sexta-feira, 1 de novembro de 2024

César Fonseca: ‘Crise Brasil-Venezuela fragiliza BRICS e favorece objetivo de Washington’

O aprofundamento da crise diplomática entre Brasil e Venezuela não poderia ser mais conveniente para os Estados Unidos neste momento: não interessa a Washington a união entre os dois países maiores produtores de petróleo da América do Sul.

Juntos, sintonizados com o mesmo objetivo, qual seja, a integração econômica latino-americana, somariam forças capazes de fortalecer o BRICS, de um lado, e, de outro, contrariar o império americano, para fragilizar a Doutrina Monroe, vigente desde 1823, consubstanciada na pregação da América para os americanos do norte.

Rachados, cada um para seu lado, fica mais fácil para a estratégia imperialista de mantê-los divididos para reinar.

Washington, por meio do seu mais importante representante militar no continente sul-americano, a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, sediado na Flórida, alertou, ao longo de 2023 e 2024, contra o que considerou perigo para os interesses americanos: a aproximação crescente da América do Sul dos BRICS, especialmente, China e Rússia.

Richardson conseguiu com sua retórica convencer a Argentina, sob governo da ultradireita fascista de Javier Miley, a não participar do BRICS, na tentativa de isolar o Brasil.

UNIÃO RÚSSIA-CHINA X EUA-OTAN

Não se entende, plenamente, o conflito Brasil-Venezuela fora da questão, essencialmente, geopolítica, tensionando as relações internacionais, porque a emergência do BRICS abre-se ao mundo multipolar contra a geopolítica unipolar, comandada pelos Estados Unidos, envolvendo o ocidente anglo-saxão.

Russos e chineses se aproximaram, por meio de pacto militar e comercial, desde o início da intervenção preventiva russa na Ucrânia, armada pela Otan-Estados Unidos, para tentar promover uma mudança de regime na Rússia.

Os tratados assinados por Moscou e Pequim visam fortalecer o comércio bilateral China-Rússia e as relações militares entre ambos, fato que refletiu, diretamente, na construção do bloco comercial dos BRICS.

O fortalecimento dos BRICS ganhou dimensão geopolítica capaz de abalar a geopolítica ocidental anglo-saxônica e colocou os aliados integrantes dele no dilema de se juntarem ou não frente à geopolítica de Washington para ganharem musculatura contra o império.

Inicialmente, cinco países formaram o BRICS, ampliado para 13, na reunião recente, em Kazan, Rússia, enquanto há outros 33 países interessados em entrar no bloco, entre estes a Venezuela.

A América do Sul, segundo Laura Richardson, não deveria se transformar em aliada dos BRICS, para não ferir os interesses dos Estados Unidos, que, de acordo com a Doutrina Monroe, têm o continente sul-americano como seu espaço de influência exclusiva.

A Venezuela, nesse contexto geopolítico de confronto crescente entre as potências, buscou acelerar aproximação comercial e militar com os dois principais integrantes do BRICS, Rússia e China.

A iniciativa venezuelana levou Washington a intensificar sanções comerciais contra o governo de Nicolás Maduro, dominado pelo viés ideológico socialista, sob comando do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), há 26 anos no poder.

VITÓRIA CONTESTADA PELA CASA BRANCA

A eleição de Nicolás Maduro, para mais um mandato de 6 anos (2025-2031), em 28 de julho de 2024, contestada por Washington, criou o ambiente de confronto que acabou arrastando o Brasil e outros países latino-americanos e europeus ao rechaço à vitória do presidente chavista, considerada fraudulenta.

O Brasil, assim como o governo Joe Biden, considerou insatisfatórios os argumentos do governo, vítima do que considerou ataques cibernéticos em seu processo eleitoral, para não apresentar o que exigia: atas comprobatórias que demonstrassem a vitória do candidato do PSUV.

Teria ou não os ataques cibernéticos suprimidos as provas da vitória?

O Brasil pediu novas eleições e a Venezuela, que disse ter apurado mais de 70% do total de votos, antes do ataque cibernético, proclamou por meio do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), a vitória eleitoral de Nicolás Maduro.

 A insistência brasileira quanto às atas eleitorais e à defesa de novas eleições azedaram as relações Brasil-Venezuela, desde então, estendendo-se, agora, na decisão brasileira de vetar a entrada do país de Nicolás Maduro no BRICS, na reunião de Kazan, Rússia.

NEGAÇÃO À AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS

O governo venezuelano, sobretudo, considerou ingerência do governo brasileiro em assuntos de soberania, violando autodeterminação dos povos, na condução dos seus interesses nacionais.

Agora, Nicolás Maduro considera que o governo brasileiro está a serviço de Washington, agindo como a Casa Branca, interferindo nas questões internas soberanas da Venezuela.

Ao contrário do Brasil, China e Rússia reconheceram, imediatamente, a vitória de Nicolás Maduro, considerando-a legítima, o que o presidente Vladimir Putin reiterou em Kazan, apelando para que ambos os países se entendessem, para não trincar as relações dentro do próprio BRICS, afetado, agora, pelo aprofundamento da crise diplomática entre eles.

O fato é que a divisão que se aprofunda vai de encontro ao que a general Laura Richardson defende: quebra da unidade latino-americana em relação ao BRICS.

Como, no próximo ano, o bloco será presidido pelo Brasil, certamente, o diversionismo consagra o desejo de Washington, radicalmente, adversário do BRICS, cuja força econômica supera o G7 e caminha para ser uma nova potência mundial.

Os efeitos do fortalecimento internacional do BRICS, a se configurar ao longo dos próximos anos, são maléficos para a hegemonia americana, passível de ser rompida com a desdolarização econômica diante da pregação do avanço das relações comerciais realizadas com moedas nacionais, como norte essencial do novo bloco.

 

¨      O BRICS faz história – será possível manter o ímpeto? Por Pepe Escobar

Kazan não mudou o mundo – ainda. Mas a cúpula deve ser vista como a estação de partida de uma viagem em trem de alta-velocidade rumo à nova ordem multinodal que vem surgindo. A metáfora foi também espacial: a “estação” dos pavilhões do centro de exposições de Kazan  onde a cúpula foi realizada conectava-se simultaneamente  ao aeroporto e ao aerotrem expresso que leva à cidade.

Os efeitos deixados na esteira do BRICS 2024, em Kazan, serão sentidos por semanas, meses e anos. Comecemos com as grandes mudanças. 

<><> O Manifesto de Kazan 

1. A Declaração de Kazan. Trata-se de nada menos que um manifesto diplomático detalhado. Mas como os BRICS não são um agente revolucionário – já que seus membros não têm uma ideologia em comum – seria possível afirmar que a segunda melhor estratégia seria propor reformas reais, desde a Agenda de 2030 da ONU até o FMI, o Banco Mundial, a OIT, a OMS e o G-20 (cuja cúpula acontecerá no próximo mês, no Rio).

O cerne da Declaração de Kazan  – debatido durante meses – é avançar na prática rumo a profundas mudanças institucionais e rejeitar a Hegemonia. A Declaração será apresentada ao Conselho de Segurança da ONU. O Hegêmona, sem dúvida alguma, irá rejeitá-la.

Este parágrafo resume a iniciativa das reformas: “Condenamos as tentativas de sujeitar o desenvolvimento a práticas discriminatórias com motivação política, incluindo, embora não se limitando a medidas coercitivas unilaterais  incompatíveis com os cinco princípios da Carta das Nações Unidas, e condicionalidades explícita ou implicitamente impostas à ajuda ao desenvolvimento com o fim de comprometer a multiplicidade dos fornecedores de ajuda internacional ao desenvolvimento”. 

2. A sessão de Expansão dos BRICS, que foi um Bandung 1955 turbinado a esteróides: um microcosmo de como o novo mundo descolonizado e não-unilateral vem nascendo.

O Presidente Putin abriu a sessão e passou a palavra aos líderes e chefes de delegação de outras 35 nações, a maioria deles  de primeiro escalão, inclusive o representante da Palestina, como também ao Secretário-Geral das Nações Unidas. Diversas dessas falas foram  nada menos que épicas. A sessão teve duração de três horas e vinte e cinco minutos. Sua transcrição irá circular por toda a Maioria Global por anos a fio.

A sessão foi concluída com o anúncio dos 13 novos parceiros dos BRICS: Argélia, Belarus, Bolívia, Cuba, Indonésia, Cazaquistão, Malásia, Nigéria, Tailândia, Turquia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. Um tour de force estratégico incluindo quatro potências do Sudeste Asiático, os dois principais “istãos” da Ásia Central, três africanas, duas latino-americanas e a Turquia, membro da OTAN. 

3.   A própria presidência russa dos BRICS. Pode-se dizer que nenhum outro país teria sido capaz de montar uma cúpula tão complexa e impecavelmente bem-organizada, realizada após mais de 200 reuniões relacionadas aos BRICS por toda a Rússia e durante todo o ano, conduzidas por sherpas anônimos, integrantes de grupos de trabalho e do Conselho Empresarial dos BRICS. A segurança foi maciça  - por razões óbvias, considerando os riscos de uma falsa bandeira ou ataque terrorista. 

4. Os corredores de conectividade. Esse é o principal tema geoeconômico da integração eurasiana, e também da integração afro-eurasiana.  Putin, mais de uma vez, citou explicitamente os novos motores do crescimento de um futuro próximo: o Sudeste Asiático e a África. Ambos são parceiros importantes de diversos projetos da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) chinesa. Além disso, Putin citou os dois principais corredores de conectividade do futuro: a Rota Marítima do Norte  – que os chineses descrevem como a Rota da Seda do Ártico – e o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul (CITNS) no qual os três principais motores são os membros dos BRICS Rússia, Irã e Índia.
Isso se traduz, portanto, com a China dos BRICS cruzando a Eurásia de leste a oeste, enquanto Rússia/Irã/Índia, também dos BRICS, a cruzam de norte a sul, com ramificações em todas as latitudes. E com todos os acréscimos de energia, com o Irã se posicionando como um nó energético de importância crucial, abrindo a finalmente factível possibilidade de construção do gasoduto 
Irã-Paquistão-Índia (IPI), uma das sagas inacabadas daquilo que descrevi em inícios dos anos 2000 como o Gasodutistão.

<><> A Volta do Triângulo Primakov  

Toda a Maioria Global tinha imensas expectativas de que Kazan viesse a representar um espetacular divisor de águas quanto a sistemas de pagamento alternativos.  Especialistas em tecnologia financeira russos e chineses foram mais realistas, comentando que “não esperavam absolutamente nada exceto uma outra rodada de iniciativas sobre trocas de grãos, trocas de metais preciosos e sobre uma plataforma de investimento. O BRICS Clear vem sendo desenvolvido, mas o restante não irá funcionar sem uma infraestrutura soberana adequada”.  
O que nos traz de volta ao projeto 
UNIT – uma forma de “dinheiro apolítico” ancorado em ouro e nas moedas dos BRICS+. O projeto foi exaustivamente discutido pelos grupos de trabalho, tendo chegado ao Ministério das Finanças russo. O passo seguinte é um teste de desempenho conduzido por um grande conglomerado empresarial, que pode vir a acontecer em um futuro próximo e, caso tenha êxito, sirva de estímulo para que outras grandes empresas dos países BRICS  sigam pelo mesmo caminho.

Quanto à plataforma de investimentos digitais dos BRICS, ela já está pronta para entrar em funcionamento.  Juntamente com o NDB – o Banco dos  BRICS, presidido pela ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff, cujo mandato  o Presidente Putin  quer ver renovado – essa plataforma irá facilitar o acesso do Sul Global a financiamentos sem as tão temidas condicionalidades  de “ajustes estruturais” impostas pelo FMI/Banco Mundial. As trocas de grãos dos BRICS, estabelecendo regras claras e transparentes, serão essenciais para assegurar a segurança alimentar  do Sul Global. 

Os BRICS deixaram claro que o complexo ímpeto rumo  uma nova infraestrutura de pagamentos e liquidação é inevitável, sendo, entretanto, um trabalho em andamento, em especial por que o G-7 – que, para todos os fins práticos vem sequestrando a agenda do G20 a ser realizado no próximo mês, no Rio – quer financiar ao menos 20 bilhões de um pacote de 50 bilhões com os rendimentos dos ativos russos roubados. 

O que nos leva ao problema mais flagrante dos BRICS. Chegar a um consenso em questões espinhosas é extremamente difícil  – podendo levar, no longo prazo, a que os BRICS adotem um mecanismo de maioria absoluta para chegar a alguma resolução. 

O caso brasileiro – que vetou a Venezuela como parceira dos  BRICS – não foi de modo algum bem visto entre os países do Sul Global. O atual governo Lula talvez esteja sob pressões tremendas partindo do establishment do Partido Democrata do Hegêmona, mas isso, em si, não explica a decisão. 

Há um maciço lobby anti-BRICS no do primeiro escalão  do governo brasileiro, “facilitado”, como de costume, por ONGs americanas, e também da Comissão Europeia, fortemente infiltradas nas proverbiais elites compradoras. Brasília, este ano, privilegiou o G-20 em detrimento dos BRICS. O que faz antever problemas  para o ano que vem, quando o Brasil assumirá a presidência dos BRICS. 

As perspectivas não são exatamente brilhantes. A cúpula dos BRICS do próximo ano está marcada para julho – e a decisão parece ser final. Isso não faz nenhum sentido – fazer um apanhado geral de uma agenda de trabalhos em meados do ano. A desculpa oficial é que o Brasil precisa também organizar a conferência Cop-30, marcada para novembro. Uma sugestão será apresentada pelo importantíssimo economista brasileiro  Paulo Nogueira Batista Jr., no sentido de realizar uma sessão dos BRICS paralela no decorrer da cúpula do G-20 em 2025, a ter lugar na África do Sul, onde seriam apresentadas as recomendações finais. 

O Presidente Putin vem sendo extremamente maleável – chegando mesmo a propor que Dilma Rousseff permaneça no comando do Banco dos BRICS. No entanto, tecnicamente, a presidência russa do Banco começaria no próximo ano. Um candidato mais adequado para a presidência do NDB seria Aleksei Mozhin, até recentemente o representante russo no FMI. 

Há uma grande lição a ser extraída de tudo o que foi dito acima. Kazan provou que a força motriz dos BRICS é, na verdade, o famoso Triângulo de Primakov – ou RIC (Rússia, Índia, China). Hoje seria possível acrescentar o Irã, o que transformaria a sigla em RIIC. Tudo o que tenha alguma substância nos processos interconectados da integração dos BRICS e da integração afro-eurasiana depende do RIIC.

A Arábia Saudita permanece como uma possibilidade em aberto. Nem sequer Putin respondeu se Riad está dentro, fora ou em cima do muro. Fontes diplomáticas insinuam que MbS está esperando pelo resultado das eleições presidenciais dos Estados Unidos. Se muito da riqueza saudita está investida na esfera anglo-americana – podendo ser surrupiada de uma hora para outra – as relações de alto-nível com a parceria estratégica Rússia-China são excelentes.

O RIC marcou um gol de placa logo antes da cúpula de Kazan, quando Pequim e Nova Delhi anunciaram a normalização de sua questão  de Ladakh. Esse resultado foi alcançado com a mediação da Rússia. Então, há a Turquia. Erdogan foi peremptório em sua declaração de entusiasmo pelos BRICS  nas poucas horas que passou em Kazan. Mais tarde, em Istambul, analistas confirmaram que ele vê com a maior seriedade a condição da Turquia como parceira e sua possível admissão como membro pleno.

Na linguagem dos símbolos, os minaretes da mesquita de  Kul Sharif, no Kremlin de Kazan, foram a real marca registrada da cúpula: a ilustração gráfica da multipolaridade em funcionamento. As terras do Islã captaram a mensagem – com sérias e auspiciosas repercussões futuras. No momento em que o trem multinodal de alta velocidade deixa a estação, toda a atenção dos condutores deve estar focada nos RIICs. Que todo o Sul Global tenha uma boa viagem.

 

Fonte: Brasil 247

 

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