sábado, 2 de novembro de 2024

Guilherme Paladino: ‘O que propõe a China com a Nova Rota da Seda, da qual o Brasil hesita em fazer parte?’

O noticiário relacionado à política externa brasileira ficou agitado desde a publicação, pelo jornal O Globo, de uma entrevista com o assessor especial do presidente Lula para assuntos internacionais, Celso Amorim, sobre a adesão ou não do Brasil à iniciativa chinesa do Cinturão e Rota – também conhecida como a “Nova Rota da Seda”, em referência às rotas comerciais desenvolvidas há mais de 2 mil anos para interligar Ásia e Europa.

Há certo tempo, existe uma expectativa dentro de parte da esquerda brasileira por uma intensificação dos laços com a China e pela integração ao projeto internacional coordenado por Xi Jinping. Tal expectativa sofreu abalos após as recentes declarações de Amorim, que negou que o Brasil vá “entrar em um tratado de adesão” com os chineses – apesar de ter ressaltado que o Brasil está “negociando sinergias” com o gigante asiático e que o governo Lula propôs projetos de cooperação nas áreas de infraestrutura, energia solar e de veículos híbridos e elétricos.

Mas, afinal, o que é o Cinturão e Rota e qual a versão oficial do governo chinês sobre a iniciativa? O Brasil 247 esteve presente em uma conferência em Pequim sobre o tema, organizada pelo Centro Internacional de Imprensa e Comunicação da China (CIPCC, na sigla em inglês), e agora mostra o que foi possível absorver da visão do Partido Comunista Chinês (PCCh) sobre a política mais ambiciosa do presidente Xi desde o início de seu mandato.

A NOVA ROTA DA SEDA

A iniciativa foi proposta ainda no primeiro ano de Xi como presidente, durante visitas ao Cazaquistão e à Indonésia, em setembro e outubro de 2013, respectivamente. Em um discurso na Universidade Nazarbayev, naquela ocasião, o líder chinês afirmou que “devemos adotar um modelo de cooperação inovador para construir conjuntamente a Faixa Econômica da Rota da Seda”. Menos de um mês depois, ao parlamento nacional da Indonésia, cunhou o termo “Rota Marítima da Seda do Século XXI”.

De lá para cá, o projeto saiu do papel, ganhou corpo e até um nome oficial (‘Cinturão e Rota’). Em uma década, foram firmados mais de 200 convênios de cooperação com 152 países e 32 organizações internacionais, gerando mais de 3 mil projetos de cooperação e envolvendo investimentos de mais de 1 trilhão de dólares. Em relação ao conteúdo principal da iniciativa, o governo chinês o define por meio do conceito de “cinco conectividades”, a saber:

  • Coordenação de políticas
  • Conectividade de instalações
  • Comércio sem barreiras
  • Integração financeira
  • União da vontade dos povos

Tais pontos são considerados essenciais pelos chineses, de tal forma que afirmam que a Nova Rota da Seda está “aberta tanto aos países como às organizações internacionais e regionais comprometidos com a iniciativa em todos os campos”.

E vale destacar que a formalização da parceria no âmbito do Cinturão e Rota exige, de fato, a assinatura de um memorando de entendimento por parte do país interessado. O documento, no entanto, tem um caráter mais simbólico e menos normativo, não estipulando obrigações específicas ou sanções caso um dos países deseje encerrar o vínculo – apenas há disposições relacionadas ao compromisso dos países em aumentar sua cooperação em diferentes áreas em um período de cinco anos, que pode ser renovado caso esta seja a vontade de ambas as partes. Os documentos, inclusive, são públicos.

INFRAESTRUTURA COMO PONTO CHAVE

Entre os cinco tópicos acima destacados, o mais reconhecido internacionalmente é o da conectividade de instalações, referente aos investimentos chineses na área da infraestrutura dos países que compõem o Cinturão e Rota. Como seu ‘marco básico’, a iniciativa propunha a criação de “6 rotas e 6 corredores”, conectando o gigante asiático por meio dos corredores China-Paquistão; China-Mongólia-Rússia; China-Península da Indochina; Bangladesh-China-Índia-Myanmar; China-Ásia Central-Ásia Ocidental; e a Nova Ponte Terrestre da Eurásia.

Os projetos de infraestrutura envolvem vias ferroviárias (como as de China-Laos, China-Tailândia, Jakarta-Bandung e Hungria-Sérvia), portos (como os de Gwadar, no Paquistão; Hambantota, no Sri Lanka; Pireu, na Grécia e Khalifa, nos Emirados Árabes), energia (como o oleoduto de petróleo bruto China-Rússia, gasoduto China-Ásia Central e dutos de gás e petróleo China-Mianmar) e linhas aéreas (com a Rota da Seda Aérea firmando convênios bilaterais de transporte aéreo com 126 países e regiões). Até setembro de 2022, estavam estabelecidas 94 linhas marítimas com a denominação da Rota da Seda, conectando 108 portos de 31 países.

AVANÇOS EM DIREÇÃO À AMÉRICA LATINA

No ano seguinte ao anúncio da pretensão de construir uma Nova Rota da Seda, o governo chinês passou a direcionar cada vez mais suas atenções à América Latina e ao Caribe.

Entre 2014 e 2016 foram anunciadas iniciativas como a ‘Associação de Cooperação Integral entre China e América Latina de Igualdade, Benefício Mutuo e Desenvolvimento Comum’ e o lançamento, pelo Ministério de Relações Exteriores chinês, do segundo “Documento sobre a Política da China para a América Latina e o Caribe”. Já em 2017, iniciou-se oficialmente a cooperação no âmbito do Cinturão e Rota entre as regiões, com a entrada do Panamá na iniciativa.

Desde então, outros 21 países da América Latina e Caribe assinaram memorandos de entendimento para aderir ao Cinturão e Rota. A lista completa, por ordem de entrada, pode ser conferida a seguir:

  • Panamá (novembro de 2017)
  • Suriname (maio de 2018)
  • Trinidad e Tobago (maio de 2018)
  • Bolívia (junho de 2018)
  • Antígua e Barbuda (junho de 2018)
  • Guiana (julho de 2018)
  • Dominica (julho de 2018)
  • Uruguai (agosto de 2018)
  • Costa Rica (setembro de 2018)
  • Granada (setembro de 2018)
  • Venezuela (setembro de 2018)
  • El Salvador (novembro de 2018)
  • República Dominicana (novembro de 2018)
  • Cuba (novembro de 2018)
  • Chile (novembro de 2018)
  • Equador (dezembro de 2018)
  • Barbados (fevereiro de 2019)
  • Peru (abril de 2019)
  • Jamaica (abril de 2019)
  • Nicarágua (janeiro de 2022)
  • Argentina (fevereiro de 2022)
  • Honduras (junho de 2023)

As principais áreas a serem desenvolvidas na cooperação América Latina/Caribe-China são a agricultura, mineração, energia e indústria, com parcerias em infraestrutura e tecnologia. Os chineses apresentam, com orgulho, participações em projetos como o megaporto de Chancay no Peru, a quarta ponte sobre o Canal do Panamá e a Usina Solar Cauchari na Argentina – uma das maiores estações de energia fotovoltaica da América do Sul.

Todos estes contatos com a América também tiveram como consequência um maior fluxo de pessoas entre as regiões – em uma anedota: atualmente, pode ser mais fácil para um jornalista brasileiro encontrar um nicaraguense ou um hondurenho em Pequim do que em São Paulo, dado o grande número de programas internacionais na capital chinesa voltados aos países da América Central. As consequências econômicas também são relevantes: em 2018, a China tornou-se a segunda maior parceira comercial da América Latina e, entre 2000 e 2023, o comércio entre as partes cresceu de US$ 12 bilhões para US$ 310 bilhões.

O QUE OS CHINESES PEDEM?

Ainda existe um certo temor no Brasil em relação às exigências para fazer parte do Cinturão e Rota, como se aderir à iniciativa fosse o mesmo que assinar um vínculo de dependência e subordinação ao poderio econômico e à influência política da China.

Contudo, como já demonstrado anteriormente, o que o governo chinês pede é um comprometimento diplomático com a cooperação em múltiplos campos. Na prática, assim que um país adere à Nova Rota da Seda, ele sinaliza estar disposto a abrir suas portas para receber empresas e indústrias chinesas, que irão passar a investir na construção de infraestrutura em âmbito local, a fim de criar novos portos, ferrovias, estradas, estruturas para mineração, etc.

Por um lado, pode haver uma desvantagem para as indústrias e empresas locais dos países que aderem ao Cinturão e Rota, porque é praticamente impossível competir com o poderio chinês neste sentido. Além disso, também há preocupações em alguns países quanto ao aumento do endividamento com a China, dado que outra parte essencial da iniciativa se dá por meio do financiamento feito – em grandes volumes – por bancos chineses às obras de infraestrutura desenvolvidas.

Por outro lado, a proposta chinesa para a Nova Rota da Seda também surge como uma oportunidade interessante para um incremento significativo na infraestrutura de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. Aderir à iniciativa traria como consequência, por exemplo, já no curto e médio prazo, um fortalecimento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula, impulsionando o setor de construção civil no Brasil, com a geração de novos empregos e a possibilidade de inaugurar mais obras de melhorias em estradas e ferrovias. E, apesar das preocupações de com o endividamento, os chineses afirmam que o financiamento oferecido por seus bancos está sempre abaixo do preço do mercado.

O governo chinês assegura o cumprimento dos três princípios fundamentais de ‘Consulta Conjunta’ (respeito às diferenças em nível de desenvolvimento, leis e legislações, ambiente comercial, tradições e culturas), ‘Construção Conjunta’ (participação de todas as partes, adaptando-se às estratégias nacionais e regionais de desenvolvimento) e ‘Compartilhamento’ (benefício mútuo e ganho compartilhado). Segundo o presidente Xi, “embora o Cinturão e Rota tenha sido proposto pela China, as oportunidades e os êxitos que gera pertencem ao mundo inteiro”.

A ADESÃO OU NÃO DO BRASIL

Dado o tamanho do projeto – tanto em ambição quanto em consequências práticas – o governo brasileiro segue estudando as possibilidades antes de tomar uma posição concreta. Os sinais dados por Celso Amorim vão no sentido de uma tentativa de construir uma parceria mais sólida, mas sem a necessidade de uma formalização de adesão a um determinado projeto, como o Cinturão e Rota.

É possível inferir que o mais interessante para o governo chinês seria a entrada do Brasil de maneira oficial na iniciativa, pelo significado político que tal decisão também teria: o maior e mais rico país da América do Sul se juntando ao grupo formal de amigos da China representaria uma derrota no poder de influência dos Estados Unidos em seu próprio quintal. No entanto, a tradição diplomática brasileira de manter neutralidade em meio às grandes tensões geopolíticas segue sendo levada em conta.

Além disso, como diz Amorim, o governo brasileiro também buscará o que for melhor para sua indústria, economia e desenvolvimento. Tudo é sintetizado em sua resposta na entrevista recente ao Globo: “eles (os chineses) falam sobre cinturão, mas não é uma questão de aderir. Eles dão os nomes que eles quiserem para o lado deles, mas o que interessa é que são projetos que o Brasil definiu e que serão aceitos ou não”.

 

Fonte: Brasil 247

 

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