A Manaus dos rios
'zumbis', onde mais da metade da população vive em favelas
"Você está
sentindo esse cheiro?", comenta, com as mãos no volante, o professor do
Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Marcos
Castro de Lima.
À direita do carro,
sob a avenida Djalma Batista, passava o igarapé do Mindu, que corta Manaus ao meio. O
odor forte que vinha do rio lembrava o da marginal Pinheiros, em São Paulo, em
dias de calor.
"Eu chamo
nossos igarapés de rios zumbis - eles estão ali, mas não têm vida."
Manaus é a maior
metrópole em área tropical do mundo, ele continua. É a capital mais a oeste do
Brasil, encravada no meio da floresta Amazônica e da maior
bacia hidrográfica do planeta. Mas de dentro não parece. Os rios urbanos são
córregos poluídos e a cidade é parcamente arborizada - é a segunda capital com
menos árvores no país, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
"Essa cidade é
cheia de contradições."
Por causa do polo
industrial da zona franca, é a quinta cidade mais rica do Brasil, atrás apenas
de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte, nessa ordem. E ao mesmo
tempo, ao lado de Belém, é a capital com maior proporção da população vivendo
em favelas - 56% de seus 2 milhões de habitantes, de acordo com os números
divulgados em novembro pelo IBGE com base no Censo 2022.
Depois de 50 anos,
o instituto voltou a usar o termo favela, que descreve áreas em que há
insegurança jurídica da posse do imóvel, ausência ou oferta incompleta ou
precária de serviços públicos, onde edificações, arruamentos e infraestruturas
são geralmente feitos pela própria comunidade e com localização em área com
restrição à ocupação.
Das 20 mais
populosas do Brasil, seis estão em na capital do Amazonas, conforme revelou o
recenseamento.
Castro, que ensina
planejamento e gestão urbana na UFAM, levou a reportagem da BBC News Brasil às
duas maiores: Cidade de Deus, com 55,8 mil moradores, e Comunidade São Lucas,
onde vivem 53,6 mil pessoas. Na aula de campo, mostrou o que significa morar em
áreas de vulnerabilidade em uma capital cortada por igarapés e cercada de
floresta tropical e por que muita gente que habita essas regiões recusa o termo
"favela".
·
No
Rio, pobreza sobre morro; em Manaus, desce o vale
O primeiro destino
foi a Cidade de Deus, uma das regiões com maior incidência de mortes violentas
da capital. A paisagem, assim como em muitas das grandes comunidades espalhadas
pelo país, é uma mistura de ruas estreitas sem calçada, casas simples de
alvenaria e todo tipo de negócio - lojas de roupas com uma dezena de manequins
para o lado de fora, motéis, academia de ginástica, coletivo de catadores,
lava-rápido, pizzaria, supermercados, vendinhas e lojas de assistência técnica.
Enquanto o carro
subia e descia pelo relevo acidentado do bairro, Castro apertava os olhos
procurando um ponto de onde se pudesse enxergar o que, para ele, é uma das
grandes particularidades de Manaus, a ocupação nos fundos de vales.
"No Rio, a
pobreza está pra cima. Aqui, está pra baixo", ele descreve, chamando
atenção para o tipo de moradia que se concentra nessas áreas mais próximas dos
rios.
"Está vendo
como as casas são muito mais precárias? Se você disser pra quem tá aqui em cima
que eles moram em uma favela eles vão dizer que não, que favela é ali
embaixo", diz o professor.
Castro concorda com
a classificação do IBGE. Ele diz que a geografia de Manaus acabou
hierarquizando a ocupação do espaço, mas que mesmo aqueles que vivem em áreas
mais altas também estão muitas vezes privados de serviços e de infraestrutura
pública.
"Olha
ali", ele diz, apontando para uma mulher empurrando um carrinho de bebê no
asfalto. "Ela tem que andar no meio da rua porque o carrinho não cabe na
calçada. Esse tipo de coisa acaba se normalizando, mas pro geógrafo isso é uma
distorção do espaço."
Não só para os
geógrafos. O escritor Milton Hatoum, um dos grandes autores da literatura
contemporânea brasileira, chamou atenção justamente pra isso em uma entrevista
para o portal G1 em 2013: "Eu passei minha infância em Manaus e tenho uma
relação afetiva muito forte com a cidade. Mas a verdade é que é uma cidade que
não é bem administrada. É um lugar que tem um alto Produto Interno Bruto - um
dos maiores do Brasil -, mas não possui calçadas." E completa: "Sinto
falta dos meus amigos e da minha família. Da cidade, só tenho saudades do Rio
Negro. A Manaus que eu gostava acabou".
Saindo do
emaranhado de ruas sentido norte, se descortina uma avenida larga e um paredão
verde. A Cidade de Deus faz fronteira com a maior reserva de floresta dentro da
cidade, a Adolpho Ducke. É lá que funciona o Museu da Amazônia, onde o
presidente americano Joe Biden posou, de helicóptero, no último dia 17 de
novembro.
Pra quem olha de
cima, é impossível não reparar no contraste entre o emaranhado de telhados e o
respiro verde do outro lado da avenida.
·
'Quando
cheguei, o igarapé tinha tartaruga e jacaré'
Dali, Castro cruza
o bairro Jorge Teixeira - apelidado localmente de "Jorge Texas" e
também marcado pelo índice elevado de homicídios - e desce em direção à
Comunidade São Lucas. O destino é a casa de uma das primeiras moradoras do
bairro, dona Maria Adelaide Costa, de 79 anos.
Antes, o professor
faz uma parada para pegar uma das netas de dona Adelaide, Milena Maria Costa,
sua ex-aluna e hoje mestranda em sociedade e cultura da Amazônia.
Ela conta que
nasceu na comunidade e até pouco tempo vivia lá com a família. Resolveu se
mudar quando a renda permitiu, porque sempre sonhou em "morar perto de uma
praça".
A conversa chega
nos números recém-divulgados pelo IBGE e em como alguns dos moradores não se
reconheceram neles.
"Minha mãe
mesmo", ressaltou. "Lembrei a ela que o esgoto passava na porta de
casa, que a gente conviveu diretamente com a ausência de política pública, mas
às vezes é difícil a gente reconhecer que ocupa esse espaço."
O carro para no fim
de uma rua sem saída. À esquerda, a casa de dona Maria Adelaide, que estava
sentada bem na entrada da sala em uma cadeira de balanço de fios coloridos de
pvc.
Ao lado de uma das
filhas, produtora de açaí, e de outras duas netas além de Milena, ela contou
como tinha ido parar ali quase 35 anos atrás.
Nasceu no coração
da floresta, em Urucu, a cerca de 650 km de Manaus, e aos 26 anos se mudou para
Coari, uma pequena cidade à beira do Solimões, distante 370 km da capital.
Viveu lá por 19 anos, criando os filhos sozinha enquanto o marido, seringueiro,
passava temporadas de seis meses longe de casa.
Em 1990, depois de
ter a saúde debilitada por uma pneumonia, foi convencida por familiares a se
mudar para Manaus. Coari não tinha hospital.
Chegando à capital,
eles sabiam por conhecidos que moravam ali próximo que a região que hoje é a
São Lucas não era ocupada - e estava perto de um igarapé. Maria Adelaide, a mãe
e um irmão ergueram cada um uma casa de madeira.
"A minha não
tinha porta nem janela", ela conta. "Eu colocava um lençol pra cobrir."
A família dormia em
redes distribuídas pelo único cômodo, de terra batida. Não havia água encanada,
nem energia. Os banhos eram na casa da irmã de dona Maria Adelaide, de onde
traziam em baldes a água que usavam pra beber e lavar louça. A luz veio de um
gato, quando um dos parentes cortou um fio da rede elétrica que passava em uma
avenida próxima e atravessou o rio para trazê-lo para próximo das casas.
O rio, que dona
Adelaide e os manauaras chamam de rip-rap, como ficaram conhecidas as
contenções à erosão colocadas pela prefeitura, ainda estava vivo nessa época.
"As crianças
brincavam no rip-rap, tinha peixe, tinha jacaré, tinha tracajá (tartaruga
bastante comum na Amazônia)."
Antes de nos
despedirmos, ela conta que com frequência essa imagem lhe volta em sonho. E
compartilha o mais recente, de dias antes, em que também apareciam a mãe e as
irmãs: "Tava tudo limpo, assim, na beira [do rio]. Tinha uma bananeira de
cacho grande… E eu dizia assim: 'Ah, aqui deixaram uns pedaços de tábua tão
bonitos. Bora fazer um jirau (estrutura de varas ou pedaços de madeira) pra
gente ficar aqui deitadas, enquanto o sol esfria mais'. Eu pegava aquelas
tábuas e fazia um jirau, varria tudinho…"
Milena, que nasceu
em 1997, já viu outro bairro, maior. A energia elétrica tinha chegado, uma ou
outra rua tinha sido asfaltada, mas a São Lucas cresceu praticamente sem
interferência da gestão pública. Saindo da casa da avó, enquanto descemos para
mais próximo do fundo do vale, ela comenta sobre a lembrança de ouvir que a
prefeitura ia pavimentar a rua e melhorar a escadaria íngreme que liga as casas
mais próximas do rio à via.
"Eu cresci
ouvindo que aqui ia virar um Prosamim. Até hoje, nada", diz ela,
referindo-se ao Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus (Prosamim), do
início dos anos 2000.
O Prosamim realiza
obras de melhoria ambiental, urbanística e habitacional em áreas próximas de
rios na cidade. Um deles fica a dez minutos do largo São Sebastião e do teatro
Amazonas. É o Parque Residencial Manaus, um conjunto de casas de tijolo
aparente no meio dos hotéis e dos casarões históricos do epicentro turístico da
cidade.
No caminho de
volta, depois de deixar Milena, Castro comenta que histórias como as de dona
Maria Adelaide, que trocou as margens do Solimões por uma cidade onde pudesse
ter mais acesso à saúde, são comuns e ajudam a explicar porque Manaus concentra
metade dos 4 milhões de habitantes do Estado do Amazonas.
"É o único
ponto do Estado que reúne aquilo que uma cidade maior pode oferecer", ele
pontua. "Todos os nossos [outros] núcleos urbanos são pequenos e
precarizados - e muitos ficaram agora quase completamente isolados com essa
seca",
completa o professor, que também é artista plástico e recentemente expôs algumas de
suas obras em
uma exposição sobre o impacto das mudanças climáticas na Amazônia.
"Então Manaus
é o núcleo que arca com todo o processo de imigração do interior do Estado, de
Estados vizinhos e até de países vizinhos, como a Venezuela."
A cidade cresceu no
ritmo das ocupações irregulares, e o planejamento urbanístico e as políticas de
habitação, por sua vez, não acompanharam o inchaço da cidade. Na avaliação do
professor, isso ajuda a explicar, ao lado da desigualdade abissal entre ricos e
pobres, o nível elevado de favelização.
A ausência do poder
público se manifesta de muitas maneiras e afeta diretamente a qualidade de vida
de quem mora em Manaus, especialmente quem não tem dinheiro.
De forma geral,
existe um desinteresse por essa metade que vive em vulnerabilidade e uma
profunda incompreensão em relação a ela, diz o professor. Um exemplo didático
nesse sentido, para ele, aconteceu quando o então prefeito Amazonino Mendes
visitava uma comunidade em 2011 logo após a morte de três pessoas em um
deslizamento e foi abordado por uma moradora que lhe perguntou o que deveriam
fazer.
"Não fazer
casa onde não deve", respondeu Amazonino, que governou a capital nos anos
80 e 90 e estava em terceiro mandato.
"Mas se nós
estamos morando aqui, prefeito, é porque nós não temos condição de ter uma
moradia digna", ela respondeu.
·
"Minha
filha, então morra, morra."
Já é noite. No caminho
de volta, o professor passa ao lado de um Prosamim no comprimento do Igarapé do
40. O cheiro que sobe do rio é forte. "Fica pior à noite, sabia?",
ele diz. "Sem a luz do sol, o gás sulfídrico sobe. É dele que vem esse
cheiro de ovo podre."
Fonte: BBC News
Brasil
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