Sob qual perspectiva entender o triunfo de
Trump?
Trump venceu as
eleições presidenciais nos Estados Unidos. A forma como venceu, mais do que o
fato em si, é chamativa. Apenas o segundo presidente nos Estados Unidos a
vencer eleições presidenciais não consecutivas desde Grover Cleveland, em 1892,
Trump conquistou o maior triunfo Republicano no voto popular desde George W.
Bush. Sua margem sobre Kamala Harris é de cinco milhões de votos. Nem em 2016,
quando ganhou seu primeiro ticket para a Casa Branca, nem em
2020 quando perdeu para Joe Biden, Trump havia vencido a votação numérica
global. O Partido Republicano, completamente avassalado ao trumpismo,
conquistou a maioria no Senado e se aproxima de arrebatar a maioria na Câmara
dos Representantes. Seria a segunda vez que Trump conseguiria o feito, inédito na
história norte-americana.
Para Obama, que
mergulhou na campanha de Kamala Harris, tratou-se de uma derrota, asism como
para Joe Biden, que não ficará marcado pelo triunfo em 2020, mas por ter
construído as condições de retorno de Trump para a presidência. Já para figuras
inapresentáveis como Elon Musk, que gastou bilhões de dólares em campanha
diária para o Republicano, trata-se de uma triunfo que servirá de trampolim
para a participação política, e a integração dos grandes monopólios
tecnológicos na estratégia de Estado.
Trump conseguiu obter
o apoio de eleitores urbanos e rurais em níveis notavelmente mais altos do que
em sua disputa contra Joe Biden em 2020. Em cada estado, Trump teve um
desempenho melhor do que em 2020. Na Flórida, por exemplo, onde venceu por três
pontos percentuais em 2020, sua margem está a caminho de aumentar para 12
pontos. A votação entre negros e latinos também se alterou. Segundo o site Politico, em 2016, Trump conseguiu 10% de votos entre os negros; agora,
essa porcentagem dobrou e chegou a 20%, especialmente entre homens nas regiões
desindustrializadas ou que padeceram com a precarização do trabalho. Entre os
latinos, Harris venceu por apenas 8% - uma redução drástica da vantagem de
Biden de mais de 30% nesse segmento, em 2020. Segundo o The Economist, essa tendência foi particularmente forte entre os homens
hispânicos: Joe Biden ganhou nesse segmento por uma margem de 23 pontos em
2020; desta vez, Trump prevaleceu por uma margem de dez pontos.
Esses resultados
marcam a reviravolta no mantra Democrata de que o crescimento demográfico dos
segmentos negros e latinos representa uma base segura e sustentável de votantes
próprios. O trumpismo conseguiu com muita demagogia adentrar esses setores e clivar
o país, salvaguardando as chances de triunfo do Partido Republicano sobre os
segmentos mais oprimidos pelo próprio imperialismo.
A grande imprensa
estadunidense fala em “reordenamento” da demografia política nacional. A CNN
afirma que o triunfo de Trump “em 2016 não foi uma aberração, mas sim o
prenúncio de um grande realinhamento na política interna e no papel dos EUA no
mundo”. Não há dúvida que a voltagem da crise orgânica nos Estados Unidos,
e no mundo, torna impossível a fábula de retornar a um mundo sem polarização,
prévio à crise mundial de 2008. Este realinhamento em 2024, entretanto, não
está à prova de balas. A situação mundial que Trump herdará é sensivelmente
mais conturbada que a de 2016. A forma com que Trump venceu o estimula a testar
todos os limites dos poderes presidenciais, dando saltos em um novo experimento
bonapartista. A situação de crise econômica mundial, que nos EUA é de baixo
desemprego acompanhado por baixo crescimento, de estabilização da inflação
acompanhada pelos efeitos tardios dela, deixa pouca margem para o cumprimento
da promessa de melhoria das condições de vida da população. Conflitos e
resistências, como vimos nas greves da Boeing e dos metalúrgicos da UAW (que
engloba as principais automotrizes, Ford, GM e Stellantis) serão difíceis de
evitar. Voltaremos a isso.
Entretanto, tão certo
como ser insustentável o discurso do retorno à “normalidade” pós-Guerra Fria, é
que o provisório “reordenamento” político demográfico nos EUA se deu empurrado
pela política militarista, conservadora e passivizadora do Partido Democrata.
Como escreveram Jimena Vergara e Sybil Davis, do
Left Voice, a campanha Democrata tratou de emular a
política direitista de Trump, competindo em direitismo para vencer seu
eleitorado. Enquanto Trump destila ódio aos imigrantes, prometendo fechar a
fronteira, expulsar estrangeiros e mesmo considerar as cidades norte-americanas
tomadas por “bandidos de outras nações” (como as reacionárias campanhas contra
porto-riquenhos e haitianos em estados como Ohio e Pensilvânia), Harris
declarava manter mão dura contra a imigração, ameaçando a população da América
Central a “não entrar” nos EUA. Ao racismo explícito de Trump, Harris e os
Democratas opuseram a proposta de militarização e mais policiamento, uma
afronta à geração de jovens mobilizados no Black Lives Matter em
2020 contra a violência racista estrutural do imperialismo. Mesmo a bandeira do
direito ao aborto, demagogicamente levantada por Harris em virtude da revogação
da decisão judicial Roe v. Wade, foi instrumentalizada para negar
todas as demandas que a juventude que era base social de Bernie Sanders em 2016
defendia: nada se falou sobre o aumento do salário mínimo, do combate à
precarização do trabalho, do acesso a um sistema de saúde público e gratuito.
Bernie Sanders e
Alexandria Ocasio Cortez, junto com a direção do Democratic Socialists
of America (DSA), foram guardiões do giro à direita da campanha
Democrata. Sustentaram que a política se faz pela desmobilização e
passivização, e que Harris representaria os interesses de uma juventude
esgotada pela exploração do trabalho e pela atroz colaboração logística,
financeira e militar com o genocídio do povo palestino em Gaza. Sanders chegou
a elaborar um vídeo desesperado chamando o voto em Harris apesar de sua
política abertamente pró-sionista, que não se diferenciava em nada da de Trump.
O DSA divulgou um pálida nota anunciando que
seus membros votariam em Harris para derrotar Trump, ou em outras candidaturas, sem qualquer balanço sobre a política desastrosa de
“construção de uma organização socialista por dentro do Partido Democrata”.
Enquanto Trump incendiava sua base de direita, Sanders, AOC e do DSA
desmoralizavam a base votante de jovens progressistas que despertou seu
interesse para pensar horizontes socialistas.
O tema da Palestina
merece destaque à parte. Em 2024, o establishment Democrata
afirmava com segurança que a política externa não influencia nos resultados
eleitorais. Joe Biden e Kamala Harris encabeçaram o esforço comum do regime
bipartidário imperialista em apoiar com todos os recursos necessários o
genocídio da população palestina na Faixa de Gaza, levada adiante pelo Estado
terrorista e colonialista de Israel. Um genocídio que, em um ano, devastou
Gaza, aniquilou gerações inteiras de famílias palestinas e produziu dia após
dia imagens que percorreram o mundo de mulheres e crianças mortas e mutiladas.
Segundo a pesquisa da revista médica The Lancet, seriam quase 200 mil mortos, e
Devi Sridhar, professora de saúde pública global da Universidade de Edimburgo,
disse que, se as mortes continuarem nesse ritmo, a estimativa de mortes até o
final do ano será de 335 mil pessoas - 15% da população de Gaza. Os Democratas
seguiram o apoio total a Netanyahu, demonizando os movimento pró-palestina
(apoiados por inúmeras comunidades e movimentos judaicos nos EUA) e reprimindo
com mão com força policial as históricas ocupações de universidades de elite em
defesa do povo palestino e pelo fim do genocídio.
Os resultados
mostraram que a política externa do imperialismo gravitou de maneira decisiva
nas eleições. Donald Trump venceu em todos os estados-pêndulo, e não apenas por
um giro à direita, existente de forma transversal, mas pelo rechaço de
segmentos da juventude pró-Palestina e das comunidades árabes-muçulmanas nesses
Estados (como é o caso de Michigan, em que Harris teve proporção de votos menor
que Biden nesse setores). Uma “coalizão antidireita” que defendeu as mesmas
posições de Trump em relação à destruição das vidas palestinas, que fomentou
Netanyahu e militarizou o Leste europeu, instrumentalizando a invasão
reacionária da Rússia na Ucrânia para converter esse país em um protetorado
ianque, não podia vencer.
Trump se verá em uma
situação mais complexa. Em 2016, havia um cenário internacional de guerra civil
na Síria, afluxo de imigrantes à Europa (em particular à Alemanha) oriundos da
Síria e países que haviam sido bombardeados pelas potências como política de
repressão e freio à Primavera Árabe, e choques contra milícias islâmicas como o
ISIS no Iraque. Em comparação, seu retorno à Casa Branca vem acompanhado de
dois anos da maior guerra convencional terrestre em território europeu desde a
Segunda Guerra Mundial - que move as duas Coreias a ameaçarem entrar com tropas
no conflito, Seul ao lado da Ucrânia e Pyongyang ao lado da Rússia - o
extermínio sionista em Gaza (e as mobilizações mundiais em favor do povo
palestino), a exacerbada competição/conflito com a China - que envolve a
perigosa situação de militarização de Taiwan e do Mar do Sul da China - e um
rechaço maior às políticas de ajuste do FMI em diversos países (como Sri Lanka,
Nigéria, Sudão, Bangladesh, entre outros). A carta militarista está muito mais
sobre a mesa que em 2016, assim como as possibilidades de instabilização
mundial. Trump consegue um mandato fortalecido para tentativas bonapartistas,
mas os limites para tais experiências podem ser curtos.
Em outras palavras, o
avanço da extrema direita e a ampliação da base eleitoral do trumpismo não
devem ser confundidos com o fim da polarização política e social que afeta a
sociedade estadunidense. Enquanto Lula acena amistosamente a Trump,
parabenizando-o pelo triunfo, e a esquerda institucional busca a salvação na
"unidade mais ampla contra a extrema direita" (unidade com a
burguesia na forma das frentes amplas, que hoje ataca a população pobre com
Arcabouço Fiscal neoliberal, cortes na saúde e na educação e pacotes de ajuste
contra aposentados e desempregados), a política da esquerda que se reivindica
socialista passa por outro âmbito. Passa pela unificação e articulação dos
setores oprimidos com os métodos da luta de classes, da construção de um programa
anticapitalista e anti-imperialista que promova um choque frontal contra todas
as variantes do regime burguês - inclusive contra as que fortalecem a extrema
direita no governo federal brasileiro.
Contra Trump e a
extrema direita racista e xenófoba, é necessário uma política anticapitalista e
anti-imperialista frontal, que combate o Partido Democrata e sua política de
passivização e desmoralização da nova geração de lutadores que se prontificou
em todo o país a levantar altas as bandeiras da Palestina e da solidariedade
internacional contra o colonialismo sionista. O movimento negro que luta contra
a violência policial, o movimento de mulheres que já enfrentou Trump e defende
contra o autoritarismo judiciário o direito ao aborto e à autonomia sobre o
próprio corpo, os trabalhadores sindicalizados e não-sindicalizados que se
opõem à burocracia sindical integrada ao Estado imperialista para fazer greves
poderosas como as da Boeing, da UPS, da Amazon e da Starbucks: a articulação
dessas forças com um programa independente de todas as variantes do capitalismo
é fundamental para levar adiante a energia de combate contra a extrema direita
que os Democratas fortaleceram. Essa é a batalha do Left Voice, organização do
MRT nos Estados Unidos, para construir uma organização socialista e
revolucionária no coração do imperialismo que enfrente Republicanos e
Democratas para resgatar o melhor da tradição da luta de classes nas condições
do imperialismo do século XXI.
Fonte: Por André
Barbieri, em Esquerda Diário
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