto, casos de homofobia devem ser denunciados por não refletirem o espírito
de acolhimento cristão.
"Recomendamos
que, diante de uma recusa ou discriminação, as pessoas procurem comunidades
onde sejam respeitadas e acolhidas", orienta Luís Rabello, da Rede
Nacional de Grupos Católicos LGBT+. "Denunciar situações de homofobia
também é necessário, mas é importante distinguir um ato discriminatório de uma
decisão pastoral."
·
Preconceito
e medo
Pamella e Érika
conheceram a comunidade jesuíta do Centro Cultural de Brasília (CCB) por
intermédio do grupo Diversidade Cristã de Brasília (DCB). Foi lá, em setembro
de 2023, que descobriram que "ser homossexual não é pecado, é dom de
Deus", afirma Pamella. O DCB é um dos 23 grupos que fazem parte da Rede
Nacional de Grupos Católicos LGBT.
"Conhecemos
pessoas incríveis que nos mostraram que, para viver nossa sexualidade, não
precisamos abandonar a Deus ou a Igreja. Podemos servir como casal, sem
precisar mentir. Foi o primeiro lugar, na Igreja e na sociedade, onde nos
sentimos seguras para assumir nossa identidade de pessoas LGBT."
Nem sempre foi
assim. Pamella já sofreu preconceito dentro de um movimento da Igreja Católica
do qual participa desde os 15 anos. "Sempre escondi, e até lutei contra a
minha homossexualidade. Fui doutrinada a acreditar que era um pecado
mortal", relata. "Essa ‘teologia' me aprisionou por anos e gerou
dores e traumas profundos."
Érika, ao
contrário, sempre foi mais tranquila em relação a sua orientação sexual. Na
capelinha de Lourdes, nunca sentiu rejeição ou sofreu preconceito. "Sempre
vivi em um ambiente de acolhimento e inclusão", conta.
Em uma certa
ocasião, um coordenador desconfiou da orientação sexual de Pamella e convocou
uma reunião com os demais líderes do movimento para intimidá-la. "Talvez
tenha sido o pior momento da minha vida", afirma. "Me vi cercada por
pessoas que me julgavam e condenavam por desconfiarem que eu era homossexual. E
eu, sozinha, adolescente e imatura, não tive alternativa a não ser mentir e, a
partir daquele momento, reprimir minha sexualidade."
Na paróquia onde
Pamella e Érika se conheceram, não há Pastoral da Diversidade Sexual. No
futuro, elas pretendem criar um grupo de diversidade sexual. Isso ajudaria,
acreditam, a desmistificar a ideia de que homossexualidade é pecado, a promover
o respeito e a acolhida a pessoas LGBT e, principalmente, a combater casos de
homofobia.
"A mentalidade
de que ser homossexual é pecado faz com que muitos, especialmente jovens,
abandonem a Igreja Católica quando iniciam um relacionamento amoroso",
observa Pamella.
Curiosamente, nem a
própria Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) tem uma Pastoral da
Diversidade Sexual. Segundo o site da instituição, são, ao todo, 24 pastorais –
nenhuma delas trata do tema. No passado, houve duas pastorais da diversidade
sexual no Brasil: uma em Nova Iguaçu (RJ) e outra em Belo Horizonte (MG) – as
duas tiveram suas atividades encerradas por decisão dos respectivos bispos.
·
Diálogo
mais inclusivo
Não há estimativas
oficiais sobre o total de casais homoafetivos abençoados desde a decisão do
papa, há um ano. "A decisão do Papa abriu uma porta para um diálogo mais
inclusivo, mas também gerou reações variadas dentro da Igreja", afirma
Rabello. "Essa resistência pode ser atribuída ao caráter plural da Igreja
que reflete diferentes posturas e interpretações em relação às orientações
pastorais."
Só o padre Luís
Corrêa Lima, concedeu bênção a cinco casais homoafetivos. "Por ora, não
esperava mais", avalia. E explica o motivo: "Trata-se de algo muito
novo, que ainda não se enraizou na cultura do ambiente católico brasileiro.
Como há um histórico de forte rejeição religiosa às uniões do mesmo sexo, a
mentalidade custa a mudar. É necessário esclarecimento e difusão", afirma
o sacerdote.
A psicóloga Maria
Cristina Furtado começou a se interessar pelo tema em 1999 quando Cristiane,
sua filha mais velha, na época com 21 anos, descobriu ser lésbica e comunicou
sua descoberta à família. Hoje, Maria Cristina é doutora em Teologia
Sistemática pela PUC-Rio, publicou o livro A Igreja e as Pessoas
LGBTQIAPN+ e dirige o Centro de Estudos de Gênero, Diversidade Sexual e
Violência, no Rio de Janeiro.
"Houve
resistência por parte da ala mais conservadora da Igreja, que acredita que nada
deve ser mudado. Em compensação, conheço casais felizes por terem realizado o
sonho de serem abençoados e padres realizados por terem abençoado casais
LGBTQIA+", afirma Furtado. "A meu ver, era essa a intenção do Papa
Francisco. Acolher e abraçar a todos com carinho. Afinal, como o Santo Padre
mesmo disse: ‘A Igreja é para todos!'", destaca.
Vinte e cinco anos
depois, Cristiane tem 46 anos e vive, há oito, em união estável. "Minha
filha se afastou da Igreja e nunca mais retornou", afirma Furtado.
"Quando as duas se uniram, em 2016, eu, meu marido e os pais da minha nora
as abençoamos. Ela e minha nora são muito felizes. Onde o amor está, Deus está
presente."
¨ Igrejas católicas alemãs ministram bênção a casais gays
De acordo com
decisão da Assembleia Sinodal, A Igreja Católica da
Alemanha passou
a ministrar bênção a casais homossexuais, impulsionando a reforma do
catolicismo no país. Também passou a ser permitida bênçãos para quem casou
novamente no civil e para divorciados.
A Conferência
dos Bispos da Alemanha e o Comitê Central de Católicos Alemães
"desenvolveram e introduziram celebrações litúrgicas apropriadas em tempo
hábil" para que a medida pudesse entre em vigor.
Foi formado um
grupo de trabalho que criou "prontamente" uma apostila para
as celebrações da bênção, a fim de especificar como as celebrações da
bênção deveriam ocorrer.
Permitir cerimônias
de bênção para casais do mesmo
sexo era uma
das reivindicações centrais no processo de reforma chamado de Caminho Sinodal, que está em
andamento desde 2019, e é encarado como um grande desafio e um teste decisivo
para a capacidade de reforma da Igreja Católica na Alemanha.
O Caminho Sinodal é
um movimento católico progressista que busca, por exemplo, acabar com o
celibato para os padres e ter mulheres como diaconisas.
<><> Vaticano
e Alemanha
O movimento de
reforma foi
lançado pela Igreja na Alemanha em meio a um número recorde de católicos
deixando congregações e também devido aos casos de abuso sexual envolvendo a
instituição. Em 2021, o número de católicos caiu para abaixo de 50% da
população alemã pela primeira vez na história.
No passado, o Vaticano já argumentou
que encara os apelos do Caminho Sinodal como iniciativas que podem dividir a Igreja.
Em 2021,
o Vaticano já advertiu que a bênção de casais homossexuais não é permitida
segundo a doutrina da Igreja Católica e que esse tipo de união "não
pode ser reconhecida de maneira objetiva de acordo com os planos revelados
de Deus".
Em julho de 2022, a
Santa Sé advertiu os reformadores alemães, dizendo que eles não têm autoridade
para instruir bispos sobre questões morais ou doutrinárias.
As celebrações da
bênção já são praticadas em muitas comunidades católicas alemãs, mas
acontecem em uma zona cinzenta em termos de direito canônico e em reuniões
reservadas. Agora, os padres que dão suas bênçãos não devem mais temer
sanções. Pessoas divorciadas que se casaram novamente também devem poder ser
abençoadas.
Fonte: DW Brasil
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