terça-feira, 12 de novembro de 2024


 

Dilemas da União Europeia – Mais que um mercado, menos que uma solução

Estudos de fôlego buscam sugerir saídas para os dilemas da União Europeia, que vive uma situação de baixo crescimento econômico e descrédito da democracia representativa, com aumento da rejeição à imigração e aumento do nacionalismo

Analistas críticos têm identificado uma interligação profunda entre as duas crises contemporâneas do liberalismo: o baixo crescimento econômico, que conduz o centro do sistema à estagnação, e o descrédito da democracia representativa, que resulta em radicalização política, também em países da periferia.

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O esgotamento do modelo exportador abalou fortemente a Alemanha, mas França, Polônia e Itália também sofrem sérias consequências da maior dependência dos Estados Unidos e de seu instrumento de manutenção da hegemonia estratégica, a Otan. 

A guerra na Ucrânia agrava o declínio em curso. Volumosas importações agrícolas ucranianas (extra-UE) impactaram a renda dos agricultores comunitários, enquanto a restrição no fornecimento de gás russo fez subir todos os preços, pelo alto custo de triangulação comercial da energia. O avanço da imigração e dos refugiados, distorcido pela manipulação de mídias desreguladas, alimentou o nacionalismo e a xenofobia, adormecidos por décadas sob o manto da integração. 

Parte significativa do eleitorado passou a rejeitar o sistema político e, em alguns casos, a própria democracia, vistos como incapazes de conter a queda do poder aquisitivo e de prevenir a guerra. A extrema-direita e uma nova esquerda deslocaram o apoio aos partidos da direita tradicional e da social-democracia, desvitalizados pela ortodoxia das políticas aplicadas a partir dos anos 90. Em defesa do que restou de seu bem-estar, parcela significativa da população escolheu sacrificar os estrangeiros e a própria noção de civilidade que, na visão europeia do pós-guerra, deveria ser uma aspiração global. 

Dois estudos de fôlego recentes, encomendados por instituições comunitárias, buscam sugerir saídas para os dilemas da União Europeia. 

O relatório do ex-diretor do Banco Central Europeu, Mario Draghi, intitulado O futuro da competitividade europeia, atribui a erosão de produtividade do continente ao fracasso em acompanhar a revolução digital ocorrida nos EUA. 

Em sua ótica, o esgotamento dos “dividendos” da paz, do livre comércio internacional e da energia barata colocou a Europa diante de desafios simultâneos em tecnologia, descarbonização e segurança. Em cenário geopolítico complexo, somente uma mudança de rumo poderia evitar a corrosão de pelo menos um dos três valores europeus fundamentais, que seriam o bem-estar, a liberdade e a proteção do meio ambiente.

O economista sugere como recurso imediato a integração da inteligência artificial nos ramos em que a Europa ainda desfruta de capacidades, como indústria automotiva, robótica, transporte de passageiros e fretes. É preciso igualmente sustar a decadência do setor farmacêutico, dependente de insumos e produtos acabados importados, e reduzir o gap entre pesquisa acadêmica, inovação e comercialização, de forma a converter “inventors into investors”. 

Em certas áreas de ponta, como as clouds de dados, entretanto, seria imprescindível cooperar com companhias dos EUA, desde que encontradas soluções soberanas, como o uso de sistemas de criptografia europeus.

O texto apresenta como diretriz geral a adoção de políticas fiscais de estímulo à produção industrial, políticas comerciais de incentivo à competição e uma política externa econômica que garanta o fornecimento de matérias primas para as cadeias produtivas, com acordos de comércio e investimentos preferenciais com países exportadores de minerais críticos. 

Alerta para a necessidade de planejamento e organização comunitária para que a descarbonização da economia não gere efeitos negativos em certos países-membros, tendo em conta vulnerabilidades energéticas estruturais: carência de recursos naturais, alta volatilidade do mercado de gás e precariedade das redes elétricas, além do excessivo peso dos impostos sobre a energia como fonte fiscal. 

Draghi é a favor do aumento dos investimentos em defesa, da produção de armas padronizadas em escala continental e da coordenação das compras públicas de equipamentos militares.

Em sua opinião, a tentativa de promover um choque de inovação na produção exige companhias maiores (“campeões nacionais”), mas não deve recorrer à asfixia da competição ou ao rebaixamento dos custos de mão-de-obra, e sim ao investimento em altas habilidades, por meio de capacitação e treinamento contínuos. 

Draghi situa obstáculos importantes no âmbito institucional. Menos regulação, especialmente para a indústria digital, simplificação das regras de tomada de decisão e redução dos procedimentos administrativos exigidos, em particular, das pequenas e médias empresas, são as principais medidas aconselhadas. 

O ex-presidente do BCE defende mais integração no plano supranacional. Os países-membros devem resistir ao apelo da subsidiariedade e privilegiar o financiamento estatal conjunto ao setor privado, em áreas como computação quântica, inteligência artificial e conectividade, que ele considera bens públicos. Seria recomendável completar a união dos mercados de capitais, com a emissão de títulos comuns de dívida soberana, oferta de fundos de previdência privada e relançamento da securitização. 

Já o relatório do ex-primeiro-ministro da Itália, Enrico Letta, sob o título Muito mais que um mercado, foca especificamente nos unfinished business´ da liberalização comercial. O deputado pelo Partido Democrático e presidente do Instituto Jacques Delors coincide no diagnóstico de que setores definidos como estratégicos para o poder nacional – energia, tecnologias da informação, finanças – ficaram fora do mercado comum e por isso se encontram hoje ultrapassados.

A fragmentação seria o principal desafio a vencer. Melhorar a conexão da infraestrutura entre as capitais europeias (trens de alta velocidade e redes elétricas, por exemplo) é essencial para possibilitar a transição verde, a economia digital e a segurança coletiva. Em comum com Draghi, a receita de uma política industrial europeia, para tentar conter a queda de posição no mercado mundial de produção de manufaturas.

O caminho indicado por Letta acrescenta a adoção de um código europeu para os negócios, na linha de mais regulação. Refere-se ainda a preocupações sociais, entre as quais a resiliência dos sistemas de saúde, a ampliação do número de Estados-membros e as migrações. A liberdade de movimento das pessoas deveria contemplar a “freedom to stay”, uma vez que a imigração é uma alternativa real para o trabalho, diante da redução da população europeia, e não deve ser vista como causa da deterioração do nível de renda. 

O experiente político preconiza para a União Europeia, além da livre circulação de pessoas, capitais, bens e serviços, uma “quinta liberdade”: de educação, pesquisa e inovação sem fronteiras temáticas ou de disciplinas.

A leitura, ainda que não exaustiva, dos dois textos, indica uma aposta forte de Draghi na indústria de defesa e na liberdade do mercado financeiro, consistente com seu histórico de banqueiro. Embora enuncie o objetivo de alcançar a competitividade dos EUA sem incorrer na mesma desigualdade social, seu enfoque – mais integração supranacional e menos regulação de mercados – parece apontar exatamente nessa direção. O relatório Letta, como reflexo de sua origem humanista e católica deposita confiança na regulação da conduta empresarial e na criatividade, sem tampouco questionar as premissas da integração.

Alguns economistas notam que ambos os estudos, ainda que aportem diagnósticos detalhados, falham ao não abordar o principal fator de restrição ao investimento público, qual seja, a ênfase na austeridade fiscal. No debate entre tradições clássicas, fica evidente a filiação dos autores italianos, em especial Draghi, à concepção de que a liberdade dos mercados, e do capital em particular, provoca um “choque de competitividade” capaz de impulsionar a economia. 

O modelo distributivo, em contraste, argumenta que a expansão do consumo de bens e serviços, por meio da distribuição da renda, é o principal indutor do investimento e dos ganhos de produtividade. Para desbloquear a poupança e induzir o potencial econômico, inclusive dos imigrantes, seria necessário um projeto coordenado de combate ao rentismo, que inclua a taxação de grandes fortunas e das big techs e desestimule a remuneração exagerada dos capitais especulativos.

O enfrentamento da crise climática e a transição para uma economia sustentável, por sua vez, demandam uma transformação cultural e ética mais profunda, que altere os padrões de consumo dominantes e contenha o manejo dos big data por poucos, de forma a garantir a privacidade e os direitos de todos. 

 

¨      Crise na Alemanha e eleição de Trump deixam pouco espaço para Ucrânia alongar conflito

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que a situação da Ucrânia se tornou mais precarizada diante do cenário político atual e "já se vê espaços e discussões sobre como organizar um diálogo para negociações de paz".

A semana passada foi uma das mais críticas para o ucraniano Vladimir Zelensky. Em apenas sete dias, ele assistiu os dois principais financiadores de Kiev no confronto com a Rússia vivenciarem mudanças bruscas.

Nos Estados Unidos, Donald Trump foi eleito presidente com a promessa de encerrar o quanto antes o conflito ucraniano. Na Alemanha, maior economia da União Europeia (UE) e segundo principal financiador da Ucrânia, o chanceler Olaf Scholz vive uma crise política que levou ao colapso a coalizão de seu governo.

Em paralelo, no início da semana passada, a ministra das Relações Exteriores da Alemanha, Annalena Baerbock, visitou a Ucrânia para pressionar autoridades do país a negociarem a paz com a Rússia. A visita se deu dois meses após Scholz defender que as negociações para o fim do conflito deveriam ser implementadas "o mais rápido possível".

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas avaliam como a perda de apoio de seus principais financiadores afeta a Ucrânia e quais são as perspectivas para os rumos do conflito.

João Victor Motta, doutorando e mestre em relações internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, frisa que a Ucrânia "depende profundamente dos recursos da OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] para manter sua estratégia de defesa e garantir suas ações contra o território russo, em especial dos EUA e da Alemanha".

"O custo financeiro desse apoio tem sido profundamente criticado pelas sociedades de ambos os países. Com a recente eleição de Trump, as reiteradas falas expressando a vontade de dar fim ao conflito e a profunda crise política e de popularidade que vive o governo Scholz, restam poucos movimentos da parte ucraniana para alongar o conflito."

Ele acrescenta que Zelensky terá de recorrer a uma mudança de postura para que não seja impactado pelas mudanças no cenário interno dos EUA e da Alemanha e pela crescente atenção dada "à escalada de ataques de Israel no Oriente Médio e ao genocídio contra o povo palestino".

"A cada momento que avança o conflito, nota-se o crescente isolamento de Zelensky, que depende de raras aparições em fóruns multilaterais e falas com ataques a líderes que defendem uma posição moderada frente ao conflito. Com as mudanças políticas internas na Europa e Estados Unidos, o cenário ucraniano passa a depender mais do diálogo e das mediações que foram tentadas e recusadas por Zelensky."

Questionado sobre se as condições atuais fortalecem as bases para negociações de paz, Motta avalia ser "impreciso cravar uma chance de encerramento do conflito, mas as condições materiais apontam para isso".

"Neste momento, com a proximidade do inverno europeu, os impactos internos sobre os países que apoiam Zelensky cresceram, com uma piora das condições de vida da população europeia pelos crescentes gastos com energia, o que pode gerar pressões para que a Ucrânia inicie negociações de paz por parte da sociedade civil e governos dos países da Europa."

Pérsio Glória de Paula, especialista do Núcleo de Avaliação da Conjuntura (NAC), da Escola de Guerra Naval (EGN), observa que o cenário atual de fato é muito incerto, mas pontua que já havia anteriormente "sinais de uma certa diminuição da quantidade de apoio ocidental dado à Ucrânia".

"Talvez em vista também da deterioração das condições ucranianas, não se vislumbra uma possibilidade de vitória [ucraniana] no curto prazo, então há talvez um interesse cada vez maior por parte do Ocidente em resolver o conflito para que os custos associados à manutenção desse conflito não aumentem", afirma.

Entretanto, ele afirma ser importante avaliar que dentro dos próprios EUA ainda há uma parcela significativa das elites, de certos grupos de pressão, que apoia a continuidade do conflito, e mesmo o aumento do envio de ajuda financeira e militar à Ucrânia, inclusive dentro do Partido Republicano. Nesse contexto, mesmo Trump assumindo uma postura de resolução do conflito, essa é uma questão que ele teria primeiro de resolver internamente.

"Então talvez seja um pouco precipitado acreditar que esse apoio [à Ucrânia] vai acabar da noite para o dia, porque me parece que já é um apoio inserido nas estruturas de poder dos EUA, em que é difícil dizer se o próprio presidente [eleito] Trump vai conseguir acabar com isso da noite para o dia."

O especialista afirma que "isolamento" talvez não seja o termo mais adequado para definir a situação de Zelensky, mas ressalta que de fato "a situação ucraniana está mais precarizada", devido ao cenário interno dos países ocidentais, com Alemanha em crise e o resultado das eleições presidenciais nos EUA, fora outros países que têm "problemas econômicos e sociais diante dos quais o apoio à Ucrânia se torna cada vez mais custoso".

Diante disso, ele afirma que é possível que ocorra uma mudança no perfil de atuação internacional da Ucrânia, que nos últimos anos teve um alto nível de ativismo político, conseguindo se inserir "em diversos fóruns, eventos, inclusive organizações internacionais, para promover os interesses dela, a pauta do conflito ucraniano".

"Inclusive Zelensky chegou a solicitar participação em uma reunião do Mercosul para passar uma mensagem, que foi recusada. […] me parece que isso, sim, pode ser diminuído com esse novo cenário. A gente pode esperar uma ação mais reduzida da Ucrânia no cenário internacional", afirma.

Ele conclui afirmando que embora no curto prazo ainda seja esperada uma inércia na questão, com a manutenção do apoio ocidental em princípio, por outro lado já se vê espaços e discussões sobre como organizar um diálogo para negociações de paz.

"E os próprios países ocidentais têm, sim, a capacidade de pressionar a Ucrânia para sentar e negociar, até porque a Ucrânia é, evidentemente, dependente do apoio desses países para manter o esforço de guerra. E também, na atual situação dela, ela depende de um certo amparo internacional para poder negociar com a Rússia de uma forma menos desvantajosa", conclui o especialista.

 

Fonte: Por Cláudia de Borba Maciel, no Jornal GGN/Sputnik Brasil


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