sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Paolo Benanti: A democracia à prova do poder dos computadores

"Como viveremos e o que faremos desta década de 2030 será o que deixaremos em herança às gerações futuras após a queda da Babel digital", escreve Paolo Benanti, frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida, Em português, é autor de “Oráculos: Entre ética e governança dos algoritmos”.

O que fazer após o fim do sonho da Internet? Essa é a pergunta que serve de subtítulo e ponto de partida para o novo ensaio do Frei Paolo Benanti, Il crollo di Babele. Che fare dopo la fine del sogno di Internet? (A queda de Babel. O que fazer depois do fim do sonho da Internet)em tradução livre, San Paolo, páginas 318, 22,00 euros) nas livrarias a partir de hoje, do qual antecipamos um trecho das conclusões.

Entre Elon Musk, psicopolítica e poder digital, o autor - teólogo franciscano, um dos maiores especialistas em ética das tecnologias e presidente da Comissão IA para a Informação - descreve a queda do sonho da Internet e o advento de uma nova época liderada pela Inteligência Artificial. Com base no conto bíblico de Babel, Benanti reconstrói como, na primeira década do novo milênio, a sociedade construiu com a Internet e os smartphones uma torre global, culminando nas Primaveras Árabes de 2011, quando se convenceu de que os meios digitais poderiam unir e libertar povos e democracias. Na segunda década, com o advento das grandes plataformas e com sua necessidade radical de monetizar os dados dos usuários, o mundo testemunhou a queda da torre: inquietações, fake news, exaltação do eu e das contraposições que agora desafiam o debate democrático e a manutenção da paz que culminaram com os tumultos no Capitólio em 2021. A pergunta crucial reaparece, no fim: o que aguarda o homem após a queda de Babel?

<><> Eis o artigo.

Se a primeira década do século terminou com as chamadas Primaveras Árabes, a segunda teve como evento simbólico as chamadas revoltas do Capitólio: em 6 de janeiro de 2021, se verificou um dos eventos mais dramáticos e controversos da história política recente dos EUA. [...]

A sequência de eventos mostra uma interpenetração total dos mundos físico-analógico e digital, com consequências do primeiro sobre o segundo, mas, acima de tudo, revela ao mundo que o digital, longe de ser um puro contexto virtual e sem consequências, é uma força que conseguiu moldar os eventos que fizeram a história: cinco pessoas morreram durante o ataque, incluindo um policial e quatro manifestantes, enquanto mais de cento e quarenta policiais ficaram feridos e a invasão causou danos estimados em mais de um milhão e meio de dólares ao Capitólio. Nos meses que se seguiram, o Departamento de Justiça indiciou mais de mil e duzentas pessoas por crimes relacionados ao ataque, com centenas de confissões de culpa e condenações. Trump foi acusado de incitação à insurreição pela Câmara dos Deputados, mas foi posteriormente absolvido pelo Senado. Em um Comitê Especial da Câmara para Investigar o Ataque de 6 de janeiro, as investigações e as audiências concluíram que Trump foi o principal responsável pelo ataque, recomendando acusações penais contra ele. O público estadunidense reagiu de forma altamente polarizada e os debates on-line continuaram por meses.

Esse evento é visto como o símbolo desta segunda década do século porque as plataformas digitais desempenharam um papel crucial nos acontecimentos. Redes sociais como Facebook, Twitter e YouTube foram usadas para espalhar desinformação sobre as eleições presidenciais: essa desinformação alimentou as teorias de conspiração que levaram à invasão do Capitólio. Donald Trump usou maciçamente as mídias sociais para se comunicar diretamente com seus apoiadores, ignorando a intermediação das mídias tradicionais: essa estratégia permitiu que Trump consolidasse uma base de apoiadores fieis e divulgasse rapidamente sua mensagem, incluindo apelos para contestar os resultados eleitorais. Por fim, as plataformas sociais foram usadas para organizar e coordenar o ataque. Em sites como o “Gab” e o “Parler”, os partidários de Trump compartilharam instruções sobre como evitar as forças policiais e sobre que ferramentas usar para forçar as portas do Capitólio. Além disso, os posts em tempo real nas mídias sociais documentaram e incitaram ainda mais a violência durante o ataque. Se os eventos da Praça Tahir e as chamadas Primaveras Árabes fizeram com que as plataformas sociais globais fossem vistas como instrumentos de liberdade e democracia, os eventos de 6 de janeiro lançaram uma definitivamente sombra sinistra sobre seu papel e atuação, embora após o ataque as principais plataformas sociais tenham tomado medidas para conter a desinformação e o incitamento à violência.

O bloqueio das contas de Trump em várias plataformas levantou debates sobre a liberdade de expressão e a responsabilidade das plataformas digitais: a suspensão de Trump foi vista como uma medida necessária para prevenir mais violências, mas também levantou questões éticas e jurídicas sobre a censura e a regulamentação dos conteúdos on-line. A invasão do Capitólio demonstrou o poder das plataformas digitais de mobilizar as massas e transformar a desinformação on-line em ações reais e violentas. Esse evento evidenciou a necessidade de uma regulamentação mais rigorosa e de uma maior responsabilidade por parte das plataformas digitais, embora até o momento não se registrem tentativas bem-sucedidas nesse sentido, e desponta uma forte dúvida sobre como tornar esse poder computacional compatível e domesticado às instituições democráticas. (...)

•                        Os desafios que nos aguardam

Durante a Segunda Guerra Mundial, os primeiros computadores foram desenvolvidos para fins bélicos (...) No período imediatamente posterior à guerra, a partir da década de 1950, a introdução dos transistores de silício possibilitou a criação de computadores menores, mais rápidos e mais confiáveis, enquanto os circuitos integrados, que surgiram na década de 1960, reduziram ainda mais os tamanhos e os custos e aumentaram a funcionalidade dos computadores. Abriu-se, assim, uma temporada em que a capacidade de cálculo se espalhou por toda a sociedade. Naqueles anos, a distribuição do poder de cálculo estava confinada aos mainframes.

Originalmente, esse termo se referia aos grandes gabinetes, chamados mainframes, que continham os processadores e as memórias dos primeiros computadores. Foi somente na década seguinte, nos anos 1970, com o advento dos microprocessadores, que esse poder de cálculo foi democratizado e difundido entre as pessoas.(...) No entanto, foi o surgimento de uma nova corrente cultural que podemos definir, se nos for permitido o trocadilho, de geração Bit, que produziu o profundo mecanismo de descentralização das décadas seguintes. A revolução tecnológica foi alimentada pela semente da contracultura californiana da década de 1960. O centro dessa maneira de ver os computadores e a informática foi e é o Vale do Silício, a área entre São Francisco e São José. Foram, acima de tudo, o ideal comunitário dos “flower children”, sua natureza libertária, seu desejo de ampliar os horizontes e seu desprezo pela autoridade centralizada que serviram de base para as bases filosóficas e éticas da Internet e de toda a revolução dos computadores pessoais.

A Rede está agora se encaminhando para o crepúsculo daquela experiência. Ao lado da vertente californiana, há outra corrente, mais fria e importante, que tem sua identidade em uma forma diferente de desajuste e desconforto, aquela dos nerds. Seu centro está em Seattle, onde fica a sede da Microsoft, fundada por Bill Gates. A orientação que impulsionou Gates e os pertencentes a essa vertente está centrada não tanto na contracultura, mas na convicção da centralidade da tecnologia. Não apenas para o futuro de nossas sociedades e o bem-estar das pessoas, mas também por sua capacidade de ser um veículo direto de afirmação pessoal e de poder. A conclusão desse processo de democratização ocorreu no final da primeira década deste século com o advento do smartphone. No momento em que o poder computacional pessoal começou a habitar os nossos bolsos, também começou a nos privar de uma certa autonomia: o smartphone precisa de um substrato invisível e fundamental, a rede, que garante seu funcionamento e que alimenta o poder computacional de bolso de que dispomos. (...)

Hoje, as nossas existências democráticas são existências computacionais. A democracia que hoje se tornou computacional também explora o potencial das tecnologias informáticas para tornar mais eficaz e inclusiva a participação dos cidadãos nos processos de tomada de decisões públicas. (...) O advento da inteligência artificial está novamente mudando o horizonte. Os serviços de inteligência artificial tornam nebulosa a linha entre o poder computacional pessoal e o poder centralizado na nuvem: quando usamos nossos telefones, dificilmente sabemos o que é executado localmente e o que é executado na nuvem. Entretanto, essa nova forma de centralização na nuvem também traz consigo uma centralização do poder computacional pessoal associado à democracia. A questão a ser enfrentada será, portanto, como tornar democrático o poder centralizado da nuvem e da IA, evitando que a democracia computacional entre em colapso em uma oligarquia da nuvem. [...]

Os mestres da suspeita tiveram uma influência significativa no pensamento pós-moderno, contribuindo para desestabilizar as bases da modernidade e abrindo caminho para novas formas de crítica e interpretação. Os mestres da suspeita forneceram ferramentas críticas fundamentais que permitiram aos pensadores pós-modernos desafiar as estruturas consolidadas da modernidade, promovendo uma visão de mundo caracterizada por pluralismo, relativismo e um questionamento contínuo das verdades absolutas. Após esses turbulentos anos 20 de nosso século, o cenário provavelmente mudou ainda mais. Da suspeita, passamos à dúvida: não uma dúvida existencial, filosófica ou científica, porque essa mutação não é resultado do pensamento racional e filosófico, mas da tecnologia dos algoritmos, com a qual tecemos a sociedade nestes últimos anos. A dúvida existencial tem como pressuposto a suspeita que desconstrói as certezas e a isso acrescenta a subtração de qualquer base possível para a nossa subjetividade: estamos em uma contemporaneidade que se define, dependendo dos comentaristas, como época da pós-verdade, das fake news, das câmaras de eco, das conspirações ou dos populismos.

O tipo de sucessão que poderemos dar à modernidade dependerá principalmente de como saberemos pensar esses acontecimentos e de como saberemos decidir como realizar e defender uma democracia computacional, protegendo-a do poder esmagador das plataformas. Como viveremos e o que faremos desta década de 2030 será o que deixaremos em herança às gerações futuras após a queda da Babel digital.

 

Fonte: IHU

 

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