sexta-feira, 8 de novembro de 2024

Os impactos da eleição de Donald Trump nas relações dos EUA com o Brasil e o mundo

Ao longo da corrida eleitoral pela Casa Branca, o presidente Lula chegou a declarar que "obviamente" torcia pela vitória da vice-presidente democrata Kamala Harris. Apesar das pesquisas indicarem um cenário indefinido, Trump foi o escolhido na maioria do país, inclusive nos sete estados-pêndulo decisivos para o resultado eleitoral.

A apuração segue em andamento nos Estados Unidos, mas assim que o candidato republicano Donald Trump conquistou os 270 delegados necessários para levar o pleito, começaram os novos arranjos da vida política dos Estados Unidos. Inclusive, um dos poucos aliados estrangeiros presentes na casa de Trump durante a madrugada desta quarta-feira (6) foi Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Horas após o anúncio da vitória, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), historicamente mais ligado ao Partido Democrata da vice-presidente, parabenizou Trump, enquanto o assessor especial Celso Amorim declarou que o governo brasileiro espera uma relação "pragmática". Mas o que esperar dos novos rumos trazidos pelo retorno do republicano à Casa Branca?

Rafael Ioris, professor de história e política da Universidade de Denver, lembra ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, que Lula e Trump não possuem "grandes afinidades políticas", antes mesmo de o bolsonarismo existir no Brasil.

"É difícil chamar o Partido Democrata de esquerda norte-americana. É muito mais de centro, quase centro-direita, mas é o que existe de mais próximo no sistema bipartidário dos Estados Unidos. Então existiam essas afinidades [entre democratas e o presidente Lula]. Houve uma interação com o presidente Joe Biden, mas não deu grandes frutos, até porque eu acho que o mundo se envolveu em disputas muito maiores. Mas havia uma simpatia entre os dois líderes. Por isso, era quase natural que o Lula preferisse que a Kamala ganhasse", explica.

O retorno de Trump ao poder pode ser um combustível para fortalecer a direita no Brasil, especialmente sob a figura do bolsonarismo, acredita o especialista.

"Houve uma aproximação muito forte entre Bolsonaro e Trump. É quase uma afinidade de indivíduos e famílias. A família Trump e a família Bolsonaro são uma concentração da direita nas Américas. É um pouco assim que ambos se veem. Então é bastante natural imaginar que Trump vai reforçar esse grupo no Brasil […] o Lula fica em uma situação um pouco difícil", diz.

Apesar dessa situação de "anormalidade política", aos moldes do que ocorreu com a eleição de Javier Milei na Argentina, o professor pontua que é possível haver negociação entre os dois países e manutenção do diálogo diplomático formal. A dúvida é em que grau podem se desdobrar projetos e parcerias.

"O Lula tenta se dar bem com todo mundo, porque é exatamente esse o discurso dele, que vê a aproximação com o BRICS e com o Sul Global não como ameaça para o Ocidente, o Norte Global, os Estados Unidos e a Europa. Esse é o discurso. Eu acho que ele realmente acredita que isso é possível. E isso foi possível na primeira década do governo do Lula. Hoje em dia, no mundo, é muito mais difícil manter essa postura. Mas eu acho que o Lula ainda está tentando manter isso […], só que acredito que o Trump vai pressionar e criar mais dificuldades para manter essa postura."

<><> Quais são os principais conflitos do mundo?

O retorno do republicano à Casa Branca após quatro anos também abriu questionamentos mundo afora a respeito de como o novo governo deve se portar em relação aos principais conflitos em curso no mundo. Isso por conta da participação ativa dos Estados Unidos, inclusive com financiamento e envio de armamentos pesados, em todos, desde o Oriente Médio até a Europa.

Entre os primeiros telefonemas de líderes mundiais recebidos por Trump, estava o do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, quando discutiram a "ameaça iraniana". Publicamente, o premiê israelense chegou a festejar a vitória republicana como "o maior retorno da história". Para o professor da Universidade de Denver, o cenário deve continuar sem grandes mudanças nos próximos meses na região, enquanto a situação das populações da Faixa de Gaza e do Líbano é cada vez pior em meios aos ataques de Tel Aviv.

"É muito difícil imaginar que Trump vá trazer algo novo, porque ele tem uma relação inclusive pessoal com Netanyahu. Há uma relação ideológica entre eles, que são líderes da direita mundial. O lobby pró-Israel na sociedade norte-americana também tem laços muito fortes dentro do Partido Republicano, assim como o Democrata", resume.

Já o doutor em relações internações pelo Programa San Tiago Dantas e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT/Ineu) Arturo Hartmann disse ao Mundioka que as atuais tensões entre Israel e o Irã devem se acentuar ainda mais sobre Trump.

"O genocídio continuaria com os democratas e, possivelmente, vai seguir com Trump. O que pode mudar nesse contexto é os EUA darem uma liberdade ainda maior e sustentação de Israel como força militar para agir contra o Irã. Quem começou a escalada diplomática contra o Teerã foi o republicano, antes do Biden", enfatizou.

Já com relação ao contínuo apoio norte-americano à Ucrânia, o regime de Vladimir Zelensky deve ver ruir a sustentação financeira e militar em meio ao conflito.

"Esse é o medo de Zelensky, de perder o incentivador e motor financeiro para o confronto seguir. Ao mesmo tempo, o próprio Trump tem declarado isso [de cortar a ajuda]."

O professor Rafael Ioris acrescenta ainda que a resolução da questão ucraniana também é colocada como crucial, até "por ter uma relação muito boa com [o presidente russo, Vladimir] Putin".

<><> Qual a relação entre a China e os EUA?

Também foi no governo Trump que a guerra comercial entre Estados Unidos e China se acentuou, com a tentativa norte-americana continuada na gestão Biden de dificultar a chegada dos produtos chineses ao país. Sobre Trump, a potência do Sul Global será colocada cada vez mais como uma "grande ameaça" aos norte-americanos, afirma Ioris.

"O país é visto como grande rival por conta da influência, do poderio econômico, diplomático e até mesmo militar. Então essa é a grande disputa", finaliza.

 

¨      "Trump é exatamente o que os EUA querem", conclui mídia alemã

Nas primeiras análises pós-eleição, imprensa alemã tenta entender os motivos da vitória de Trump e conclui que americanos veem nele a mudança pela qual anseiam.

<<<< Spiegel Online – Eles querem Trump

Harris era a antítese de Trump: uma mulher negra, uma política de carreira. Depois de um início bem-sucedido, a premissa de sua campanha eleitoral – de não fazer nada de errado – provavelmente deveria ter dado lugar a um plano de maior visibilidade: não se leva a melhor sobre o radical livre Trump repetindo sempre as mesmas fórmulas com um sorriso perfeito.

Porém, a nova vitória de Trump não pode ser explicada apenas pelos erros de Harris. Para a maioria dos americanos, mudança era o que eles mais queriam de seu próximo presidente. E, de acordo com as pesquisas, Trump tinha mais chances de incorporar essa mudança do que Harris.

Nesse caso, no entanto, mudança também significa que os eleitores de Trump não têm medo de tendências autoritárias, do iliberalismo que Trump cada vez mais representa. Talvez seja isso que eles queiram.

Isso também significa que eles não se importam se alguém – no caso, o presidente dos EUA – faça piadas racistas ou misóginas – ou as duas coisas juntas. Talvez eles achem isso engraçado.

<<<< Süddeutsche Zeitung – Donald Trump é exatamente o homem que os americanos querem 

A vitória de Donald Trump é tão esmagadora que, num primeiro momento, cala os críticos desse homem. Os americanos o elegeram seu presidente numa eleição democrática com uma maioria tão convincente que qualquer relativização com referência ao sistema, às mentiras ou ao caráter, à estupidez de supostos caipiras cai por terra. Este país queria Donald Trump e sua promessa de liderança e força. Os Estados Unidos queriam o radicalismo, a brutalidade e a clareza que Trump exala. Trump não é um acidente de percurso na história, o país tomou uma decisão consciente. O poder dele se baseia na vontade de uma maioria aterrorizante.

<<<< Frankfurter Allgemeine Zeitung – Por que Kamala perdeu para Trump  

Há semanas era evidente que um clima de mudança estava se espalhando pelos Estados Unidos. Muitos cidadãos lutam contra a inflação e veem seu país no rumo errado. O que não estava claro era se a vice-presidente Harris, de 60 anos, ou Trump, de 78 anos, que foi presidente de 2017 a 2021, encarnava melhor a mudança.

A resposta a essa pergunta foi clara: 41% disseram numa pesquisa pós-eleitoral que o republicano traria a mudança necessária. Apenas 14% atribuíam isso a Harris.

Ela aparentemente não conseguiu marcar pontos na questão eleitoral mais importante: a política econômica. Pelo contrário: os eleitores acreditam que o ex-empresário e milionário Trump é mais competente nessa área.

Isso também explica por que um grande número de latinos migrou para o campo republicano, um grupo de eleitores que, historicamente, costumava favorecer o campo democrata e cuja importância tem aumentado constantemente nos últimos anos. Enquanto pouco mais de 14 milhões de latinos estavam aptos a votar em 2000, esse número aumentou para mais de 36 milhões. Os latinos são agora o segundo maior grupo de eleitores entre os grupos étnicos, à frente dos negros.

<<<< Die Tageszeitung – Mas por quê? 

O que os democratas não quiseram ver: em quase todas as pesquisas pós-eleitorais, cerca de 70% dos entrevistados disseram estar insatisfeitos ou irritados com a situação do país. E eles não estão dizendo isso pela primeira vez, mas já há pelo menos dois anos.

Esse é um clamor por mudanças à luz do qual o tamanho da vitória de Trump até parece relativamente moderado. Explicar às pessoas que os números da economia são excelentes e que elas não deveriam estar assim não foi uma boa ideia. Com isso ninguém paga aluguel ou compra mantimentos.

 

¨      "Se europeus não se mexerem, Trump enfraquecerá a Otan", afirma Rubens Ricupero

Os desdobramentos da eleição de Donald Trump à presidência americana serão mais intensos e com consequências mais negativas para blocos como a União Europeia do que para países como o Brasil. Essa é a avaliação de Rubens Ricupero, ex-subsecretário-geral da ONU e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda.

"Ou assumem de fato, não de boca, a necessidade de ter uma política externa e de defesa comum efetiva, botando a mão no bolso para gastar em defesa, tornando-se menos dependentes do ‘guarda-chuva' de proteção dos americanos, ou vão ter de ceder frente aos russos na Ucrânia", disse o diplomata sobre as potenciais consequências para EU, em entrevista exclusiva à DW.

O diplomata também apontou que Trump, em seu caminho para vitória, captou com "intuição certeira" o descontentamento principalmente da população branca, mais pobre, menos instruída e menos qualificada dos EUA.

"As lideranças mundiais não foram capazes de superar a profunda insatisfação com o sistema político-econômico-social, a perda da esperança para os setores populares e intermediários, a absurda concentração da riqueza e da renda. Trump tampouco será capaz de fazer isso, mas ele parece ao menos encarnar a insatisfação", avalia Ricupero.

LEIA A ENTREVISTA:

  • Como o senhor avalia o resultado das eleições nos Estados Unidos desta semana?

Rubens Ricupero: Aumenta a incerteza na economia mundial. É um retrocesso na luta contra a mudança climática, mas as principais consequências serão sobretudo para os próprios norte-americanos, para o bem e para o mal. Em segundo lugar, será complicado para a Europa, muito mais que para o Brasil, por razões que explicarei em outra resposta.

<><> O que a eleição de Trump e a expressiva votação que ele recebeu indicam? 

Ele capta com intuição certeira o descontentamento da população norte-americana, em especial dos brancos mais pobres, menos instruídos, menos qualificados. Os democratas [que lançaram a candidata derrotada Kamal Harris] se converteram no partido da parcela mais educada da população, perderam o apoio popular e ficaram prisioneiros de agenda identitária de minorias.

<><> Poderia elaborar mais ...

Nem Biden, nem os demais líderes ocidentais, em especial na Europa, foram capazes de superar a profunda insatisfação com o sistema político-econômico-social, a perda da esperança para os setores populares e intermediários, a absurda concentração da riqueza e da renda. Trump tampouco será capaz de fazer isso, mas ele parece ao menos encarnar a insatisfação e a frustração com o status-quo.

<><> À época em que ocupou o cargo de secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), entre 1995 e 2004, o senhor fez um alerta sobre o risco da globalização para as desigualdades globais. A eleição de um líder personalista é reflexo deste alerta?

A crescente desigualdade é o problema de fundo que as sociedades ocidentais não se dispõem a enfrentar. Pior que os Estados Unidos, onde ao menos Biden tentou, me parece a situação da União Europeia, ancorada ainda numa política econômica liberal que só agrava as desigualdades.

<><> Como ficam perspectivas globais a partir desta eleição? 

Muito piores, incomparavelmente piores que para o Brasil, me parecem as perspectivas para a União Europeia. Finalmente, chega para os europeus em geral e para os alemães em particular a "hora da verdade": ou eles assumem de fato, não de boca, a necessidade de ter uma política externa e de defesa comum efetiva, botando a mão no bolso para gastar em defesa, tornando-se menos dependentes do "guarda-chuva" de proteção dos americanos, ou vão ter de ceder frente aos russos na Ucrânia. 

<><> E do ponto de vista da guerra na Ucrânia?

Esta, sem proteção, terá de ceder território e abrir mão da ideia de aderir à Otan. Aliás, se os europeus não se mexerem, Trump poderá enfraquecer a Aliança Atlântica em definitivo.

<><> E quanto ao Brasil e as relações bilaterais Brasil-Estados Unidos?

Para o Brasil, a situação não é tão perigosa. Não temos, nem a América do Sul, problemas de segurança externa, estamos muito longe da Rússia, Ucrânia, faixa de Gaza. Não dependemos de proteção militar norte-americana. O mercado dos EUA para as exportações brasileiras está longe de ter a importância do da China (28%) ou da Ásia como um todo (quase 50%). Muitas das exportações brasileiras aos EUA são manufaturas de empresas norte-americanas que investiram no Brasil.

<><> Que efeitos possíveis poderão, então, ocorrer?

Haverá consequências para exportações de aço, siderurgia em geral, como já ocorreu no mandato anterior de Trump. Para o comércio, as consequências serão mais de natureza global: vai se acentuar a tendência ao protecionismo e ao enfraquecimento da Organização Mundial de Comércio e suas regras.

 

Fonte: Sputnik Brasil/DW Brasil

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário