quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Construção da segunda maior ponte do Brasil ameaça ecossistemas e comunidades na Bahia

“Parece que houve um processo proposital de sucateamento do serviço de ferry-boat, com o intuito de gerar insatisfação e, assim, facilitar a aceitação da construção da ponte”, denuncia Maria José Pacheco, secretária-executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores na Bahia.

A lista de precariedades no transporte marítimo da Baía de Todos-os-Santos é extensa: atrasos, falta de higiene, problemas mecânicos nas embarcações e até mesmo colisões. Além disso, uma antiga concessionária foi acusada de superfaturamento e má gestão, enquanto a atual operadora já recebeu multas milionárias pelos problemas.

Hoje, a viagem de ferry entre Salvador e Vera Cruz, na Ilha de Itaparica, dura cerca de 50 minutos, e a nova ponte deve encurtar o tempo de travessia para 15 minutos. Com obras previstas para 2025 e duração de quatro anos, o empreendimento baiano de 12,4 km será a segunda maior ponte do hemisfério sul, atrás apenas da Rio-Niterói (13,29 km).

O consórcio de duas empresas chinesas venceu a licitação em 2020 e atuará por meio de Parceria Público-Privada, com orçamento de R$ 9 bilhões. No portfólio das construtoras, destacam-se a maior ponte marítima do mundo, no Mar da China, e ferrovias na Etiópia e na Nigéria. A concessão de 35 anos do Sistema Rodoviário Ponte Salvador-Ilha de Itaparica envolve as etapas de construção, operação e manutenção, além de obras como estradas, túneis, viadutos e praças de pedágio.

<><> Um atalho logístico e agressivo ao meio ambiente

As limitações a veículos pesados no ferry-boat tornam a obra atraente para alguns setores, já que oferece uma alternativa para transportar a produção agrícola do Recôncavo Baiano sem prolongar a viagem ao contornar a baía. Mas a poluição gerada pelo fluxo de caminhões atravessando a ilha, dividida entre os municípios de Vera Cruz e Itaparica, levanta preocupações em uma região onde se preservam a paisagem natural e o modo de vida interiorano.

“A ponte será muito invasiva e não trará nenhum benefício efetivo para a ilha, mas estará a serviço do progresso do estado da Bahia como forma de escoar a produção para Salvador”, critica Tânia França, moradora de Itaparica e representante da Associação Religiosa Cultural e Ambientalista (Arca).

A Baía de Todos-os-Santos, a maior do Brasil, abrange uma área de 1.233 km² e banha 18 municípios, somando cerca de 4,5 milhões de habitantes distribuídos entre a região metropolitana de Salvador e cidades vizinhas. Rica em biodiversidade marinha e costeira da Mata Atlântica, a baía é o sustento de diversas comunidades tradicionais de pescadores e marisqueiras, que deverão ser diretamente impactadas pelo projeto.

“O estudo de impacto ambiental tem a função de subsidiar a licença, que não deveria ter sido emitida, pois o estudo está incompleto”, afirmou Severino Agra, biólogo, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e cofundador do Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá), em entrevista à Mongabay.

Especialista em legislação ambiental, Agra elaborou uma nota técnica listando as falhas do Relatório de Impacto Ambiental apresentado pela concessionária. Até agora, o projeto só obteve uma licença prévia, e o governo da Bahia ainda precisa aprovar o licenciamento definitivo para, de fato, dar início às obras.

Ao sul da Ilha de Itaparica, em Vera Cruz, uma área sensível de manguezal deve ser sacrificada para a duplicação de 8 km da BA-001 e a construção de uma nova rodovia de 22 km. As intervenções prometem facilitar o trânsito de veículos que se deslocam entre a ponte, a ilha e o Recôncavo Baiano, mesmo que isso signifique destruir a vegetação nativa.

Os manguezais são essenciais para a manutenção de ecossistemas, funcionando como barreiras naturais contra a erosão, além de capturar carbono e filtrar poluentes. As águas rasas e a vegetação densa de raízes entrelaçadas servem como berçários para diversas espécies marinhas, oferecendo um espaço seguro e rico em nutrientes para peixes, crustáceos e moluscos.

Nessa transição entre águas doce e salgada, atuam as marisqueiras, grupos de mulheres que buscam no manguezal uma fonte de sustento para suas famílias. Elas coletam mariscos, como ostras e mexilhões, em um trabalho artesanal e sustentável que ajuda a monitorar e proteger os recursos naturais.

Entretanto, o espaço usado pelas marisqueiras ficará menor por causa das intervenções rodoviárias. “A mariscagem vai reduzir brutalmente. O próprio estudo da concessionária assume que haverá perda de cobertura vegetal em cima de manguezais”, ressalta Agra.

<><> Impacto na fauna marinha e na pesca artesanal

Segundo Agra, a cravação dos pilares da ponte provoca ruídos subaquáticos e vibrações que podem alterar o comportamento e até reduzir as populações de diversas espécies, incluindo corais e recifes, essenciais para o equilíbrio do ecossistema local. Entre os animais afetados, os golfinhos são visitantes frequentes, enquanto as tartarugas-marinhas utilizam a baía como área de desova.

Os 139 pilares planejados também podem funcionar como uma barreira, dificultando a passagem de grandes mamíferos, como as baleias-jubarte. Esses animais estão reconquistando seu espaço nas águas brasileiras e migram entre junho e novembro para nosso litoral em busca de reprodução e alimentação.

“A ocorrência da baleia-jubarte na Baía de Todos-os-Santos era bem rara até cinco anos atrás, quando passou a ocorrer com maior quantidade apesar de todos os problemas antrópicos, como o tráfego de grandes navios”, afirmou à Mongabay Enrico Marcovaldi, pesquisador do Projeto Baleia-Jubarte, que há 25 anos mantém um centro de observação na Praia do Forte, em Salvador.

Durante os 90 dias da temporada de observação deste ano, o projeto registrou 1.008 avistamentos de baleias-jubarte na região, sendo 72 deles somente dentro da Baía de Todos-os-Santos. “Isso não significa que mais de mil indivíduos foram vistos, já que muitas dessas baleias foram avistadas várias vezes”, explica Marcovaldi.

Iniciada em janeiro de 2024, a atual fase do projeto — com previsão de término em 2025 — baseia-se na sondagem geotécnica, que analisa o solo, tanto em terra quanto no mar, utilizando balsas para fazer 102 perfurações e coleta de amostras.

“Esse procedimento irá remexer os sedimentos do subsolo, que provavelmente contêm contaminantes antigos, como resíduos de petróleo e metais pesados. A cada pilar construído, esses contaminantes poderão ser suspensos na água novamente”, explica Agra.

A operação coloca em risco a subsistência de várias comunidades que dependem da baía, como a colônia de pescadores do Quilombo Alto do Tororó, no bairro de São Tomé, no subúrbio ferroviário de Salvador, que existe desde o século 19.

“Nossa preocupação virou desespero, porque nos anos de obra vão desaparecer todos os corais e recifes onde os peixes que capturamos procuram alimento. Já foi grande a quantidade de espécies de peixes, crustáceos e moluscos, mas hoje impera a escassez devido à poluição da baía. A construção da ponte será o golpe de misericórdia na pesca artesanal”, resume J. Salvador da Paz Barros, mestre do quilombo.

<><> A superpopulação da Ilha de Itaparica

Um dos principais objetivos da construção da ponte é transformar a Ilha de Itaparica em uma alternativa de moradia para Salvador – quinta cidade mais populosa do Brasil, com 2,6 milhões de habitantes, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Com a construção, estima-se que a população da ilha – composta pelos municípios de Vera Cruz e Itaparica – passe dos atuais 65 mil para 220 mil habitantes até 2050.

Contudo, os moradores da ilha estão céticos quanto aos benefícios, principalmente por causa da possível sobrecarga nos serviços públicos. “O que significa esse aumento populacional do ponto de vista de aumento da violência, desordenamento urbano e pressão fundiária sobre comunidades tradicionais?”, questiona Pacheco. “Terá mais pessoas para concorrer com as políticas públicas de saúde e educação na ilha, que já são precárias”.

De acordo com o IBGE, Vera Cruz – que já conta com o terminal do ferry-boat e onde terá o acesso à nova ponte – soma cerca de 45 mil habitantes, 49 escolas (sendo apenas cinco com ensino médio), 19 unidades de saúde e saneamento para 24,6% da população. Já Itaparica – que ocupa apenas 18% do território da ilha – tem 20 mil moradores, 26 escolas (três de ensino médio), dez unidades de saúde e 49,5% das residências com sistema de esgoto.

“A ilha vai acabar virando um bairro de Salvador, deixando de ser um lugar de veraneio, uma área de praia para fugir da cidade grande. Será um caos, porque, para se tornar uma área urbana organizada, os municípios vão precisar de uma gestão eficiente. Mas, se esse momento chegar, já terá tanta coisa fora do lugar — saneamento, saúde, policiamento, escolas — que as chances de reverter a desordem serão mínimas”, analisa Agra.

Apesar das preocupações, o mercado imobiliário já está aquecido. Moradores notam a alta nos preços de terrenos e casas, além do aumento da grilagem de terras. “Se a ilha for valorizada como área urbana, é ruim, e se não for valorizada como o esperado, também é ruim. Nos dois casos, a primeira coisa que vai acontecer é tirar as vilas de pescadores que não têm o título da terra, expulsando para as periferias ou até mesmo fora da ilha”, prevê Agra.

Outro temor é a invasão de áreas verdes, como o Sítio dos Milagres, em Itaparica. São 47 hectares de Mata Atlântica que têm sido preservada há décadas como fruto dos ensinamentos de Venceslau Monteiro, um homem que se tornou uma figura mítica na comunidade no século passado depois de ter a cegueira curada em uma nascente dali.

“Venceslau foi um grande ambientalista do seu tempo. Ele passou a cuidar dessa área verde, evitando o desmatamento. Com o passar dos anos, isso virou ponto de peregrinação e de rituais de culturas afro-brasileiras”, diz França, gestora da Arca, entidade jurídica que administra o Sítio dos Milagres.

O terreno, antes propriedade de uma imobiliária, foi transferido à prefeitura como pagamento de dívidas. Segundo França, a promessa das autoridades é transformar o Sítio dos Milagres em um parque ecológico voltado para o uso religioso, inspirado no Parque São Bartolomeu, em Salvador.

<><> Planos compensatórios e alternativas menos invasivas

Para moradores e comunidades tradicionais, a proposta da ponte ocorreu sem o diálogo necessário.

“Os pescadores e marisqueiras nunca foram ouvidos, apesar dos protestos de movimentos sociais sobre os impactos ambientais, não apenas no entorno da Ilha de Itaparica. Fomos simplesmente ignorados, como sempre, esquecidos. Nunca se falou da merecida compensação”, reclama Barros.

O relatório de impacto ambiental dedica 40 páginas a planos de mitigação e compensação “em termos ambientais e socioeconômicos, salvaguardando os interesses das populações e do meio biofísico”. No entanto, essas ações são apresentadas de forma vaga e superficial.

“As medidas de mitigação propostas pela concessionária consistem apenas em títulos, sem qualquer explicação. Trata-se apenas de uma proposta de intenções, sem esclarecimentos sobre como serão implementadas”, afirmou Agra.

O governo da Bahia enviou uma nota informando que o licenciamento prévio incluiu consultas às populações tradicionais da ilha e que a empresa responsável elaborou um plano de desapropriação, reassentamento e compensação. Em resposta à Mongabay, a concessionária do Sistema Rodoviário Salvador-Ilha de Itaparica disse que o projeto básico foi modificado, destacando que “medidas já foram tomadas para evitar qualquer interferência em manguezais”.

Para muitos, a solução mais adequada é investir no já estabelecido sistema de ferry-boat. “Seria melhor se houvesse horários fixos, com saídas a cada meia hora e operações após a meia-noite”, reflete França. Barros complementa sugerindo que, “em vez de construir a ponte, poderiam adquirir mais ferries com maior capacidade de carga e velocidade, minimizando o impacto ambiental”.

O sistema público de ferry-boat entrou em operação em 1972 e foi privatizado em 1996, passando por várias empresas até chegar à concessão atual pela Internacional Travessias Salvador. De acordo com a empresa, mais de 15 mil pessoas (entre passageiros em veículos e pedestres) são atendidas por dia, juntamente com 2 mil veículos. O serviço conta com sete embarcações, que comportam, em média, 700 pessoas e 60 veículos. Mas em dias habituais, apenas três ou quatro ferries estão disponíveis, com viagens partindo, no mínimo, a cada hora, das 5h às 23h30.

Sobre os problemas no serviço, a Internacional Travessias Salvador comunicou à Mongabay que filas longas ocorrem apenas em feriados prolongados e períodos festivos, quando o fluxo de passageiros chega a triplicar, e que investiu em novas equipes de limpeza e manutenção.

Embora seja uma alternativa economicamente mais viável, a modernização do serviço flutuante não foi avaliada como uma substituição à ponte, cujo custo é de R$ 9 bilhões. Para efeito de comparação, a última licitação para a compra de ferries indicou o valor de R$ 30 milhões por embarcação.

“Não realizar o projeto é uma das alternativas”, defende Agra. “A lei exige que o estudo de impacto avalie detalhadamente cada alternativa, para que se possa comparar os impactos e escolher a menos agressiva, inclusive a possibilidade de não executar a obra.”

 

Fonte: Mongabay

 

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