sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Imagem dos EUA como defensores da democracia 'já ruiu', diz analista

À Sputnik Brasil, analistas explicam que os EUA construíram sua hegemonia por meio da força, mas chancelados por instituições globais, como a ONU. Porém, a invasão do Iraque marcou o início de uma nova fase, na qual passaram a ignorar a opinião da comunidade internacional, arruinando sua própria imagem de "defensores da democracia".

A violência que marca o processo eleitoral dos EUA espelha a própria história do país, permeada de confrontos diretos e indiretos. Prova disso é que quase todos os ex-presidentes americanos tiveram uma guerra para chamar de sua.

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas explicam como o patrocínio a guerras e o discurso belicoso serviram de motores propulsores da projeção da hegemonia americana e por que essa tática vem ruindo, sobretudo com a ascensão do Sul Global.

José Renato Ferraz da Silveira, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), explica que a história dos EUA do século XX está ligada ao termo "complexo industrial-militar", usado pelo presidente americano Dwight D. Eisenhower (1953–1961) para descrever o intricado processo pelo qual os EUA cada vez mais produziam armas e tecnologias bélicas.

Segundo ele, esse complexo foi reforçado durante a Guerra Fria e ainda hoje influencia fortemente a política externa dos EUA e é utilizado como fator de expansão do poder norte-americano no mundo, seja em governos democratas ou republicanos.

"No mundo pós-Guerra Fria e, principalmente, na Guerra ao Terror, com o desejo e a expectativa de consolidar-se como uma superpotência solitária, os EUA utilizam-se da lógica do espelho em que se veem como o 'Bem', com valores e princípios morais singulares, e os seus inimigos como a personificação do 'Mal'. Portanto, a lógica da guerra e do inimigo externo são vetores indispensáveis e que sustentam, a longo prazo, o posicionamento ativo dos EUA no plano global", afirma.

Nesse contexto, ele destaca o papel da gestão de George W. Bush, que "reforçou o unilateralismo norte-americano em ações militares", consolidando sua "hegemonia global e seu papel de superpotência solitária".

"Os EUA utilizaram os atentados de 11 de Setembro como justificativa a uma 'cruzada mundial contra o terror' em defesa da 'paz mundial' e da sua segurança interna", observa.

Silveira explica que Washington passou a classificar como "Eixo do Mal" países que acusava de abrigar ou patrocinar terrorismo ou que contestassem o poder americano.

"A expressão 'Eixo do Mal' é uma dupla referência histórica: 'eixo' lembra o eixo Berlim-Roma na Segunda Guerra Mundial. E 'mal' retoma o termo império do mal, forma como o governo [Ronald] Reagan se referia à União Soviética durante a Guerra Fria. Um eixo do mal mantém latente a ameaça exterior e justifica a necessidade de manutenção de um expressivo orçamento, do governo Bush, na defesa."

Bush marca o processo de deslegitimação das instituições globais

Pedro Allemand Mancebo Silva, pesquisador e doutorando em relações internacionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), afirma que toda hegemonia é um misto de coerção e consenso e todo ator hegemônico institui mecanismos de construção de consensos para legitimar seus interesses frente ao mundo. Segundo ele, até a invasão do Iraque, em 2003, a hegemonia norte-americana ainda prezava muito por preservar essas estruturas, como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras organizações internacionais, "que permitiam aos EUA exercer o uso da força, mas chancelado pela comunidade internacional".

"Em 2003, a invasão do Iraque foi lançada sem essa chancela, e em violação direta de resoluções do Conselho de Segurança. Isso inaugurou uma nova etapa da hegemonia dos EUA, na qual o uso da força, o início de novas guerras, passa a ser feito de forma discricionária, baseado na vontade americana, e pouco importa a opinião da comunidade internacional, as resoluções da ONU ou do Conselho de Segurança. No máximo, a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] passa a dizer algo."

Com isso, acrescenta Allemand, "os EUA estabelecem um precedente de violar as resoluções e determinações desses órgãos da governança global".

"Basta ver como aliados menores, mas agressivos, como Israel, se utilizam da mesma coisa e chegam a desacreditar a ONU e atacar seus funcionários."

Ele afirma que para entender a construção da imagem dos EUA como defensores da democracia, é importante compreender a ideia de "guerra justa", na qual as consequências são toleradas porque os motivos são considerados justos, seja "a expansão da ordem mundial baseada em regras, a defesa do interesse nacional ou a defesa de um aliado".

No entanto, "os EUA têm cada vez menos se preocupado com a justificativa nos termos da defesa da democracia e cada vez mais colocado o interesse nacional como justificativa".

"Novamente, se olharmos para Israel, os EUA justificam e apoiam o genocídio do povo palestino com base no direito de Israel se defender e na necessidade de apoiar um aliado que está 'ameaçado'."

Allemand afirma que o sucesso de Bush "em derrotar Saddam Hussein — e destruir o Iraque no processo — teve um custo muito alto, que a gente ainda está pagando, em termos de desestabilizar a geopolítica do Oriente Médio, bem como para a imagem e legitimidade dos organismos internacionais de construção de consenso".

"Hoje, a sensação de que a ONU 'não serve para nada' só cresce diante da incapacidade da organização de mediar soluções pacíficas de controvérsias, e da ausência de vontade de alguns atores de se comprometer com esse tipo de solução."

Ascensão do Sul Global põe em xeque a hegemonia dos EUA?

Silveira aponta que em toda sua história os EUA se consideraram singulares, com valores e princípios morais únicos e, após a Segunda Guerra Mundial, "assumiram o papel de artífices da ordem internacional", com um comportamento cruzadista e messiânico que defenderia a democracia e os direitos humanos em todo mundo, "mesmo que fosse necessário bombardear países — e matar inocentes — para levar democracia e direitos humanos".

"É um terrível paradoxo que mostra a ambivalência do discurso oficial e oficioso norte-americano."

Porém, ele afirma que, na atualidade, a imagem norte-americana está sendo colocada em xeque diante da contestação do Sul Global a essa dominação econômica e política dos EUA e seus aliados no Ocidente.

"O Sul Global busca se distanciar do Ocidente, tramar seu próprio desenvolvimento, ensaiar políticas autônomas e não continuar a ser dominado por uma força ocidental liderada pelos EUA."

Allemand, por sua vez, considera que essa imagem dos EUA como defensores da democracia "já ruiu", independentemente da ascensão do Sul Global.

"Não acho que a ascensão do Sul Global tenha papel nisso, mas sim os desafios colocados pela ascensão da China e a retomada das iniciativas estratégicas da Rússia. Sem falar na própria atuação dos EUA, que tem sistematicamente atacado instituições e regimes importantes para a consolidação da ordem mundial do pós-Guerra Fria."

¨      EUA se preparam para conflito com China usando experiência do conflito ucraniano, diz mídia

As Forças Armadas dos EUA estão se preparando para um possível conflito com a China, com os militares praticando táticas, inclusive aquelas obtidas da observação do conflito da Ucrânia contra a Rússia, informa o The New York Times.

A publicação observa que os candidatos à presidência dos EUA, Donald Trump e Kamala Harris, podem divergir sobre os conflitos na Ucrânia e no Oriente Médio, mas, independentemente de quem vencer a eleição de novembro, "os Estados Unidos vão continuar a se preparar para a guerra com a China".

Com esse objetivo, as Forças Armadas norte-americanas iniciaram exercícios, neste mês, chamados Guerra de Grandes Potências, na ilha Havaí, onde as condições são mais próximas daquelas em que os exércitos dos dois gigantes teriam de combater.

Porém, nem tudo correu de acordo com o plano dos exercícios.

O artigo menciona que apenas pouco mais da metade dos paraquedistas que voaram do Alasca conseguiram chegar ao lugar certo.

"Alguns dos C-17s [aviões de transporte] tiveram problemas com as portas, enquanto outros foram forçados a pousar mais cedo."

Além disso, alguns paraquedistas torceram o tornozelo ou sofreram traumatismo craniano, com um soldado de 19 anos caindo com seu paraquedas que não abriu.

Ele sobreviveu e foi hospitalizado de emergência, mas não se sabe se algum dia conseguirá voltar a andar.

"O Exército dos EUA se transforma, com suas centenas de milhares de jovens, para mais uma guerra, desta vez em um possível conflito com a China", escreveu a autora do artigo.

De acordo com o jornal, um conflito entre Estados tão grandes, possuidores de armas nucleares, como a China e os Estados Unidos, seria "muitas vezes mais perigoso" do que a experiência prévia dos EUA.

Observa-se que isso poderia levar a um nível de baixas entre os militares norte-americanos que não foi registrado nem mesmo nos conflitos mais sangrentos envolvendo os Estados Unidos.

"As tropas trabalharam em novas manobras, que foram combinadas ao observar a Ucrânia lutando contra a Rússia", destaca o artigo.

Embora Taiwan tenha seus próprios sistemas de defesa, os especialistas militares consideram improvável que a ilha possa repelir um possível ataque da China sem a ajuda dos Estados Unidos.

Os formuladores de políticas norte-americanos temem que os Estados Unidos percam sua capacidade de dominar a região se não intervierem em um conflito desse tipo.

O jornal enfatiza que os militares dos EUA já estão posicionados na região: no Japão, onde há cerca de 54.000 deles, e na Coreia do Sul, onde há 25.000, com alguns posicionados nas Filipinas.

As relações oficiais entre o governo central da China e sua província insular foram interrompidas em 1949, depois que as forças derrotadas do Kuomintang, lideradas por Chiang Kai-shek na guerra civil contra o Partido Comunista Chinês, se mudaram para Taiwan.

Pequim considera Taiwan parte integrante da China, e a observância do princípio de Uma Só China é um pré-requisito para os outros países que desejem estabelecer ou manter relações diplomáticas com ela.

A política de Uma Só China e o não reconhecimento da independência de Taiwan também são respeitados pelos EUA, apesar de manterem contatos estreitos com Taipé em várias esferas e fornecerem armas à ilha.

¨      EUA estão fracassando na contenção da superioridade tecnológica da China, relata mídia

Os esforços de longa data dos EUA para conter a superioridade tecnológica da China não só estão fracassando, mas também representam riscos para o isolamento dos Estados Unidos, já que Pequim está liderando uma série de áreas de tecnologia avançada e o mundo está usando cada vez mais carros elétricos e smartphones chineses, escreve a Bloomberg.

"Apesar de mais de seis anos de tarifas dos EUA, controles de exportação e sanções financeiras, Xi [Jinping o presidente chinês] está alcançando progressos constantes no posicionamento da China para o domínio nos setores industriais do futuro", diz o artigo.

De acordo com um novo estudo da Bloomberg Economics e Bloomberg Intelligence, o projeto industrial "Made in China 2025", lançado há dez anos e destinado a tornar o país líder em tecnologias avançadas, em geral, tem sido bem-sucedido. Assim, das 13 tecnologias-chave que foram rastreadas pelos pesquisadores da agência, a China alcançou a liderança global em cinco, e outras sete estão ganhando rapidamente impulso.

O mundo fora dos EUA está cada vez mais usando carros elétricos chineses, usando smartphones chineses e abastecendo com energia suas casas com painéis solares chineses, acrescenta a mídia. Para Washington, o risco é que uma política destinada a conter a China, ao fim e ao cabo, levará ao isolamento dos EUA e prejudicará suas empresas e consumidores, escreve a agência.

"A ascensão tecnológica da China não será parada e pode nem mesmo ser desacelerada pelas restrições dos EUA. Exceto para aquelas restrições draconianas que simultaneamente diminuem o ritmo da inovação nos EUA e em todo o mundo", cita o artigo Adam Posen, presidente do Instituto Peterson de economia internacional em Washington, D.C.

Anteriormente, o candidato presidencial republicano Donald Trump havia repetidamente afirmado que pretende aumentar os impostos sobre produtos da China e de outros países, se for eleito.

¨      China resiste a sanções americanas e alerta: ‘EUA ficam sem saída’

O Ministério das Relações Exteriores da China expressou firme oposição nesta terça-feira (29) à recente iniciativa dos EUA de implementar regras para restringir investimentos em tecnologia na China, e prometeu tomar todas as medidas necessárias para proteger resolutamente os direitos e interesses legítimos do país.

Especialistas apontaram que a campanha de repressão tecnológica intensificada pelos EUA afetará as operações comerciais, especialmente das empresas americanas que planejam expandir no vasto mercado chinês. No entanto, não deterá o avanço da inovação tecnológica independente da China.

O Departamento do Tesouro dos EUA emitiu na segunda-feira, horário local, uma regra final para implementar uma ordem executiva sobre investimentos dos EUA em tecnologias de segurança nacional em países considerados preocupantes. O presidente dos EUA, Joe Biden, identificou a China, incluindo a Região Administrativa Especial de Hong Kong (HKSAR) e a Região Administrativa Especial de Macau, como países alvo. Tecnologias como semicondutores, microeletrônica, informação quântica e inteligência artificial (IA) foram listadas na ordem.

“A Administração Biden-Harris está comprometida em proteger a segurança nacional dos Estados Unidos e manter tecnologias avançadas críticas fora do alcance de quem possa usá-las para ameaçar nossa segurança”, afirmou Paul Rosen, Secretário Assistente de Segurança de Investimentos.

As regras, inicialmente propostas em junho e direcionadas por uma ordem executiva de Biden em agosto de 2023, entrarão em vigor em 2 de janeiro de 2025 e serão administradas pelo Escritório de Transações Globais.

<><> Ministério das Relações Exteriores da China

Comentando sobre a ação dos EUA, Lin Jian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, destacou em uma entrevista coletiva nesta terça-feira que a China expressa forte insatisfação e oposição às restrições de investimento, e tomará todas as ações necessárias para proteger seus direitos e interesses legítimos.

Um porta-voz da RAEHK criticou os EUA por mirar a China e sua região sob pretextos políticos, alertando que isso prejudicará o livre mercado e afetará o superávit comercial dos EUA com Hong Kong. O porta-voz destacou que as restrições não apenas interrompem o comércio entre a RAEHK e os EUA, mas também afetam a estabilidade da cadeia de suprimentos global.

Gao Lingyun, especialista da Academia Chinesa de Ciências Sociais em Pequim, afirmou que os EUA utilizam a segurança nacional como desculpa para suprimir o desenvolvimento da China. Embora a ordem mencione “países preocupantes”, a China foi especificamente apontada, deixando claras as intenções dos EUA.

Desde restrições a compras de tecnologia até limitações no fluxo de capital, os EUA têm seguido uma estratégia sistemática para conter a China, disse Ma Jihua, observador da indústria de telecomunicações. Ele acrescentou que as medidas não impedirão a inovação independente da China, que já avançou em áreas como tecnologia quântica e IA.

<><> O mercado faz a escolha

Apesar das restrições dos EUA, algumas empresas americanas continuam a expandir no mercado chinês. Na segunda-feira, a fabricante de chips Intel anunciou a expansão de sua instalação em Chengdu, província de Sichuan, visando melhorar a eficiência das cadeias de suprimentos locais.

Na sexta-feira, o Ministro do Comércio da China, Wang Wentao, reuniu-se com o CEO da Apple, Tim Cook, que destacou o papel da China no crescimento da empresa, prometendo aumentar o investimento em P&D e na cadeia de suprimentos.

Ma afirmou que, diferentemente dos políticos americanos, que veem a contenção da China como ferramenta de influência, o setor empresarial entende a complementaridade das economias chinesa e americana. Gao ressaltou que a imposição de restrições distorcerá o fluxo de mercado e impactará as relações econômicas entre China e EUA.

Gao alertou que, uma vez implementadas as restrições, empresas dos EUA perderão um dos mercados mais dinâmicos no curto prazo, e incentivou os EUA a ouvir a comunidade empresarial, evitando o unilateralismo.

 

Fonte: Sputnik Brasil/Global Times

 

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