quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Sob qual perspectiva entender o triunfo de Trump?

Trump venceu as eleições presidenciais nos Estados Unidos. A forma como venceu, mais do que o fato em si, é chamativa. Apenas o segundo presidente nos Estados Unidos a vencer eleições presidenciais não consecutivas desde Grover Cleveland, em 1892, Trump conquistou o maior triunfo Republicano no voto popular desde George W. Bush. Sua margem sobre Kamala Harris é de cinco milhões de votos. Nem em 2016, quando ganhou seu primeiro ticket para a Casa Branca, nem em 2020 quando perdeu para Joe Biden, Trump havia vencido a votação numérica global. O Partido Republicano, completamente avassalado ao trumpismo, conquistou a maioria no Senado e se aproxima de arrebatar a maioria na Câmara dos Representantes. Seria a segunda vez que Trump conseguiria o feito, inédito na história norte-americana.

Para Obama, que mergulhou na campanha de Kamala Harris, tratou-se de uma derrota, asism como para Joe Biden, que não ficará marcado pelo triunfo em 2020, mas por ter construído as condições de retorno de Trump para a presidência. Já para figuras inapresentáveis como Elon Musk, que gastou bilhões de dólares em campanha diária para o Republicano, trata-se de uma triunfo que servirá de trampolim para a participação política, e a integração dos grandes monopólios tecnológicos na estratégia de Estado.

Trump conseguiu obter o apoio de eleitores urbanos e rurais em níveis notavelmente mais altos do que em sua disputa contra Joe Biden em 2020. Em cada estado, Trump teve um desempenho melhor do que em 2020. Na Flórida, por exemplo, onde venceu por três pontos percentuais em 2020, sua margem está a caminho de aumentar para 12 pontos. A votação entre negros e latinos também se alterou. Segundo o site Politico, em 2016, Trump conseguiu 10% de votos entre os negros; agora, essa porcentagem dobrou e chegou a 20%, especialmente entre homens nas regiões desindustrializadas ou que padeceram com a precarização do trabalho. Entre os latinos, Harris venceu por apenas 8% - uma redução drástica da vantagem de Biden de mais de 30% nesse segmento, em 2020. Segundo o The Economist, essa tendência foi particularmente forte entre os homens hispânicos: Joe Biden ganhou nesse segmento por uma margem de 23 pontos em 2020; desta vez, Trump prevaleceu por uma margem de dez pontos.

Esses resultados marcam a reviravolta no mantra Democrata de que o crescimento demográfico dos segmentos negros e latinos representa uma base segura e sustentável de votantes próprios. O trumpismo conseguiu com muita demagogia adentrar esses setores e clivar o país, salvaguardando as chances de triunfo do Partido Republicano sobre os segmentos mais oprimidos pelo próprio imperialismo.

A grande imprensa estadunidense fala em “reordenamento” da demografia política nacional. A CNN afirma que o triunfo de Trump “em 2016 não foi uma aberração, mas sim o prenúncio de um grande realinhamento na política interna e no papel dos EUA no mundo”. Não há dúvida que a voltagem da crise orgânica nos Estados Unidos, e no mundo, torna impossível a fábula de retornar a um mundo sem polarização, prévio à crise mundial de 2008. Este realinhamento em 2024, entretanto, não está à prova de balas. A situação mundial que Trump herdará é sensivelmente mais conturbada que a de 2016. A forma com que Trump venceu o estimula a testar todos os limites dos poderes presidenciais, dando saltos em um novo experimento bonapartista. A situação de crise econômica mundial, que nos EUA é de baixo desemprego acompanhado por baixo crescimento, de estabilização da inflação acompanhada pelos efeitos tardios dela, deixa pouca margem para o cumprimento da promessa de melhoria das condições de vida da população. Conflitos e resistências, como vimos nas greves da Boeing e dos metalúrgicos da UAW (que engloba as principais automotrizes, Ford, GM e Stellantis) serão difíceis de evitar. Voltaremos a isso.

Entretanto, tão certo como ser insustentável o discurso do retorno à “normalidade” pós-Guerra Fria, é que o provisório “reordenamento” político demográfico nos EUA se deu empurrado pela política militarista, conservadora e passivizadora do Partido Democrata. Como escreveram Jimena Vergara e Sybil Davis, do Left Voice, a campanha Democrata tratou de emular a política direitista de Trump, competindo em direitismo para vencer seu eleitorado. Enquanto Trump destila ódio aos imigrantes, prometendo fechar a fronteira, expulsar estrangeiros e mesmo considerar as cidades norte-americanas tomadas por “bandidos de outras nações” (como as reacionárias campanhas contra porto-riquenhos e haitianos em estados como Ohio e Pensilvânia), Harris declarava manter mão dura contra a imigração, ameaçando a população da América Central a “não entrar” nos EUA. Ao racismo explícito de Trump, Harris e os Democratas opuseram a proposta de militarização e mais policiamento, uma afronta à geração de jovens mobilizados no Black Lives Matter em 2020 contra a violência racista estrutural do imperialismo. Mesmo a bandeira do direito ao aborto, demagogicamente levantada por Harris em virtude da revogação da decisão judicial Roe v. Wade, foi instrumentalizada para negar todas as demandas que a juventude que era base social de Bernie Sanders em 2016 defendia: nada se falou sobre o aumento do salário mínimo, do combate à precarização do trabalho, do acesso a um sistema de saúde público e gratuito.

Bernie Sanders e Alexandria Ocasio Cortez, junto com a direção do Democratic Socialists of America (DSA), foram guardiões do giro à direita da campanha Democrata. Sustentaram que a política se faz pela desmobilização e passivização, e que Harris representaria os interesses de uma juventude esgotada pela exploração do trabalho e pela atroz colaboração logística, financeira e militar com o genocídio do povo palestino em Gaza. Sanders chegou a elaborar um vídeo desesperado chamando o voto em Harris apesar de sua política abertamente pró-sionista, que não se diferenciava em nada da de Trump. O DSA divulgou um pálida nota anunciando que seus membros votariam em Harris para derrotar Trump, ou em outras candidaturas, sem qualquer balanço sobre a política desastrosa de “construção de uma organização socialista por dentro do Partido Democrata”. Enquanto Trump incendiava sua base de direita, Sanders, AOC e do DSA desmoralizavam a base votante de jovens progressistas que despertou seu interesse para pensar horizontes socialistas.

O tema da Palestina merece destaque à parte. Em 2024, o establishment Democrata afirmava com segurança que a política externa não influencia nos resultados eleitorais. Joe Biden e Kamala Harris encabeçaram o esforço comum do regime bipartidário imperialista em apoiar com todos os recursos necessários o genocídio da população palestina na Faixa de Gaza, levada adiante pelo Estado terrorista e colonialista de Israel. Um genocídio que, em um ano, devastou Gaza, aniquilou gerações inteiras de famílias palestinas e produziu dia após dia imagens que percorreram o mundo de mulheres e crianças mortas e mutiladas. Segundo a pesquisa da revista médica The Lancet, seriam quase 200 mil mortos, e Devi Sridhar, professora de saúde pública global da Universidade de Edimburgo, disse que, se as mortes continuarem nesse ritmo, a estimativa de mortes até o final do ano será de 335 mil pessoas - 15% da população de Gaza. Os Democratas seguiram o apoio total a Netanyahu, demonizando os movimento pró-palestina (apoiados por inúmeras comunidades e movimentos judaicos nos EUA) e reprimindo com mão com força policial as históricas ocupações de universidades de elite em defesa do povo palestino e pelo fim do genocídio.

Os resultados mostraram que a política externa do imperialismo gravitou de maneira decisiva nas eleições. Donald Trump venceu em todos os estados-pêndulo, e não apenas por um giro à direita, existente de forma transversal, mas pelo rechaço de segmentos da juventude pró-Palestina e das comunidades árabes-muçulmanas nesses Estados (como é o caso de Michigan, em que Harris teve proporção de votos menor que Biden nesse setores). Uma “coalizão antidireita” que defendeu as mesmas posições de Trump em relação à destruição das vidas palestinas, que fomentou Netanyahu e militarizou o Leste europeu, instrumentalizando a invasão reacionária da Rússia na Ucrânia para converter esse país em um protetorado ianque, não podia vencer.

Trump se verá em uma situação mais complexa. Em 2016, havia um cenário internacional de guerra civil na Síria, afluxo de imigrantes à Europa (em particular à Alemanha) oriundos da Síria e países que haviam sido bombardeados pelas potências como política de repressão e freio à Primavera Árabe, e choques contra milícias islâmicas como o ISIS no Iraque. Em comparação, seu retorno à Casa Branca vem acompanhado de dois anos da maior guerra convencional terrestre em território europeu desde a Segunda Guerra Mundial - que move as duas Coreias a ameaçarem entrar com tropas no conflito, Seul ao lado da Ucrânia e Pyongyang ao lado da Rússia - o extermínio sionista em Gaza (e as mobilizações mundiais em favor do povo palestino), a exacerbada competição/conflito com a China - que envolve a perigosa situação de militarização de Taiwan e do Mar do Sul da China - e um rechaço maior às políticas de ajuste do FMI em diversos países (como Sri Lanka, Nigéria, Sudão, Bangladesh, entre outros). A carta militarista está muito mais sobre a mesa que em 2016, assim como as possibilidades de instabilização mundial. Trump consegue um mandato fortalecido para tentativas bonapartistas, mas os limites para tais experiências podem ser curtos.

Em outras palavras, o avanço da extrema direita e a ampliação da base eleitoral do trumpismo não devem ser confundidos com o fim da polarização política e social que afeta a sociedade estadunidense. Enquanto Lula acena amistosamente a Trump, parabenizando-o pelo triunfo, e a esquerda institucional busca a salvação na "unidade mais ampla contra a extrema direita" (unidade com a burguesia na forma das frentes amplas, que hoje ataca a população pobre com Arcabouço Fiscal neoliberal, cortes na saúde e na educação e pacotes de ajuste contra aposentados e desempregados), a política da esquerda que se reivindica socialista passa por outro âmbito. Passa pela unificação e articulação dos setores oprimidos com os métodos da luta de classes, da construção de um programa anticapitalista e anti-imperialista que promova um choque frontal contra todas as variantes do regime burguês - inclusive contra as que fortalecem a extrema direita no governo federal brasileiro.

Contra Trump e a extrema direita racista e xenófoba, é necessário uma política anticapitalista e anti-imperialista frontal, que combate o Partido Democrata e sua política de passivização e desmoralização da nova geração de lutadores que se prontificou em todo o país a levantar altas as bandeiras da Palestina e da solidariedade internacional contra o colonialismo sionista. O movimento negro que luta contra a violência policial, o movimento de mulheres que já enfrentou Trump e defende contra o autoritarismo judiciário o direito ao aborto e à autonomia sobre o próprio corpo, os trabalhadores sindicalizados e não-sindicalizados que se opõem à burocracia sindical integrada ao Estado imperialista para fazer greves poderosas como as da Boeing, da UPS, da Amazon e da Starbucks: a articulação dessas forças com um programa independente de todas as variantes do capitalismo é fundamental para levar adiante a energia de combate contra a extrema direita que os Democratas fortaleceram. Essa é a batalha do Left Voice, organização do MRT nos Estados Unidos, para construir uma organização socialista e revolucionária no coração do imperialismo que enfrente Republicanos e Democratas para resgatar o melhor da tradição da luta de classes nas condições do imperialismo do século XXI.

 

Fonte: Por André Barbieri, em Esquerda Diário

 

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