Os impactos da eleição de Donald Trump nas
relações dos EUA com o Brasil e o mundo
Ao longo da corrida
eleitoral pela Casa Branca, o presidente Lula chegou a declarar que
"obviamente" torcia pela vitória da vice-presidente democrata Kamala
Harris. Apesar das pesquisas indicarem um cenário indefinido, Trump foi o
escolhido na maioria do país, inclusive nos sete estados-pêndulo decisivos para
o resultado eleitoral.
A apuração segue em
andamento nos Estados Unidos, mas assim que o candidato republicano Donald
Trump conquistou os 270 delegados necessários para levar o pleito, começaram os
novos arranjos da vida política dos Estados Unidos. Inclusive, um dos poucos aliados
estrangeiros presentes na casa de Trump durante a madrugada desta quarta-feira
(6) foi Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do ex-presidente Jair
Bolsonaro (PL).
Horas após o anúncio
da vitória, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), historicamente mais
ligado ao Partido Democrata da vice-presidente, parabenizou Trump, enquanto o
assessor especial Celso Amorim declarou que o governo brasileiro espera uma relação
"pragmática". Mas o que esperar dos novos rumos trazidos pelo retorno
do republicano à Casa Branca?
Rafael Ioris,
professor de história e política da Universidade de Denver, lembra ao podcast
Mundioka, da Sputnik Brasil, que Lula e Trump não possuem "grandes
afinidades políticas", antes mesmo de o bolsonarismo existir no Brasil.
"É difícil chamar
o Partido Democrata de esquerda norte-americana. É muito mais de centro, quase
centro-direita, mas é o que existe de mais próximo no sistema bipartidário dos
Estados Unidos. Então existiam essas afinidades [entre democratas e o presidente
Lula]. Houve uma interação com o presidente Joe Biden, mas não deu grandes
frutos, até porque eu acho que o mundo se envolveu em disputas muito maiores.
Mas havia uma simpatia entre os dois líderes. Por isso, era quase natural que o
Lula preferisse que a Kamala ganhasse", explica.
O retorno de Trump ao
poder pode ser um combustível para fortalecer a direita no Brasil,
especialmente sob a figura do bolsonarismo, acredita o especialista.
"Houve uma
aproximação muito forte entre Bolsonaro e Trump. É quase uma afinidade de
indivíduos e famílias. A família Trump e a família Bolsonaro são uma
concentração da direita nas Américas. É um pouco assim que ambos se veem. Então
é bastante natural imaginar que Trump vai reforçar esse grupo no Brasil […] o
Lula fica em uma situação um pouco difícil", diz.
Apesar dessa situação
de "anormalidade política", aos moldes do que ocorreu com a eleição
de Javier Milei na Argentina, o professor pontua que é possível haver
negociação entre os dois países e manutenção do diálogo diplomático formal. A
dúvida é em que grau podem se desdobrar projetos e parcerias.
"O Lula tenta se
dar bem com todo mundo, porque é exatamente esse o discurso dele, que vê a
aproximação com o BRICS e com o Sul Global não como ameaça para o Ocidente, o
Norte Global, os Estados Unidos e a Europa. Esse é o discurso. Eu acho que ele realmente
acredita que isso é possível. E isso foi possível na primeira década do governo
do Lula. Hoje em dia, no mundo, é muito mais difícil manter essa postura. Mas
eu acho que o Lula ainda está tentando manter isso […], só que acredito que o
Trump vai pressionar e criar mais dificuldades para manter essa postura."
<><> Quais
são os principais conflitos do mundo?
O retorno do
republicano à Casa Branca após quatro anos também abriu questionamentos mundo
afora a respeito de como o novo governo deve se portar em relação aos
principais conflitos em curso no mundo. Isso por conta da participação ativa
dos Estados Unidos, inclusive com financiamento e envio de armamentos pesados,
em todos, desde o Oriente Médio até a Europa.
Entre os primeiros
telefonemas de líderes mundiais recebidos por Trump, estava o do
primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, quando discutiram a
"ameaça iraniana". Publicamente, o premiê israelense chegou a
festejar a vitória republicana como "o maior retorno da história".
Para o professor da Universidade de Denver, o cenário deve continuar sem
grandes mudanças nos próximos meses na região, enquanto a situação das
populações da Faixa de Gaza e do Líbano é cada vez pior em meios aos ataques de
Tel Aviv.
"É muito difícil
imaginar que Trump vá trazer algo novo, porque ele tem uma relação inclusive
pessoal com Netanyahu. Há uma relação ideológica entre eles, que são líderes da
direita mundial. O lobby pró-Israel na sociedade norte-americana também tem
laços muito fortes dentro do Partido Republicano, assim como o Democrata",
resume.
Já o doutor em
relações internações pelo Programa San Tiago Dantas e pesquisador do Instituto
Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos
(INCT/Ineu) Arturo Hartmann disse ao Mundioka que as atuais tensões entre
Israel e o Irã devem se acentuar ainda mais sobre Trump.
"O genocídio
continuaria com os democratas e, possivelmente, vai seguir com Trump. O que
pode mudar nesse contexto é os EUA darem uma liberdade ainda maior e
sustentação de Israel como força militar para agir contra o Irã. Quem começou a
escalada diplomática contra o Teerã foi o republicano, antes do Biden",
enfatizou.
Já com relação ao
contínuo apoio norte-americano à Ucrânia, o regime de Vladimir Zelensky deve
ver ruir a sustentação financeira e militar em meio ao conflito.
"Esse é o medo de
Zelensky, de perder o incentivador e motor financeiro para o confronto seguir.
Ao mesmo tempo, o próprio Trump tem declarado isso [de cortar a ajuda]."
O professor Rafael
Ioris acrescenta ainda que a resolução da questão ucraniana também é colocada
como crucial, até "por ter uma relação muito boa com [o presidente russo,
Vladimir] Putin".
<><> Qual
a relação entre a China e os EUA?
Também foi no governo
Trump que a guerra comercial entre Estados Unidos e China se acentuou, com a
tentativa norte-americana continuada na gestão Biden de dificultar a chegada
dos produtos chineses ao país. Sobre Trump, a potência do Sul Global será colocada
cada vez mais como uma "grande ameaça" aos norte-americanos, afirma
Ioris.
"O país é visto
como grande rival por conta da influência, do poderio econômico, diplomático e
até mesmo militar. Então essa é a grande disputa", finaliza.
¨
"Trump é
exatamente o que os EUA querem", conclui mídia alemã
Nas primeiras análises
pós-eleição, imprensa alemã tenta entender os motivos da vitória de Trump e
conclui que americanos veem nele a mudança pela qual anseiam.
<<<<
Spiegel Online – Eles querem Trump
Harris era a antítese de Trump: uma mulher negra, uma política de carreira. Depois de um
início bem-sucedido, a premissa de sua campanha eleitoral – de não fazer nada
de errado – provavelmente deveria ter dado lugar a um plano de maior
visibilidade: não se leva a melhor sobre o radical livre Trump repetindo sempre
as mesmas fórmulas com um sorriso perfeito.
Porém, a nova vitória de Trump não
pode ser explicada apenas pelos erros de Harris. Para a maioria dos americanos,
mudança era o que eles mais queriam de seu próximo presidente. E, de acordo com
as pesquisas, Trump tinha mais chances de incorporar essa mudança do que
Harris.
Nesse caso, no
entanto, mudança também significa que os eleitores de Trump não têm medo de
tendências autoritárias, do iliberalismo que Trump cada vez mais representa.
Talvez seja isso que eles queiram.
Isso também significa
que eles não se importam se alguém – no caso, o presidente dos EUA – faça
piadas racistas ou misóginas – ou as duas coisas juntas. Talvez eles achem isso
engraçado.
<<<<
Süddeutsche Zeitung – Donald Trump é exatamente o homem que os
americanos querem
A vitória de Donald
Trump é tão esmagadora que, num primeiro momento, cala os críticos desse homem.
Os americanos o elegeram seu presidente numa eleição democrática com uma
maioria tão convincente que qualquer relativização com referência ao sistema,
às mentiras ou ao caráter, à estupidez de supostos caipiras cai por terra. Este
país queria Donald Trump e sua promessa de liderança e força. Os Estados Unidos
queriam o radicalismo, a brutalidade e a clareza que Trump exala. Trump não é
um acidente de percurso na história, o país tomou uma decisão consciente. O
poder dele se baseia na vontade de uma maioria aterrorizante.
<<<<
Frankfurter Allgemeine Zeitung –
Por que Kamala perdeu para Trump
Há semanas era evidente
que um clima de mudança estava se espalhando pelos Estados Unidos. Muitos
cidadãos lutam contra a inflação e veem seu país no rumo errado. O que não
estava claro era se a vice-presidente Harris, de 60 anos, ou Trump, de 78 anos,
que foi presidente de 2017 a 2021, encarnava melhor a mudança.
A resposta a essa
pergunta foi clara: 41% disseram numa pesquisa pós-eleitoral que o republicano
traria a mudança necessária. Apenas 14% atribuíam isso a Harris.
Ela aparentemente não
conseguiu marcar pontos na questão eleitoral mais importante: a política
econômica. Pelo contrário: os eleitores acreditam que o ex-empresário e
milionário Trump é mais competente nessa área.
Isso também explica
por que um grande número de latinos migrou para o campo republicano, um grupo
de eleitores que, historicamente, costumava favorecer o campo democrata e cuja
importância tem aumentado constantemente nos últimos anos. Enquanto pouco mais
de 14 milhões de latinos estavam aptos a votar em 2000, esse número aumentou
para mais de 36 milhões. Os latinos são agora o segundo maior grupo de
eleitores entre os grupos étnicos, à frente dos negros.
<<<<
Die Tageszeitung – Mas por
quê?
O que os democratas
não quiseram ver: em quase todas as pesquisas pós-eleitorais, cerca de 70% dos
entrevistados disseram estar insatisfeitos ou irritados com a situação do país.
E eles não estão dizendo isso pela primeira vez, mas já há pelo menos dois anos.
Esse é um clamor por
mudanças à luz do qual o tamanho da vitória de Trump até parece relativamente
moderado. Explicar às pessoas que os números da economia são excelentes e que
elas não deveriam estar assim não foi uma boa ideia. Com isso ninguém paga aluguel
ou compra mantimentos.
¨
"Se europeus não
se mexerem, Trump enfraquecerá a Otan", afirma Rubens Ricupero
Os desdobramentos da
eleição de Donald Trump à presidência americana serão mais intensos e com
consequências mais negativas para blocos como a União Europeia do que para
países como o Brasil. Essa é a avaliação de Rubens Ricupero,
ex-subsecretário-geral da ONU e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda.
"Ou assumem de
fato, não de boca, a necessidade de ter uma política externa e de defesa comum
efetiva, botando a mão no bolso para gastar em defesa, tornando-se menos
dependentes do ‘guarda-chuva' de proteção dos americanos, ou vão ter de ceder
frente aos russos na Ucrânia", disse o diplomata sobre as potenciais
consequências para EU, em entrevista exclusiva à DW.
O diplomata também
apontou que Trump, em seu caminho para vitória, captou com "intuição
certeira" o descontentamento principalmente da população branca, mais
pobre, menos instruída e menos qualificada dos EUA.
"As lideranças
mundiais não foram capazes de superar a profunda insatisfação com o sistema
político-econômico-social, a perda da esperança para os setores populares e
intermediários, a absurda concentração da riqueza e da renda. Trump tampouco
será capaz de fazer isso, mas ele parece ao menos encarnar a
insatisfação", avalia Ricupero.
LEIA A ENTREVISTA:
- Como o senhor avalia o resultado das eleições nos Estados
Unidos desta semana?
Rubens
Ricupero: Aumenta a incerteza na economia mundial. É
um retrocesso na luta contra a mudança climática, mas as principais
consequências serão sobretudo para os próprios norte-americanos, para o bem e
para o mal. Em segundo lugar, será complicado para a Europa, muito mais que
para o Brasil, por razões que explicarei em outra resposta.
<><>
O que a eleição de Trump e a expressiva votação que ele recebeu indicam?
Ele capta com intuição
certeira o descontentamento da população norte-americana, em especial dos
brancos mais pobres, menos instruídos, menos qualificados. Os democratas [que
lançaram a candidata derrotada Kamal Harris] se converteram no partido da parcela
mais educada da população, perderam o apoio popular e ficaram prisioneiros de
agenda identitária de minorias.
<><>
Poderia elaborar mais ...
Nem Biden, nem os
demais líderes ocidentais, em especial na Europa, foram capazes de superar a
profunda insatisfação com o sistema político-econômico-social, a perda da
esperança para os setores populares e intermediários, a absurda concentração da
riqueza e da renda. Trump tampouco será capaz de fazer isso, mas ele parece ao
menos encarnar a insatisfação e a frustração com o status-quo.
<><>
À época em que ocupou o cargo de secretário-geral da Conferência das Nações
Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), entre 1995 e 2004, o senhor
fez um alerta sobre o risco da globalização para as desigualdades globais. A
eleição de um líder personalista é reflexo deste alerta?
A crescente
desigualdade é o problema de fundo que as sociedades ocidentais não se dispõem
a enfrentar. Pior que os Estados Unidos, onde ao menos Biden tentou, me parece
a situação da União Europeia, ancorada ainda numa política econômica liberal
que só agrava as desigualdades.
<><>
Como ficam perspectivas globais a partir desta eleição?
Muito piores,
incomparavelmente piores que para o Brasil, me parecem as perspectivas para a
União Europeia. Finalmente, chega para os europeus em geral e para os alemães
em particular a "hora da verdade": ou eles assumem de fato, não de
boca, a necessidade de ter uma política externa e de defesa comum efetiva,
botando a mão no bolso para gastar em defesa, tornando-se menos dependentes do
"guarda-chuva" de proteção dos americanos, ou vão ter de ceder frente
aos russos na Ucrânia.
<><>
E do ponto de vista da guerra na Ucrânia?
Esta, sem proteção,
terá de ceder território e abrir mão da ideia de aderir à Otan. Aliás, se os
europeus não se mexerem, Trump poderá enfraquecer a Aliança Atlântica em
definitivo.
<><>
E quanto ao Brasil e as relações bilaterais Brasil-Estados Unidos?
Para o Brasil, a
situação não é tão perigosa. Não temos, nem a América do Sul, problemas de
segurança externa, estamos muito longe da Rússia, Ucrânia, faixa de Gaza. Não
dependemos de proteção militar norte-americana. O mercado dos EUA para as
exportações brasileiras está longe de ter a importância do da China (28%) ou da
Ásia como um todo (quase 50%). Muitas das exportações brasileiras aos EUA são
manufaturas de empresas norte-americanas que investiram no Brasil.
<><>
Que efeitos possíveis poderão, então, ocorrer?
Haverá consequências
para exportações de aço, siderurgia em geral, como já ocorreu no mandato
anterior de Trump. Para o comércio, as consequências serão mais de natureza
global: vai se acentuar a tendência ao protecionismo e ao enfraquecimento da
Organização Mundial de Comércio e suas regras.
Fonte: Sputnik
Brasil/DW Brasil
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