Zolpidem: abuso de drogas Z revela
distúrbios do sono como problema crônico de saúde pública
O brasileiro tem
dormido pouco e mal. Um levantamento feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
em 2023 revelou que 72% da população sofre com alguma alteração do sono. A
insônia lidera esse ranking, atingindo um a cada três brasileiros, de acordo
com dados da Associação Brasileira do Sono (ABS).
Mas este não é o único
problema: na busca por uma solução imediata, o abuso dos medicamentos indutores
do sono, como o zolpidem, tem disparado no país. Segundo a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), em cinco anos (2018-2023) as vendas deste
medicamento saltaram de 13,8 milhões para quase 18 milhões de caixas.
Acontece que o uso
abusivo das chamadas drogas Z, grupo do qual o zolpidem faz parte, está
associado ao risco de dependência e sintomas de abstinência, além de uma série
de efeitos que incluem alucinações, sonambulismo e amnésia anterógrada, que
provoca comportamentos inadequados, como adverte a própria bula do remédio.
Para aumentar o
controle sobre o consumo da medicação, a Anvisa anunciou em maio de 2024 uma
mudança nas regras de prescrição, que entrou em vigor no dia 1º de agosto. A
nova regra prevê o uso obrigatório da Notificação de Receita B (de cor azul)
para a prescrição e venda de qualquer medicamento à base de zolpidem.
“O zolpidem já estava
enquadrado na lista B1 (psicotrópicos), que é mais restrita, porém o Adendo 4
dessa mesma lista flexibilizava a sua restrição e previa que medicamentos com
até 10 mg de zolpidem por unidade posológica seriam equivalentes aos medicamentos
da Lista C1 – Lista de Substâncias Sujeitas a Controle Especial. Para esta
categoria, C1, a prescrição pode ser feita em receita branca de duas vias e não
há a exigência de que o profissional que prescreve seja previamente cadastrado
pela autoridade sanitária local”, explica nota da Anvisa.
Mas, de acordo com
Monica Andersen, biomédica e diretora de Ensino e Pesquisa do Instituto do
Sono, e Andrea Bacelar, neurologista e diretora de Relações Institucionais da
Associação Brasileira do Sono (ABS), o abuso de indutores do sono é apenas um
sintoma de um problema maior. É preciso entender o porquê não estamos dormindo
e tratar as causas, não apenas as consequências destes distúrbios do sono.
• Modernidade na contramão do sono
O modelo de vida atual
é conflitante com as boas práticas da higiene do sono – conjunto de hábitos que
favorecem uma boa noite de sono reparador. Basta imaginar o seguinte cenário:
um jovem mora longe do trabalho e entra às 8h, então precisa acordar às 5h30
para conseguir chegar pontualmente. Sai do trabalho às 17h e vai direto para a
faculdade, de onde só sai às 23h. Ao chegar em casa, já são aproximadamente
00h, e até tomar banho, comer e se deitar, terá sorte de pegar no sono antes
das 1h.
Na rotina do
brasileiro médio, não há tempo para as recomendadas seis a oito horas de sono
diárias. Um artigo sobre os impactos sociais no sono, publicado na revista
científica Sleep Science, cita uma “redução de aproximadamente 2 horas de sono
por noite nas últimas cinco décadas”, em nível mundial. Segundo o manuscrito,
“a proporção de indivíduos que dormem menos de 6 horas aumentou cerca de 6%
desde 1985.”
Trânsito, distância do
trabalho, jornada dupla ou tripla, preocupações financeiras e ansiedade,
excesso de exposição a telas — todos são fatores que influenciam em um padrão
de sono empobrecido.
“Temos mais fármacos,
mais diagnósticos, mas parece que estamos adoecendo numa velocidade maior do
que estamos tratando. A vida moderna fez com que a gente tivesse jornada de
trabalho dupla, às vezes tripla, e é difícil dizer não porque o desemprego escancara
essa concorrência por qualquer tipo de emprego. Temos uma sociedade que, devido
à globalização, funciona 24 horas, sete dias por semana”, pontua Bacelar, da
ABS. “Esse indivíduo que trabalha no período da noite pode dormir 8 horas por
dia que não vai ser tão reparador quanto o sono noturno”.
Já Andersen, do
Instituto do Sono, chama a atenção para o uso exagerado dos dispositivos
eletrônicos e a mudança de configuração do ritual da hora de dormir com os
smartphones. “Antes, dependíamos da programação da televisão para nos dizer que
o dia havia acabado. Hoje, os streamings e os novos eletrônicos nos permitem
ter uma postura ativa em relação ao que consumimos. Essa geração tem muito mais
estímulos eletrônicos, dispositivos que retardam a liberação da melatonina, o
que bagunça todo o ciclo circadiano.”
A especialista reforça
que, além da luz artificial impactar o processo de sono por si só, o estímulo
da interação com o dispositivo também impede que o cérebro comece a entrar no
modo de repouso. “O problema não é a melatonina em si, mas a atividade interativa
que o indivíduo faz pelo smartphone, por exemplo. Cada vez que eu faço uma
‘pergunta’ para o meu cérebro, ele brota receptores dopaminérgicos associados à
expectativa em milésimos de segundos.”
• Vivendo em privação de sono
Para as especialistas,
o que tem acontecido é um estado constante de privação de sono, quando a
quantidade de horas bem dormidas é menor do que o necessário para o bom
funcionamento do organismo. Ela pode ser aguda, quando uma pessoa passa por um
evento traumático como um luto, por exemplo, e não consegue dormir por dias; ou
crônica, quando a redução de horas de sono não é tão extrema, mas prolongada,
como o exemplo do estudante no início da matéria.
De acordo com uma
publicação da “The Lancet Public Health”, dados do Centro de Controle e
Prevenção de Doenças [CDC, na sigla em inglês] mostram que a prevalência de
menos de 7 horas de sono por período de 24 horas estão relacionadas a problemas
de saúde geral, obesidade, hipertensão arterial e aumento de acidente vascular
cerebral.
E embora sempre tenham
sido compreendidos como consequência de alguns transtornos mentais, como
depressão e estresse pós-traumático (TEPT), evidências mais recentes demonstram
que os distúrbios do sono podem funcionar também como gatilhos para o adoecimento
mental, como destaca este artigo de revisão publicado na “Annual Review of
Public Health”.
“Estamos tendo cada
vez mais privação involuntária de sono. E aí vamos adoecer mesmo e adoecer
todos os sistemas do nosso organismo. Cada um de nós tem predisposições
genéticas. Se eu durmo menos, de repente posso acionar aquela célula que já tem
alguma displasia, alguma alteração, e isso vai acontecer cada vez mais cedo. E
a tecnologia talvez não acompanhe esse desgaste crescente”, observa Bacelar.
Além da piora da saúde
individual, uma população constantemente em déficit de sono precisa lidar com o
impacto para a economia e para a segurança, como destaca o artigo da “The
Lancet”: “A deficiência de sono pode resultar em reflexos mais lentos, julgamento
prejudicado e comprometimento cognitivo, o que pode levar a uma baixa
produtividade e a mais acidentes de trabalho”.
• Zolpidem: solução imediata para um
problema crônico
Presente no mercado há
30 anos, o Hemitartarato de Zolpidem surgiu como uma alternativa aos já
conhecidos benzodiazepínicos para o tratamento da insônia. A preocupação com os
benzodiazepínicos, que incluem nomes como diazepam e clonazepam, é que eles se conectam
a múltiplos receptores GABA, o que resulta em uma série de efeitos colaterais
como efeitos ansiolíticos, relaxamento muscular, controle de convulsões e, em
alguns casos, efeitos amnésicos.
A ação ampla dos
benzodiazepínicos estimulou o seu uso recreativo, o que logo se tornou um
problema porque a classe apresenta um alto risco de tolerabilidade e
dependência. Por isso, hoje integram o grupo dos “tarja preta”, medicamentos que possuem um grau de controle
de prescrição e dispensa mais elevado.
Andrea Bacelar conta
que, com o surgimento das drogas Z, os especialistas não esperavam lidar com um
problema semelhante de adicção. Além disso, a sua ação rápida e meia-vida curta
(ele se mantém no organismo por cerca de 2,5h) também foram atrativos.
Para entender melhor o
apelo do zolpidem, é preciso detalhar como as drogas Z atuam no cérebro. Elas
são classificadas como agonistas de receptor de benzodiazepina 1, que se ligam
especificamente ao receptor GABA, que é o principal neurotransmissor inibitório
do sistema nervoso central. Ao ingerir a medicação, a ação de inibição neuronal
do GABA é potencializada, o que provoca um efeito sedativo e induz ao sono.
“Pensamos que
finalmente teríamos uma medicação que tem apenas o efeito que a gente quer no
nosso paciente, que é induzir o sono. Não tem o efeito ansiolítico, relaxante,
anti convulsivante, então provavelmente não teremos essa dependência”, explica
Bacelar. No entanto, o uso excessivo e abusivo da medicação durante a pandemia
acendeu um sinal de alerta entre os especialistas.
Os problemas de sono
não surgiram com a pandemia, mas ambas as especialistas destacam o papel da
crise sanitária para o agravo desse panorama e para a banalização do uso do
zolpidem. A ansiedade, o medo constante de perder entes queridos e o isolamento
influenciaram em uma piora do sono, que levou a busca por soluções mais
imediatas como o medicamento.
De acordo com a
pesquisa “O sono dos brasileiros“, encomendada pela biofarmacêutica Takeda,
apenas 7% das pessoas com dificuldades para dormir procuram ajuda médica. E
hoje o tratamento padrão ouro para a insônia não é farmacológico, mas
terapêutico, através da terapia comportamental cognitiva (TCC). Porém, a
dificuldade de acesso ao especialista e ao tratamento, seja pela baixa
disponibilidade na rede pública, seja pelo custo no sistema particular, ajuda a
impulsionar a automedicação.
“As pessoas estão fazendo um investimento
financeiro que às vezes sequer está dentro do poder aquisitivo apenas para
comprar o medicamento, no desespero de dormir. Esse é um problema de saúde
pública hoje, que já atinge outros países também”, afirma Andersen.
Bacelar compartilha
que, a médio e longo prazo, a tendência é que a prescrição de drogas Z siga o
mesmo caminho dos benzodiazepínicos. “Eles ainda vão existir e vamos continuar
os prescrevendo, mas pontualmente, seletivamente e por um tempo determinado”.
Quando usado de acordo com as recomendações da bula — em casos de insônia aguda
e por menos de quatro semanas –, o medicamento oferece eficácia e segurança
para os pacientes que precisam desse tipo de intervenção.
• Superdosagem e crise de abstinência
Uma das preocupações
dos especialistas com relação ao zolpidem é a superdosagem, que tem se tornado
frequente entre os usuários da medicação — há relatos de pacientes que teriam
ingerido até 80 comprimidos em uma única noite, segundo dados de palestra do
Brain Congress, maior congresso de neurociência do país.
A ingestão excessiva
do medicamento acontece seja pelo aumento da tolerância à substância, em que o
paciente passa a precisar de doses mais altas para ter o mesmo efeito, ou mesmo
pela amnésia anterógrada provocada pela própria medicação. Nesse caso, a pessoa
pode tomar o medicamento mais de uma vez na mesma noite simplesmente por não
lembrar que já fez o uso.
Por isso, para aqueles
que têm prescrição médica para o uso do zolpidem, a recomendação é clara: ao
tomar o medicamento, deixe a embalagem fora de alcance e vá para a cama.
Uma vez instalada a
dependência do zolpidem, a pessoa pode passar a experimentar sintomas bruscos
de abstinência quando não faz o uso da substância. Crises de ansiedade,
taquicardia, convulsões, irritabilidade, mudança abrupta de humor, tremores,
sudoreses e náuseas são alguns dos sintomas observados em um grupo de pacientes
de uma clínica psiquiátrica de Curitiba que trata a dependência no medicamento,
como relata artigo publicado na revista científica “Debates em Psiquiatria”.
Nesse contexto, a
diretora da Associação Brasileira do Sono explica que outras formas de
administração da medicação, como a versão em gotas, é uma aliada importante no
desmame do paciente para evitar sintomas de abstinência mais intensos.
“As gotas são muito
úteis não para começar um tratamento, mas justamente para fazer o desmame do
paciente que já está tomando o zolpidem. Quando você vai fazer a redução de
dose com o comprimido, é muito mais difícil porque é uma redução grande de uma
única vez. A versão em gotas permite uma retirada mais gradativa”, diz Bacelar.
Na contramão da
tendência de enfrentamento do uso abuso, está uma nova apresentação do
princípio ativo: uma forma de spray saborizado. A nova posologia foi criticada
pela especialista pela facilidade de uso e o apelo do sabor adocicado.
“Enquanto queremos evitar e retirar prescrições, essa nova forma de
apresentação traz uma facilidade ainda maior de abuso, porque cada borrifada
significa uma dose. Eu acredito que, diante da situação atual, vai ser bem
difícil a aceitação dela por especialistas.”
Para Andersen, a
chegada da nova formulação do zolpidem ainda é muito recente, e deve ser
debatida com responsabilidade justamente para não aumentar a procura pelo
medicamento.
• A valorização do sono
Perguntada sobre quais
estratégias adotar para mudar o cenário dos problemas de sono, Andersen aponta
para a valorização de seu processo. “É a medida mais complexa, mais difícil. É
entender que há medidas imperativas que devem ser feitas pelo indivíduo para um
sono de mais qualidade. Não é chegar em casa, tirar o fio da tomada e dormir.
Isso não existe.”
Para ela, o sono serve
como um termômetro para a qualidade de vida, e leva a maior produtividade. “Uma
pessoa mais saudável, produtiva, é uma pessoa que dorme bem.”
O interesse em
entender melhor as queixas sobre o sono
tem crescido entre os profissionais de saúde, assim como o
direcionamento dessas demandas para os especialistas, como ressalta Andrea
Bacelar. “Hoje, o ginecologista, o cardiologista, o clínico geral, o geriatra,
estão todos preocupados e querendo aprender a identificar uma queixa de sono, a
fazer um diagnóstico e a encaminhar para um especialista.” Ainda assim, na sua
visão é preciso investir de forma mais intensa na capacitação de profissionais
e no acesso da população ao tratamento da insônia e demais distúrbios do sono.
Fonte: Futuro da Saúde
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