O dever da desesperança e o xeque-mate no
Cirismo
O objetivo do presente
texto é refletir sobre o que representou o fenômeno político do Cirismo nos
últimos anos. Dentro dessa representação, busco discutir as potencialidades
(não confirmadas, infelizmente) do fenômeno e, principalmente, seus limites. Digo
infelizmente porque, pessoalmente, votei em Ciro Gomes (PDT) nas últimas duas
eleições presidenciais, tendo em 2018 uma participação ativa naquela campanha.
Participação esta que não se repetiu em 2022, apesar de ter depositado meu voto
no paulista radicado no Ceará. Não me arrependo, pois continuo mantendo minha
análise de que Ciro Gomes representou uma candidatura à esquerda do Petismo.
Mesmo sem ter uma
estética política de esquerda, muito vinculada ao vermelho do PT e ao diálogo
com movimentos sociais, ao analisar o plano de governo de Ciro Gomes/Fernando
Haddad em 2018 e Ciro Gomes/Lula em 2022, fica muito claro que o candidato
pedetista representava um perigo maior à hegemonia neoliberal que se instalou
no país após o processo de redemocratização. Representava uma ameaça
revolucionária? Definitivamente, não. Mas aliava propostas e retórica crítica a
vários setores da burguesia, principalmente o setor rentístico. Setor este, por
definição, protagonista do neoliberalismo ou do que alguns chamam de
capitalismo dependente rentístico. Isso fazia de Ciro Gomes um potencial
estimulador do conflito político, caso chegasse ao Poder Executivo e colocasse
de fato suas ideias em prática. A defesa da construção de plebiscitos,
defendida por Ciro Gomes nas eleições presidenciais em 2022, evidencia muito
bem essa potencialidade.
E não é de hoje que
Ciro Gomes representa essa crítica ao neoliberalismo, mesmo sem propor soluções
radicais de rompimento político com o status quo. Vale lembrar que nas eleições
presidenciais de 1998 e 2002 ele já se apresentava como um candidato crítico do
neoliberalismo. Inclusive, recebeu apoio em 2002 de Leonel Brizola, figura
política que morreu crítica dos caminhos trilhados pelo PT já durante seu
primeiro governo. A grande diferença é que Ciro Gomes, diferentemente de Lula,
nunca desenvolveu uma base social ou conseguiu construir um partido político em
que conseguisse inserção social de suas ideias com algum sucesso eleitoral. Até
tentou no PDT, mas fracassou na tarefa. O xeque-mate foi dado nessas eleições
municipais, onde seus apoiadores perderam Fortaleza, Sobral e o PDT encolheu em
todo o estado do Ceará. Isso acabou desaguando em uma atuação e discurso
puramente técnico, sem os elementos estéticos que tanto influenciam no modo de
fazer política atualmente, e sem uma base política alicerçada que permitisse a
ele colocar em prática suas bandeiras.
Sobre o Cirismo, quero
pontuar que uso o termo sem um crivo científico baseado em pesquisas. Ainda não
encontrei pesquisas acadêmicas sobre esse fenômeno político, diferente de
outros como “Lulismo”, “Brizolismo”, “Varguismo”, “Peronismo” etc. Esses últimos,
sim, com vasta bibliografia definindo e caracterizando o fenômeno. Dentro dos
limites do texto, caracterizo Cirismo como um fenômeno político que se
desenvolveu em torno da figura Ciro Gomes. Um fenômeno com alguma repercussão
eleitoral e, principalmente, repercussão ideológica dentro do que chamamos
difusamente de “campo progressista” e/ou “centro-esquerda”. O livro “Projeto
Nacional: o dever da esperança” de 2020 é um exemplo de como Ciro Gomes buscou
debater e influir sobre os rumos do país.
Gostando ou não, Ciro
Gomes é uma figura política relevante na chamada Nova República.
Passou pelos cargos de
prefeito, governador, deputado estadual, deputado federal, ministro etc.
Participou de quatro eleições presidenciais, tendo certa relevância nos pleitos
de 1998 e 2018, quando chegou na terceira posição. Porém, mais do que ocupar cargos
Ciro Gomes também mostra sua relevância nos debates que incentivou. Dentro dos
limites da democracia burguesa e se apresentando ideologicamente muito
vinculado a um keynesianismo, sempre se mostrou um político minimamente crítico
da realidade e com bastante conhecimento da formação social, histórica e
econômica do Brasil.
Diferente do que
muitos pensam, Ciro Gomes foi um aliado histórico do Petismo desde 1989, porém,
sem abdicar de sua independência. Já o fenômeno político do Cirismo em si
começa a ganhar mais corpo, alcance e representatividade diante do contexto do
Governo Temer; figura política bastante criticada por Ciro Gomes, ainda quando
era aliado do PT. A partir da sua oposição a Michel Temer, entre idos de 2016 e
2017, Ciro Gomes começa a peregrinar em palestras mostrando suas ideias para um
público universitário. Tais palestras foram ganhando popularidade diante das
redes sociais, espaço que Ciro Gomes não encontrou nas campanhas de 1998 e
2002, e logo seu nome surgiu como opção para as eleições presidenciais em 2018.
O partido escolhido foi o PDT (seu sétimo partido) e logo passou a abraçar a
tradição política trabalhista (baseada em figuras como Getúlio Vargas, João
Goulart e Leonel Brizola) como uma espécie de memória política a ser resgatada.
A partir daí ele retorna ao debate político nacional, espaço que não esteve
muito presente após as eleições presidenciais em 2002.
Trazendo de volta o
discurso trabalhista, mesmo que de forma difusa, o Cirismo foi se configurando
como um campo político crítico do Petismo e sem adesão ao projeto econômico
neoliberal. Se mostrava como uma via mais crítica que o Petismo, porém, repetindo
algumas ilusões do mesmo como a aliança política com setores da burguesia como
o latifúndio (vale lembrar que a vice de Ciro Gomes em 2018 foi a latifundiária
Kátia Abreu, ex-ministra de Dilma Rousseff). De qualquer modo, construía um
discurso crítico a outros setores dessa burguesia que o Petismo já se colocava
como aliado convicto: aqui falo, especificamente, dos bancos que Lula sempre se
orgulhou de terem lucrado muito durante seus governos.
Junto a isso, o
Cirismo buscou trazer de volta debates esquecidos após a redemocratização. O
último suspiro teria sido justamente Brizola. Surgem noções esquecidas pelo
Petismo, como a ideia de “projeto nacional”. Uma rememoração do
nacional-desenvolvimentismo do século 20, secundarizado por aqueles que não
avançaram nas reformas de base propostas em 1964; não reverteram privatizações
do Governo FHC; encheram de dinheiro os barões da educação via PROUNI/FIES e
aplicaram (e atualmente ainda aplicam) política de ajuste fiscal etc. O Brasil
do Petismo virou o país das políticas sociais de cunho superficial (mesmo
várias delas tendo relevância para o cotidiano das pessoas), mas sem realizar
ou propor enfrentamentos mais amplos. Continuamos um país essencialmente
agroexportador, tendo o PIB puxado pelo agronegócio, sem passos para uma
industrialização que só seria realizada via combate à lógica rentística. O
Cirismo buscou resgatar essa solução industrializante com base em um
“progressismo genuinamente brasileiro”; termo usado pelo próprio Ciro Gomes no
livro citado.
Esse papel de crítico
ao petismo, sem rendição ao neoliberalismo, ajudou a enriquecer e diversificar
o debate dentro do “campo progressista”. O PDT, por exemplo, conseguiu oxigenar
sua juventude muito por conta da atuação desse Cirismo nos últimos anos. O
Trabalhismo Brasileiro enquanto corrente política voltou a ser mencionado,
mesmo que individualmente ache Ciro Gomes muito mais próximo de um Juscelino
Kubitschek do que de um Brizola. Porém, o orquestrado ataque a sua figura
política feita pelo Petismo junto com decisões políticas errôneas (como a
condução de Ciro Gomes no 2º turno de 2018 e 2022), isolaram a figura de Ciro
Gomes e transformou o fenômeno político do Cirismo em uma possibilidade
histórica que não se firmou na realidade.
Enquanto fenômeno
político e eleitoral, o Cirismo cumpriu por um período curto o papel de
criticar o Petismo sem rendição à hegemonia neoliberal. Entretanto, não
conseguiu criar bases sólidas no PDT que na primeira oportunidade abandonou a
campanha de Ciro Gomes em 2022 e apoiou em massa a candidatura Lula sob o
discurso de “combate ao fascismo”. Diante disso, a figura política de Ciro
Gomes não reagiu bem a esses impasses e acabou enveredando para um antipetismo
de cunho moralista e superficial. Infelizmente, Ciro Gomes não conseguiu
entender que existe um abismo entre criticar o Petismo e aderir a um
antipetismo infrutífero que se mostrou nas atuais eleições municipais em um
apoio velado a uma candidatura bolsonarista em Fortaleza. Faltou ao Cirismo o
equilíbrio entre criticar o Petismo (e ser independente dele formando quadros
jovens que liderassem esse processo de renovação) e não acenar politicamente
para o outro lado.
A falta de base
social, ausência de estrutura partidária, campanhas difamatórias e decisões
políticas equivocadas fizeram o Cirismo migrar do dever da esperança para a
desesperança de quem tinha elementos, mas não conseguiu articular em força
política real e qualificada. Uma corrente que busque ser hoje uma alternativa
ao Petismo deve buscar o equilíbrio de criticar ferozmente as limitações do PT
sem qualquer tipo de desvios à direita. As críticas brizolistas ao PT nos anos
1980 e 1990, por exemplo, não fizeram o gaúcho acenar para o PSDB.
Ao não seguir o que
diz continuar, o Cirismo se enfraquece e tende ao desaparecimento enquanto
fenômeno político com alguma capilaridade social. Uma lástima porque parecia
apresentar algumas potencialidades. Quem sai fortalecido com esse
enfraquecimento é o Petismo, ainda hegemônico e engolindo cada vez mais
partidos, movimentos, intelectuais e figuras políticas do chamado “campo
progressista” com a desculpa do “combate à extrema-direita”. Sem a diversidade
do debate e com a ausência completa de criticidade, eles dominam e seguem
implantando um neoliberalismo com muito amor e pintado de vermelho.
Fonte: Itamá
Nascimento, no Correio da Cidadania
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