sábado, 30 de novembro de 2024

Marcello Musto: A genealogia do conceito de capitalismo

A palavra capitalismo raramente foi usada por Marx, e também estava ausente dos primeiros grandes clássicos da economia política

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Embora Karl Marx seja considerado o principal crítico do capitalismo, ele raramente usou esse termo. A palavra também estava ausente dos primeiros grandes clássicos da economia política. Não só não tinha lugar nas obras de Adam Smith e David Ricardo, como também não foi usado nem por John Stuart Mill nem pela geração de economistas contemporâneos de Marx. Eles usaram o termo capital — comum desde o século XIII – mas não o termo capitalismo, que dele se deriva.

O termo capitalismo não apareceu até meados do século XIX. Era uma palavra usada principalmente por aqueles que se opunham à ordem existente das coisas, o qual tinha ademais uma conotação muito mais política do que econômica. Alguns pensadores socialistas foram os primeiros a usar essa palavra, sempre de forma depreciativa. Na França, em uma reedição da famosa obra L’organisation du travail, Louis Blanc argumentou que a apropriação do capital – e, através do próprio capital, do poder político – era monopolizada pelas classes abastadas.

Estas classes o concentraram em suas próprias mãos e, assim, restringiram o acesso a ele para outras classes sociais. Longe de tentar derrubar as bases econômicas da sociedade burguesa, Louis Blanc se declarou a favor da “supressão do capitalismo, mas não do capital”. Na Alemanha, o economista Albert Schäffle, ridicularizado com o epíteto de “socialista de poltrona”, em seu livro Capitalismo e socialismo, defendeu reformas do Estado para aliviar os amargos conflitos que se espalhavam amplamente, devido à “hegemonia do capitalismo”.

Desde seu primeiro uso, não havia uma definição compartilhada do conceito de capitalismo. Porém, essa dificuldade mudou mais tarde, quando o termo se espalhou amplamente e ganhou popularidade. As obras Capitalismo moderno, de Werner Sombart, e A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber, ambas publicadas no início do século XX, destinavam-se a mostrar – apesar de algumas diferenças – a essência do capitalismo no espírito de iniciativa, no cálculo racional frio e na busca sistemática do benefício pessoal.

Elas contribuíram muito para a popularização deste termo. No entanto, foi sobretudo graças à difusão da crítica marxista da sociedade que a palavra capitalismo – à qual a Enciclopédia Britânica não dedicou um verbete até 1922 – adquiriu um cartão de cidadania nas ciências sociais.

Além disso, depois de ter sido deixado à margem, se não explicitamente rejeitado, pelo discurso teórico das principais correntes da economia política, foi por meio da obra de Marx que o conceito de capitalismo ganhou centralidade mesmo nessa disciplina. Em vez de ser concebido como sinônimo de prática decisória política destinada a beneficiar as classes dominantes, por meio de Marx adquiriu o significado de um sistema específico de produção, baseado na propriedade privada das fábricas e na criação de mais-valia.

A contribuição involuntária de Marx para a propagação do termo “capitalismo” foi, de certa forma, paradoxal. Totalmente ausente dos livros que publicou, mesmo em seus manuscritos o termo Kapitalismus foi usado muito esporadicamente. Ele só apareceu em cinco ocasiões, sempre en passant, e sem que ele nunca fornecesse uma descrição específica da expressão. Marx provavelmente considerou que essa noção não estava suficientemente focada na economia política, mas, ao contrário, estava ligada a uma crítica da sociedade que era mais moral do que científica. De fato, quando teve que escolher o título de sua magnum opus, optou pelo uso do termo “capital” e não por “capitalismo”.

Em vez dessa palavra, ele preferiu outras que considerava mais apropriadas para definir o sistema econômico e social existente. Nos Grundrisse, ele se referiu ao “modo de produção do capital”, enquanto alguns anos depois, começando com os Manuscritos Econômicos de 1861-63, ele adotou a fórmula “modo de produção capitalista”. Essa expressão também aparece no Primeiro Livro de O capital, cujo famoso parágrafo inicial diz: “A riqueza das sociedades nas quais predomina o modo de produção capitalista aparece como uma imensa coleção de mercadorias”. A partir de então, na tradução francesa, bem como na segunda edição alemã, do Volume I de O capital, Marx também usou a fórmula “sistema capitalista”. Ele o repetiu nos rascunhos preliminares da famosa carta a Vera Zasulich em 1881.

Nesses e em vários outros escritos sobre a crítica da economia política, Karl Marx não forneceu uma definição concisa e sistemática do que era o modo de produção capitalista. O modus operandi do capitalismo só pode ser plenamente compreendido conectando as múltiplas descrições de sua dinâmica contidas em O capital.

No Volume I, Marx afirmou que “o traço característico da época capitalista é o fato de que a força de trabalho também assume a forma de uma mercadoria pertencente ao próprio trabalhador, enquanto seu trabalho assume a forma de trabalho assalariado”. A diferença crucial com o passado é que os trabalhadores não vendem os produtos de seu trabalho – que no capitalismo não são mais sua propriedade – mas o seu próprio trabalho.

Para Marx, o processo de produção capitalista se baseia na separação da força de trabalho e das condições de trabalho, condição que o capitalismo “reproduz e perpetua” para garantir a exploração permanente do proletariado. Este modo de produção “obriga o trabalhador a vender constantemente sua força de trabalho para viver e constantemente permite que o capitalista a compre para enriquecer”.

Além disso, Marx enfatizou que o capitalismo difere de todos os modos anteriores de organização produtiva por outra razão peculiar. Consiste na “unidade do processo de trabalho e do processo de criação de valor”. Ele descreveu o processo de produção capitalista como um modo de produção que tem uma natureza dupla: “por um lado, é um processo de trabalho social para a fabricação de um produto, por outro lado, é um processo de valorização do capital”.

O que impulsiona o modo de produção capitalista “não é o valor de uso ou o prazer, mas o valor de troca e [sua] multiplicação”. O capitalista foi descrito por Marx como um “fanático da valorização do valor”, um ser que “obriga inescrupulosamente a humanidade a produzir por produzir”.

Dessa forma, o modo de produção capitalista gera a expansão e concentração do proletariado, juntamente com um nível sem precedentes de exploração da força de trabalho.

Finalmente, embora certamente se concentre na economia, a análise de Marx do sistema capitalista não foi direcionada exclusivamente às relações de produção, mas constituiu uma crítica abrangente da sociedade burguesa que incluía a dimensão política, as relações sociais, as estruturas jurídicas e a ideologia, bem como as implicações que elas determinam em cada indivíduo.

Portanto, ele não considerava o capital como “uma coisa, mas como uma relação social específica de produção, pertencente a uma formação histórica específica da sociedade”. Portanto, não é eterno e pode ser substituído – através da luta de classes – por uma organização socioeconômica diferente.

 

¨      Era pós-liberal: filósofo Dugin explica peculiaridades da época que marca 'o fim do Ocidente'

Este artigo é o quarto de um ciclo que revela a opinião do famoso filósofo russo Aleksandr Dugin sobre o caminho e o futuro da época em que vivemos e em que vamos viver.

Acontece que estamos entrando em uma era pós-liberal. Entretanto, essa era pós-liberal não coincide de forma alguma com as expectativas do marxismo comunista. Em primeiro lugar, o movimento socialista em escala global entrou em colapso, e seus postos avançados – a União Soviética (URSS) e a China – abandonaram as formas ortodoxas e adotaram o modelo liberal em maior ou menor grau. E, em segundo lugar, a principal força motriz responsável pelo colapso do liberalismo foram os valores tradicionais e as identidades civilizacionais profundas.

A humanidade supera o liberalismo não por meio de uma fase socialista, materialista e tecnológica, mas por meio da reativação de estratos culturais que a Modernidade ocidental considerava superados, desaparecidos, abolidos, ou seja, mais por meio da Pré-modernidade, que afinal não foi destruída, do que por meio da Pós-modernidade, que é completamente derivada da Modernidade ocidental. O Pós-liberalismo acaba sendo bem diferente do que o pensamento progressista de esquerda imaginava que fosse.

O Pós-liberalismo geralmente coloca entre parênteses a era do domínio ocidental na Idade Moderna, considerando-a apenas um fenômeno temporário, um estágio em que não há nada de geral e universal. Uma determinada cultura, que se baseia na força bruta e no uso agressivo da tecnologia, alcançou por um certo período de tempo seu domínio em escala planetária, tentando tornar seus fundamentos, técnicas, métodos e objetivos universais. Assim começou a história do império mais bem-sucedido do mundo. Porém, depois de mais de cinco séculos, a hegemonia do Ocidente chegou ao fim, e a humanidade voltou (apenas está voltando ainda) às condições que em geral caracterizavam a era que precedeu a brusca ascensão do Ocidente.

O liberalismo, por outro lado, se tornou historicamente a última forma de imperialismo planetário do Ocidente, absorvendo todos os princípios básicos da modernidade europeia e levando-os às suas últimas conclusões lógicas: política de gênero, woke (cultura), cancel culture (cultura do cancelamento), teorias raciais críticas, transgenerismo, quadrobics, pós-humanismo, pós-modernismo e "ontologia orientada a objetos". O fim do momento liberal é mais do que apenas o fim do momento liberal. É o fim do domínio exclusivo do Ocidente sobre a humanidade. É o fim do Ocidente.

 

¨      G20 deve acabar com a “terceirização” do multilateralismo. Por CP Chandrasekhar e Charles A. Abugre

De várias maneiras, o multilateralismo, ou o esforço da comunidade internacional para promover o bem global, está sendo desafiado atualmente. Os ‘conflitos’, especialmente os que acontecem em Gaza, são um desafio evidente. No entanto, há também uma subversão silenciosa do multilateralismo em andamento no campo econômico, que precisa ser interrompida e revertida. Trata-se da visão de que o ‘desafio do financiamento para o desenvolvimento’ é tão grande e a participação do setor privado na detenção e no uso dos superávits financeiros globais é tão significativa que apenas a iniciativa privada pode implementar com sucesso os programas necessários para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e enfrentar a mudança climática.

A consequência disso é que o papel dos governos não é mais tentar transferir os superávits do setor privado para o setor público (por meio de novas formas de cooperação tributária internacional, por exemplo), mas usar os recursos públicos disponíveis para desbloquear investimentos e gastos privados. A proposta é ir além de reconhecer que a realização dos ODS, a garantia da transição para o carbono necessária e a construção de resiliência em todo o mundo são responsabilidades primárias dos governos ou “públicas”, para enfatizar que a cooperação entre os governos (ou o multilateralismo) é o melhor meio para implementar essas tarefas. O pragmatismo exige, argumenta-se, que essas tarefas e, portanto, o multilateralismo, sejam “terceirizados”.

Em nenhum lugar essa visão é expressa de maneira mais clara do que no campo do financiamento para o desenvolvimento sustentável. Um requisito fundamental do multilateralismo na esfera econômica é a necessidade de transferir recursos dos países ricos e desenvolvidos para os países menos desenvolvidos, a fim de financiar a mitigação, a adaptação e a compensação por perdas e danos, e para viabilizar os enormes gastos necessários para concretizar os ODS como fundamento da luta pela paz. A magnitude dessa demanda aparece, por exemplo, no valor, reivindicado na cúpula da COP29, em Baku, de US$ 1,3 trilhão por ano até 2030, de financiamento necessário para os países menos desenvolvidos, que deve fluir dos governos dos países desenvolvidos, principalmente na forma de subsídios e financiamentos concessionais.

O caso dos fluxos de recursos dos países desenvolvidos para os menos desenvolvidos já é bem conhecido e amplamente apoiado. Devido à contribuição historicamente desproporcional dos países de alta renda para as emissões de carbono globais e ao princípio aceito no Acordo de Paris de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas, e capacidades respectivas”, esses países devem assumir a maior parte da responsabilidade para financiar a transição para uma economia de baixo carbono, necessária para alcançar a meta de manter o aquecimento global abaixo do teto de 1,5°C ou 2,0°C.

Além disso, uma vez que esses gastos, na maioria das áreas, provavelmente não gerarão retornos monetários significativos, mas entregarão grandes benefícios sociais, o empréstimo com juros não pode ser uma forma viável de financiamento. Daí a necessidade de que esses recursos venham de fluxos públicos, na forma de subsídios ou empréstimos concessionais, que em grande parte sejam equivalentes a subsídios. Essa exigência também se aplica às necessidades de financiamento para os ODS. Em ambos os casos — financiamento climático e para os ODS —, as necessidades dos países menos desenvolvidos, muitos dos quais estão endividados ou já deixaram de pagar suas dívidas externas, são tão grandes que não se pode esperar que eles levantem os recursos necessários internamente.

O empréstimo não é uma opção. Esses países já estão em uma posição em que os déficits crônicos na balança de pagamentos tornaram impossível suportar o peso da dívida externa, levando à inadimplência em muitos casos. Eles podem contrair empréstimos internamente mais facilmente; no entanto, a isenção fiscal para incentivar o investimento privado pode resultar em uma grande e crescente fatura de juros, que retira recursos de despesas necessárias para a proteção social. Na verdade, a responsabilidade da comunidade internacional não se limita a fornecer novos recursos para enfrentar a crise que aflige o planeta, e também anula parte dos fundos concedidos anteriormente como crédito, sobre os quais já foram obtidos retornos substanciais, para proporcionar a tão necessária margem de manobra fiscal aos governos dos países de menor renda.

As tarefas impostas por esses problemas, que exigem respostas urgentes, devem ser assumidas pelos governos, especialmente dos países desenvolvidos, que têm a principal responsabilidade por essa crise moldada historicamente. Os benefícios sociais de se resolver essas questões são imensos e globais — os países de alta renda também seriam beneficiados, não apenas os de menor renda, como o secretário-geral da ONU, António Guterres, reiterou. O retorno financeiro para o setor privado é muito baixo e, em alguns casos, os riscos são altos demais para que este assuma as responsabilidades, a menos que o faça como mero executor contratado pelo governo para uma tarefa, em troca de pagamento. Mas mesmo esse tipo de divisão de responsabilidades entre o Estado e o setor privado provavelmente não funcionará, porque os incentivos de ambos são incompatíveis. Os governos querem benefícios sociais para o bem público; o setor privado quer lucros para impulsionar a agenda de acumulação corporativa.

O momento é propício para uma ação pública agressiva. Superávits foram acumulados pelo grande capital nos últimos 25 anos (ou mais) e a desigualdade aumentou a níveis sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial, de modo que obter recursos por meio de ações coordenadas internacionalmente para taxar o setor privado pode gerar, com pouco esforço, grande parte dos recursos necessários. O multilateralismo tem um papel a desempenhar na mobilização de capital e não apenas na implementação da agenda.

É neste momento de desafios e oportunidades que os países desenvolvidos, citando seus próprios “problemas internos”, estão se retirando de um esforço global de financiamento muito necessário. As negociações sobre financiamento climático são um exemplo disso. Em contrapartida, estão apresentando um argumento para terceirizar o que é claramente uma responsabilidade dos governos para o setor privado. O G20, como grupo dos atores globais mais influentes, deve abandonar esse esforço de “terceirizar” o multilateralismo.

 

Fonte: A Terra é Redonda/Sputnik Brasil/Le Monde

 

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